Núria Alabao: Internacional
Antifeminista, uma radiografia
As guerras de gênero tornaram-se
globalizadas e
são impulsionadas por um poderoso movimento social, político e religioso
transnacional. Com “guerras de gênero” fazemos referência aqui a conflitos
políticos e culturais que se centram em questões de gênero e sexualidade – questões
como os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos de dissidência sexual, a
educação sexual ou a violência de gênero, entre outros. É claro que estas
batalhas não são meras cortinas de fumaça, mas inerentes à luta pelo poder e
aos interesses dos projetos políticos que as impulsionam, que, em última
análise, são funcionais para uma relegitimação das hierarquias de classe,
gênero e raça.
Uma nova onda de ativismo ultraconservador global
estabeleceu o “gênero” como uma frente de batalha definitiva. O movimento
“antigênero” é suficientemente flexível para incorporar uma variedade de
objetivos, mas suficientemente coerente para ser um movimento e não apenas uma
série de campanhas não relacionadas. Embora em muitos ele lugares possa
vestir-se com a roupagem da oposição ao neoliberalismo e outras, abraçá-lo
plenamente.
·
Quem são os atores que
coordenam?
O universalismo defendido pela
identificação coletiva cristã provou ser um recurso útil para a
transnacionalização.
Os agentes internacionais que impulsionam estas guerras
de gênero são muito diversos. Por um lado, as instituições religiosas têm um
papel destacado. A direita cristã
internacional é na verdade a mais produtiva no que diz respeito à mobilização
de recursos, às suas redes organizacionais, à construção da identidade e à
produção cultural do movimento. Neste sentido, os atores religiosos
funcionam plenamente como qualquer outra organização política. Aqui podemos
incluir igrejas e clérigos, comunidades seculares de ativistas, bem como
centros de investigação, universidades e ONGs transnacionais que afirmam ser
baseadas na fé.
O universalismo defendido pela identificação coletiva
cristã provou ser um recurso útil para a transnacionalização. A Igreja
Católica, por exemplo, tem grande influência em várias áreas do globo graças à
sua estrutura centralizada, embora também tenha organizações próprias que vão
além do nível nacional – e que são religiosas e seculares: Opus Dei, Kikos,
Legionários de Cristo, organizações anti-aborto, redes universitárias próprias,
etc. As igrejas ortodoxas do leste europeu, por sua vez, baseiam a sua
influência política e social basicamente na sua estreita relação com os Estados
– onde governam a ultradireita –, algo muito evidente no patriarcado de Moscou.
Nas últimas décadas, também temos assistido ao
crescimento do poder do evangelical, especialmente do estadunidense – com
fortes laços políticos com a direita republicana e importantes recursos
econômicos – como ocorreu recentemente nas eleições dos EUA com o seu apoio a
Trump. Na verdade, este candidato mostrou-se repetidamente um mestre sair pela
tangente quando questionado sobre a sua posição sobre o aborto, temendo que
isso pudesse tirar votos num país que, apesar de tudo, é majoritariamente
favorável a este direito – sobretudo as mulheres. Porém, ele teve que deixar de
engambelar e assumir seus compromissos com seus financiadores evangélicos, que
também mobilizam muitos votos, por isso acabou esclarecendo que se opõe às leis
mais permissivas sobre o aborto, com argumentos como o de que em alguns estados
democratas até “o bebê pode ser
executado após o nascimento”.
A direita cristã estadunidense também tem uma poderosa
capacidade de ação na Europa, como observamos num artigo anterior. Estas
organizações estadunidenses bem financiadas – como a ADF International ou ACLJ – realizam campanhas jurídicas e de lobby na UE com o objetivo de
influenciar a legislação sobre os direitos das mulheres e a dissidências
sexuais.
Os evangélicos, especialmente uma parte significativa
do neopentecostalismo, têm uma
influência crescente na América Latina, onde intervêm ativamente na política
institucional, tentam destituir e substituir presidentes ou apoiar diretamente
determinados candidatos como aconteceu com Jair Bolsonaro no Brasil.
Temos que lembrar que são nacionalistas que
nem sempre estão do mesmo lado nas frentes internacionais em disputa.
