André Singer: “Nova
classe trabalhadora não está satisfeita com governo Lula. É um
fenômeno de classe”
O alinhamento do
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) com
uma parcela importante da camada mais pobre da população continua fiel,
passados mais de 20 anos de seu primeiro governo. São pessoas com renda
familiar mensal de até dois salários mínimos e reúnem a maioria dos brasileiros
que apoia o governo petista.
Quem cita o
panorama é André Singer, professor titular do Departamento de
Ciência Política da USP, para afirmar que "ainda está de pé" o
"lulismo", o termo cunhado por ele para descrever essa conexão entre
Lula e base da sociedade, para além do próprio Partido dos Trabalhadores (PT).
No entanto, à
medida que a renda sobe, o governo Lula começa a encontrar dificuldades. São
obstáculos atribuídos por Singer às transformações mais recentes do capitalismo
e estão ligados nos últimos anos ao aumento do custo de vida e às mudanças no
mercado de trabalho, e não apenas no Brasil.
Em entrevista à BBC
News Brasil, Singer, que foi porta-voz do primeiro governo Lula (2003-2007),
analisa esse momento atual e aponta alguns dos principais desafios para o PT,
que sua família ajudou a fundar.
"O PT é
herdeiro da tradição da classe trabalhadora organizada. E ele tem dificuldades
diante de uma classe trabalhadora profundamente desorganizada, eu diria até
estruturalmente desorganizada", diz ele, autor de Os sentidos do
lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018).
Poucos dias após
esta entrevista concedida em São Paulo, a chamada crise do
Pix se instaurou, pressionando o Planalto.
Em meio a fake news
e boatos de que o Pix seria taxado ou que o monitoramento levaria a uma maior
tributação, o governo precisou recuar da medida tomada, que aumentava a fiscalização
das transações.
Algo acrescentar
sobre o tema?, perguntou a reportagem a Singer logo depois. Ele disse que ainda
era cedo para uma posição mais substantiva sobre a crise, mas frisou: "A
polêmica mostra como o tema do trabalho informal por parte de pequenos
empreendedores ganhou relevância no Brasil de hoje."
Na conversa, além
dos destinos de Lula e seu partido, Singer também falou das perspectivas da
direita e da direita radical para 2026.
<><> Confira
os principais trechos da entrevista:
·
Somente
cerca de um terço dos brasileiros aprova o governo Lula, segundo o Datafolha, e
ele não consegue subir esse percentual, apesar de indicadores econômicos, como
o baixo desemprego. Por quê?
André Singer
- Se olharmos os resultados de apoio ao governo por renda, a gente observa
que, entre os que ganham até dois salários mínimos de renda familiar mensal,
que é a base da pirâmide social, o apoio [ao governo] vai para 46%. Portanto,
poderíamos dizer que se a sociedade brasileira fosse só composta desse setor, que
é quase a metade da população, as condições de governo estariam bem melhores.
Porque a partir de 50% [de aprovação] você começa a considerar que um governo
está indo para as condições de reeleição, e 46% está bastante perto de 50%.
Portanto, eu diria que isso mostra que o realinhamento eleitoral de 2006, que
diz respeito ao lulismo, está funcionando.
Houve um
realinhamento por meio do qual a base da sociedade brasileira colocou o Lula
como seu representante. E o Lula, por sua vez, se tornou o representante desse
setor. É isso que eu chamo de lulismo. Isso está de pé.
Porém, daí para a
frente, ele cai abruptamente pra cerca de 27% [de aprovação]. Perde 20 pontos
percentuais quando você passa dos eleitores que ganham até dois salários
mínimos de renda familiar mensal, para os que ganham de dois a cinco salários
mínimos. Isso é impressionante.
E o que acontece, a
meu ver, é um fenômeno de classe. Você está transitando do subproletariado para
o proletariado. Esse setor que está mais integrado, que é, vamos dizer, o
proletariado, não está satisfeito.
·
Por
quê?