Outros atores relevantes são os políticos
ultraconservadores e de extrema direita, muito diferentes entre si, mas que por
vezes cooperam internacionalmente para reforçar certos blocos de poder. Muitas
vezes os seus interesses não convergem, as suas diferenças são aguçadas pelo
nacionalismo que têm como bandeira, mas conseguem agrupar-se mais facilmente
quando falam de questões de gênero, o que parece ser a “cola” definitiva. As
questões de gênero são, de fato, o principal espaço de coordenação discursiva e
material desta pluralidade de agentes. Nos textos que produzem ou em
declarações de políticos e membros de diferentes igrejas, percebe-se uma
semelhança radical em termos de linguagem, símbolos e narrativas. Há autoras que
utilizam o conceito de “coligação
discursiva” para
analisar estas formas de articulação política, onde atores com pontos de vista
ideológicos, filosóficos e religiosos díspares podem comunicar e produzir
intervenções significativas caso partilhem certas narrativas. Essa é a
principal função de conceitos como “ideologia de gênero”, “defesa da família
natural” ou “valores tradicionais”.
Temos que lembrar que são nacionalistas que nem sempre
estão do mesmo lado nas frentes internacionais em disputa. Por exemplo, no
Parlamento Europeu existem dois grupos diferentes que
reúnem a extrema direita e que, por vezes, se confrontam. Outro caso: o
conflito bélico na Ucrânia. Após a invasão russa, os Estados Unidos e a Europa
encontraram-se na linha da frente de batalha contra a Rússia quando, até essa
guerra, existia uma forte aliança de interesses entre evangélicos
estadunidenses e empresários russos ortodoxos. Algo similar acontece com a
religião: a internacional reacionária produziu alianças inesperadas entre
religiões, não só dentro do próprio cristianismo – católico, ortodoxo ou
neopentecostal – mas até estabelecendo acordos contingentes com o Islã,
contornando na ponta dos pés a contradição de que muitos dos partidos europeus
de extrema direita têm propostas claramente islamofóbicas.
·
Cronologia de uma intervenção
global
As guerras de gênero não são um fenômeno novo. Embora
existam precedentes anteriores, foi a partir da década de 1970 nos Estados
Unidos que começaram a ser utilizados de forma semelhante à atual com a
ascensão do que se chamou de Nova Direita, que apoiava Ronald Reagan. Contudo,
a sua dimensão transnacional só descolou em meados da década de 1990.
As primeiras guerras internacionais de
gênero giraram em torno do casamento gay e da igualdade de direitos para as
dissidências sexuais na Europa.
A virada do milênio assistiu ao crescimento progressivo
da articulação de uma vasta rede internacional de atores que se originou como
forma de reação contra o movimento pelos direitos das mulheres. Isto aconteceu
a partir da década de 1990, quando organizações internacionais, como a ONU,
assumiram a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. A partir de então,
houve um impulso progressivo por parte de organizações anti-direitos nestas
sedes internacionais de direitos humanos que priorizaram
serem credenciadas como fontes consultivas oficiais para aumentar as suas
possibilidades de intervenção.
Embora cada movimento nacional tenha sido desencadeado
por debates específicos de cada contexto, as primeiras guerras de gênero com
ressonância internacional giraram em torno do casamento homossexual e da
igualdade de direitos para as dissidências sexuais na Europa – entre 2010 e
2015. O precedente foram as marchas religiosas e políticas contra o casamento
gay na Espanha em 2005, seguidas pelo sucesso do Manif pour Tous na França em
2012. A partir daí, movimentos “cidadãos” semelhantes ocorreram em países como
Alemanha, Itália, Polônia, Rússia e Eslováquia. A partir de 2010, o movimento
antigênero também se desenvolveu na América Latina – a Argentina
começou em 2010, o Brasil em 2013 e outros países latino-americanos a partir de
2016, como Colômbia, México, Chile ou Bolívia. Além disso, estes atores têm
promovido os mesmos discursos na África e na Ásia, baseados no conceito
guarda-chuva de “ideologia de gênero”.
Nessa mesma década da década de 2010, a dimensão
transnacional acelerou juntamente com a intensidade das guerras de gênero
quando saídas de extrema direita, ou aquelas com posições de gênero muito
reacionárias, venceram eleições ou assumiram posições institucionais
relevantes. Assim, Viktor Orbán tornou-se primeiro-ministro em 2010, Donald
Trump em 2017 e Bolsonaro em 2019. Putin entende a sua importância política em
2013 e começa a falar sobre valores tradicionais e, nesse mesmo ano, aprova a
lei contra a “propaganda” homossexual.
Eles precisavam encontrar um ecossistema
cultural favorável e crescer onde os movimentos sociais são fracos.
Além da influência russa e estadunidense, poderíamos
falar das conexões europeias, por exemplo, aquela que vincula grupos
anti-direitos em Espanha e na América Latina. O Vox tenta tornar-se uma ponte
entre as ultradireitas dos dois lados do Atlântico, tal como o fazem uma
miríade de associações, entre as quais se destaca a CitizenGo – a filial
internacional da Hazte Oír. Portanto, as questões de gênero não podem ser
separadas da promoção de certos candidatos de direita ou ultradireita e da luta
“contra o comunismo” na região – muitas destas opções políticas são centrais
para apoiar projetos extrativistas ou neoliberais. Como exemplo, a Fundação
Valores e Sociedade, fundada em 2011 por Jaime Mayor Oreja, ex-ministro do PP,
que tenta influenciar a América Latina apoiando-se na Rede Política para
Valores, responsável pela cúpula ultradireitista realizada recentemente no
Senado espanhol.
Esta organização é presidida pelo candidato
presidencial chileno em 2023, José Antonio Kast, um ultraconservador que
fez declarações como: “A pílula que
privilegia o prazer acima de tudo é a pílula do egoísmo; é a pílula que faz a
sexualidade viver no medo de um ser indefeso que está prestes a nascer…” ou “A
família nunca prejudicou nenhuma sociedade no mundo; não podemos dizer o mesmo
sobre o divórcio.” Esta rede apresenta-se como uma versão europeia do Congresso Mundial da Família, provavelmente a
principal organização global de grupos conservadores, da qual recebe
financiamento.
Apesar da implantação significativa de meios de
comunicação e conexões globais, não devemos perder de vista o fato de que,
apesar da sua propaganda – que normalmente exagera a sua própria capacidade –
estas redes internacionais não são onipotentes. A existência de recursos
materiais e suas redes servem para promover suas ideias, porém, precisam
encontrar um ecossistema cultural favorável e crescer onde os movimentos
sociais são mais fracos. Portanto, há uma batalha acontecendo.
·
Ferramentas de uma ofensiva
Delineamos os principais atores que impulsionam as
guerras de gênero, mas também é necessário analisar algumas das suas formas de
intervenção.
De um lado estão as tarefas de lobby, sobretudo as realizadas em
organizações supranacionais como a ONU ou instituições europeias. Mas estes
agentes internacionais também utilizam o direito como arma, por exemplo quando
recorrem a litígios estratégicos. Às vezes, chegam ao ponto de se intrometer na
política nacional em determinados países para promover a aprovação ou
modificação de leis. Aqui descobrimos que, se a oposição aos direitos das
mulheres e aos direitos dos dissidentes sexuais foi primeiro de natureza
reativa – o trabalho centrou-se em reagir aos avanços como aconteceu com o
casamento igualitário –, hoje envolve também
a promoção das nossas próprias normas, por exemplo de “proteção” da liberdade
religiosa. Mas também há tentativas “preventivas” de constitucionalizar
posições anti-direitos, como quando se trata de definir legalmente o casamento
como a união entre um homem e uma mulher – entendido como “biológico” e não de
forma transinclusiva. Sobre esta questão analisaremos o caso do referendo
romeno de 2018 que nos permite compreender como as suas campanhas são
construídas.
·
Tarefas do lobby
O trabalho realizado pelos grupos de pressão está
estabelecido há anos e pode ser realizado ao nível dos parlamentos nacionais ou
de instituições internacionais. Ocorre na ONU, mas também no Parlamento
Europeu, no Conselho da Europa, na Agência dos Direitos Fundamentais da UE em
Viena ou no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo.
Desde 2010, as instituições europeias registaram um
aumento muito significativo na atividade de grupos de pressão religiosos.
Igrejas e organizações confessionais realizaram mais reuniões políticas em
Bruxelas do que grandes empresas como a Google ou a a gigante do tabaco Phillip
Morris. Os dados refletem a preponderância do cristianismo – que inclui
católicos e protestantes – cuja capacidade de influência é apoiada por um sólido
apoio econômico. O lobby da
Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia (Comece) contava um
orçamento de mais de um milhão de euros em 2019, segundo dados do
Registo de Transparência da UE.
Além disso, conseguiram alguns privilégios que lhes
permitem influenciar as instituições da UE sem terem de tornar pública esta
atividade, embora os restantes grupos de pressão sejam obrigados. Alguns
dos lobbies mais
proeminentes são o Profissionais Espanhóis pela Ética, C-Fam,
European Dignity Watch, New Women for Europe, o Observatório de Intolerância e
Discriminação contra os Cristãos na Europa ou aqueles ligados ao
fundamentalismo cristão estadunidense – a Alliance Defending Freedon
estadunidense e o European Center for Law and Justice.