Singer - Acho
que um dos elementos da insatisfação tem a ver com o custo de vida, que esteve
significativamente alto o tempo todo, e não baixa. Agora, com o que aconteceu nos
Estados Unidos, ou
seja, a derrota do Biden, dá para ver que esse é um fenômeno mundial. Tem um
problema mundial de aumento do custo de vida, que está pegando, provavelmente,
as cadeias produtivas desde a Covid, que foram desorganizadas e, possivelmente,
essa desorganização foi potencializada pela guerra na Ucrânia, que aumentou o
preço dos combustíveis.
Tem uma onda, não
só inflacionária, mas especificamente do aumento do custo de vida para as
pessoas de baixa renda.
O outro fator tem a
ver com a mudança do mercado de trabalho no Brasil. Depois do impeachment da
presidente Dilma, tivemos a reforma trabalhista com perda acentuada de direitos
e praticamente dez anos de intensa transformação tecnológica, em que o trabalho
por plataformas entrou com uma força que não existia até então. E com isso você
tem uma fragmentação da antiga classe trabalhadora que ganha agora uma forma
nova. Você tem levas de trabalhadores, em boa parte jovens, mas não só, que não
têm a experiência do trabalho em fábrica, do trabalho sindicalizado ou
sindicalizável. Você tem essa nova modalidade que se usa chamar de
empreendedorismo, mas que na prática é uma inserção precária no mercado do trabalho,
marcada pela superexploração.
O problema é que
isso tem um efeito perverso. As pessoas que não passaram pela experiência
anterior acham que o mundo é assim e que, portanto, é preciso se virar por
conta própria. Essas pessoas se tornam razoavelmente vulneráveis a uma
ideologia de extrema direita que vai na direção de eliminação do Estado.
Daí para frente,
você tem um terceiro fenômeno, que é a oposição ao governo. Sempre existiu, e
se não houver oposição, não tem democracia. E [neste caso] é a oposição da
classe média, que não enxerga nesse governo o seu governo. Historicamente, era
assim quando o PSDB era forte, mas vai se radicalizando até chegar ao ponto de
eleger o [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Essa base, que era uma base do PSDB,
se deslocou para a extrema direita. E, em parte, ainda está lá.
·
Não
é um paradoxo o Partido dos Trabalhadores não conseguir dialogar com essa
classe trabalhadora que está crescendo cada vez mais?
Singer - Eu
não acho que seja um paradoxo. Eu preferiria chamar de um efeito perverso, da
maneira pela qual o capitalismo está se desenvolvendo no mundo. Essas coisas
nunca são deliberadas, porque não existe uma pessoa orientando o capitalismo. O
que existe é o resultado, como diria [Karl] Marx, do desenvolvimento das forças
produtivas.
O capitalismo
contemporâneo está dissolvendo a antiga classe trabalhadora, à medida que vai
havendo a desindustrialização. O PT é um partido herdeiro da tradição da classe
trabalhadora organizada. E ele tem dificuldades diante de uma classe trabalhadora
profundamente desorganizada, eu diria até estruturalmente desorganizada. Porque
é isso que o capitalismo contemporâneo está fazendo.
Em uma perspectiva
de futuro longínqua, é possível imaginar que ela vai acabar se organizando, mas
vai demorar muito tempo. Porque as condições são totalmente adversas. Vamos
imaginar o tempo em que o Marx escreveu. Não é o sindicato que organiza os
trabalhadores. O sindicato serve de veículo para uma organização que já existe.
É o próprio capitalismo que organiza o trabalhador na fábrica. É por isso que o
Marx diz que o capitalismo produz os seus coveiros.
Só que agora não
tem mais isso. O sujeito que trabalha por plataforma compete com o colega.
Primeiro que ele não sabe quem são os competidores, eles não se encontram, eles
não dividem o trabalho, cada um faz o seu. Não há uma linha de produção
dividida, não há como fazer automaticamente uma greve.
·
Nesse
sentido, existe uma crítica de que o PT não abraçou necessariamente a pauta do
fim da escala 6 por 1, um tema caro aos trabalhadores.
Singer - De
fato, é uma questão sobre a qual o partido devia se aplicar mais, porque eu
acho que ele justamente fala para esse setor, de dois a cinco salários mínimos
de renda familiar mensal. Da mesma maneira como me parece que a proposta de
isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais de renda familiar
mensal, fala para esse setor também.