·
O Direito como
arma da ofensiva
O movimento estadunidense foi o primeiro a utilizar o
Direito desta forma. Lembremos que foram ativadas para lutar contra os avanços
feministas/LGTBIQ, especialmente na década de 1980 e, internacionalmente, na
década de 1990. Portanto, já possuem trinta anos de experiência e conhecimento
técnico que podem adaptar aos contextos locais. Assim como uma gama de
desenvolvimento de narrativas para traduzir suas posições ultraconservadoras
para a linguagem dos direitos e até dos direitos humanos. É significativo neste
sentido o conceito de “liberdade religiosa”, profusamente utilizado pela
direita estadunidense e que, juntamente com a “liberdade de expressão”, tem
ganhado importância nos últimos anos. Em lugares como os EUA, conseguiram
redefinir ambas as liberdades para permitir que os fundamentalistas
contornassem as leis contra a discriminação na esfera pública, particularmente
contra as dissidências sexuais, como explica Wendy
Brown.
Assim, se uma empresa se recusar a oferecer um produto ou serviço, por exemplo
a um casal homossexual, pode alegar que esta ação faz parte do seu direito à
liberdade de expressão ou de religião. Este argumento também é utilizado para
defender grupos antiabortistas que se apresentam como centros de planeamento
familiar para tentar convencer as mulheres a não fazerem aborto, mesmo com
informações falsas. Para Brown, o triunfo destes
argumentos jurídicos nos tribunais estadunidenses mostra um mundo atormentado
por fake news, em que o cristianismo conservador, a propriedade e a riqueza são
disfarçados de liberdades para atacar a democracia política e social.
O perigo é que os direitos civis fundamentais estejam
estão sendo ameaçados e, para além dos EUA, já existem casos em Estrasburgo em
que estes grupos promovem litígios estratégicos apresentando-se como vítimas de
discriminação. São cada vez eles utilizam conceitos como “cristofobia”, com os quais
tentam argumentar que são impedidos de desenvolver as suas
vidas de acordo com a sua fé e valores no mundo ocidental. Também estamos
vendo como instrumentalizam a seu favor os chamados “crimes de ódio”, que foram
supostamente promovidos para proteger as minorias.
Neste quadro, aludem a um suposto “consenso
progressista” que os discriminaria, por exemplo, quando defendem políticos que
se recusam a celebrar casamentos homossexuais. Ou num caso famoso que
aconteceu na Suécia, onde uma
parteira se recusou a ajudar uma mulher lésbica a dar à luz. Além disso,
através destes mesmos argumentos, ampliam o direito dos profissionais de saúde
de se recusarem a participar em atividades que violem as suas crenças
religiosas ou morais – como um farmacêutico que se recusa a vender a “pílula do
dia seguinte”. As leis que originalmente se destinavam a proteger as minorias
religiosas são agora manipuladas para contornar a legislação contra a
discriminação ou a justiça mais básica.
·
Um referendo na Romênia
Tomemos o exemplo da Romênia e do seu referendo de 2018
sobre a reforma constitucional. O objetivo era fechar a possibilidade de no
futuro aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo – e de outros direitos
associados, como a adoção – numa tentativa de incluir na Constituição uma
definição de casamento como “a união entre um homem e uma mulher”. Para conseguir isso,
foi lançada uma iniciativa legislativa popular – outra das suas
ferramentas favoritas – que obteve os três milhões de assinaturas necessárias.
Foi promovida a partir de 2015 por um grupo da sociedade civil denominado
Coligação pela Família, que se declarou “não religioso” e que obteve o apoio da
coligação no governo chefiada pelo Partido Social Democrata (PSD).
A manobra do PSD pode ser enquadrada na clássica guerra
de gênero como uma estratégia temporária para obter apoio popular em tempos
difíceis. Por um lado, pela sua filiação na social-democracia, este partido
estava simbolicamente ligado à esquerda, ou seja, ao universo do antigo partido
comunista, de acordo com os esquemas políticos da região. O apoio aos direitos
das dissidências sexuais está aí relacionado com a adesão ao marxismo, que
produz rejeição numa parte significativa da população. Por outro lado,
assume-se que nas zonas rurais, onde o PSD tem mais apoio, as pessoas mostram
valores mais conservadores e foi a elas que esta medida foi dirigida. Naquela
época, Liviu Dragnea, presidente do Congresso, estava envolvido em vários casos
de corrupção, enfrentando um problema de falta de legitimidade e perda de apoio
popular. Alguns meses antes, ocorreram fortes protestos que foram duramente
reprimidos. Ao mesmo tempo, a UE acusou o governo de atacar a divisão de
poderes devido à sua pressão sobre o poder judicial – enquadrando-a nos
ataques que também estavam ocorrendo na Polônia e na Hungria. Neste contexto,
os agentes anti-gênero promoveram a iniciativa do referendo constitucional que
o governo estava disposto a apoiar. Chegou até mesmo a modificar a lei
eleitoral para reduzir os requisitos de participação necessários para mudar a
Constituição: estes passaram de 50% para 30%.
A Coligação para a Família era uma plataforma
constituída por organizações fundamentalistas de vários tipos, especialmente a
APOR – uma Associação de Pais a favor da religião semelhante à CONCAPA
[Confederación Católica Nacional de Padres de Familia y Padres de Alumnos]
espanhola – ligada à Arquidiocese de Bucareste, ou seja, contava com o apoio da
Igreja Ortodoxa – majoritária na Romênia. Outras ONGs religiosas também participaram,
como a Associação de Famílias Católicas Romenas e outros grupos ultra
anti-aborto, como Vita București e Alianța Familiilor – também favoráveis às
terapias de conversão. A plataforma contou com forte apoio de organizações
ligadas à direita cristã estadunidense: Alliance Defending Freedom (ADF),
Liberty Counsel, Congresso Mundial de Famílias (WCF) e Centro Europeu de
Direito e Justiça (ECLJ). Estas organizações forneceram argumentos jurídicos
para o processo legal, patrocinaram várias
conferências no parlamento, promoveram as suas próprias
campanhas e fizeram lobby pela
mudança .
A ADF e o Liberty Counsel apresentaram, cada
um, documentos consultivos ao Tribunal Constitucional – Amicus curiae –, que teve de decidir
sobre a constitucionalidade do referendo. O Liberty Counsel tinha 68 páginas e
fornecia uma lista de casos com argumentos jurídicos destinados a demonstrar
que o “casamento tradicional” é uma instituição anterior ao Direito e “não pode
ser modificado por lei”. Toda a produção se baseou no que se tem chamado de
“ideologia de gênero”, influenciando argumentos supostamente extraídos da
ciência e de caráter irrefutável. Explicava que negar que o casamento seja a
união entre um homem e uma mulher implica renunciar à verdade em favor de uma
“construção social artificial de natureza ideológica (…) Essa ideologia, por
sua vez, baseia-se na experimentação humana, especificamente no abuso de
crianças e numa concepção demográfica tendenciosa que visa mudar a ordem social
estabelecida”.
O seu relatório salientava “os efeitos nocivos do ‘casamento’
entre pessoas do mesmo sexo num punhado de nações que tentaram esta experiência
social” e falava contra a revolução sexual. Estes argumentos foram fundamentais
para refutar os relatórios apresentados por diversas organizações
internacionais de ativismo LGTBIQ, como a ILGA Europa e a Anistia
Internacional. Também utilizou toda a panóplia dos argumentos habituais contra
o que chamam de “colonialismo ideológico”: “A Romênia e outras nações
tradicionais da Europa têm sido submetidas à pressão externa para abandonarem a
sua herança, tradições e soberania em favor da agenda homossexual promovida a
partir do estrangeiro”, explicam em seu
site.
A campanha foi acirrada e misturou fale news e pânicos morais
sobre a infância ameaçada: “Se você não vai votar, dois homens poderiam adotar
seu filho”, dizia a propaganda
da Coalizão pela Família. Contudo, o projeto de reforma não atingiu a
participação mínima necessária. Apenas 21% do eleitorado votou, por isso não
foi aprovado. Desde então, foram promovidos referendos semelhantes em outros
países da região, como a Eslovênia, em 2015, com o apoio do ADF. Neste caso
também não foi aprovado – pouco mais de 63% votaram contra e apenas 36,5% a
favor. Contudo, mesmo que as propostas ultradireitístas não avancem, as guerras
de gênero lançadas nestes processos são úteis para promover o quadro
conservador e dominar a agenda enquanto durarem. Além disso, introduzem no
debate público representações negativas das dissidências sexuais e promovem a
sua desumanização, para que estas pessoas vejam agravada a discriminação
cotidiana que sofrem, que também pode ser vivida sob a forma de violência individual
ou coletiva – como acontece nos casos levados a cabo por movimentos
neonazistas e similares que são apoiados por este marco do debate
público.
Fonte: CTXT – tradução Rônei Rodrigues, em Outras Palavras
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