O PT não pode
aderir a uma ideologia do empreendedorismo do salve-se quem puder. Isso é
contra os seus próprios princípios. É contra aquilo que ele veio para propor
para a sociedade brasileira.
·
Mas
isso está na mesa?
Singer - Eu
noto que há uma certa perplexidade, em particular com o que aconteceu em São
Paulo, onde isso foi muito nítido, o apelo do Pablo Marçal [o ex-coach que foi
candidato à Prefeitura de São Paulo em 2024 pelo PRTB] em relação,
por exemplo, aos moto-entregadores. E dentro dessa perplexidade, por vezes eu
vejo inclinações a querer adotar certas propostas, ideias que não fazem sentido
para um partido de esquerda. Como se fosse possível simplesmente trazer essas
propostas. Há um limite que é dado pela própria razão de ser do partido.
·
A
ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda e da contribuição para quem
tem renda superior a R$ 50 mil por mês foram, ao seu ver, medidas bem
comunicadas? Acha que as pessoas estão sabendo?
Singer - É...
Acho que as pessoas não estão... Talvez não estejam sabendo. Mas eu não sei se
o problema aí é de comunicação. O projeto de lei não foi ainda enviado ao
Congresso. E estamos diante de um Congresso em que a maioria conservadora é
nítida. Portanto, uma medida como essa não vai ter vida fácil. O eleitorado, de
modo geral, não está muito interessado no processo, mas sim no resultado.
·
A
direita radical se comunica muito bem. Bolsonaro fazia lives toda semana para
falar com seus eleitores e dizer o que estava fazendo, e usa bem as redes
sociais...
Singer - Acho
que há uma confusão nessa formulação. Não é que o Bolsonaro se comunica bem. É
que a internet é muito favorável, como o rádio foi na época do fascismo
histórico, para um tipo de comunicação muito direta e muito altissonante.
Porque isso chama muito a atenção.
Vou dar o exemplo
de novo do Trump, que por ser distante é mais fácil. Ele fala coisas absurdas.
E uma parte das coisas que ele fala tem só a função de chamar atenção. Porque
chamar atenção é o próprio objetivo.
·
O
Bolsonaro fazia o mesmo...
Singer
- Acontece que a esquerda não pode fazer isso. É contra, digamos, a missão
da esquerda. A esquerda quer um passo além do capitalismo e da civilização
capitalista. Se você começa a comunicar coisas absurdas, você está jogando tudo
para trás, o que a extrema direita faz. É regressivo. Se a esquerda adotar esse
tipo de conduta, ela se nega enquanto esquerda. Ela não pode fazer isso. É uma
questão de para quê ela existe. Aí o problema não é de comunicação.
A extrema direita
encontrou um espaço neste mundo porque o capitalismo fez as condições
regredirem a um tal ponto que propostas absurdas têm um lugar. Porque, de certa
forma, o capitalismo contemporâneo transformou a realidade em uma situação
absurda. Então, propostas absurdas têm lugar, mas se a esquerda cede a isso,
ela deixa de existir enquanto esquerda.
·
Falando
em Pablo Marçal, os chamados outsiders da política estão ventilando
uma possível candidatura em 2026 novamente, incluindo o candidato à
Prefeitura de São Paulo e até o cantor sertanejo
Gusttavo Lima (ainda
sem partido). Na visão do senhor, o PT tem se preparado para esse tipo de
embate?
Singer
- A candidatura do
Pablo Marçal em São Paulo mostrou duas coisas: a primeira é que a extrema
direita tem apelo eleitoral. Ainda que São Paulo não seja o Brasil, em alguma
medida as eleições em São Paulo são algo nacionalizadas e, feitas uma série de
mediações, expressam um pouco o que acontece no Brasil.
Dado esse contexto,
eu diria que a candidatura do Marçal mostrou a vitalidade da extrema direita,
porque ele praticamente chegou ao segundo turno sem apoio partidário nenhum,
tempo no horário eleitoral gratuito zero, só com base numa presença anterior na
internet e numa articulação cênica, digamos assim, de altíssima competência.
Não é tanto, digamos, a habilidade pessoal dele, e sim, a meu ver, a expressão
de um espaço político que existe.
Ao mesmo tempo, a
eleição mostrou que, isoladamente, a extrema direita não está em condição de
vencer hoje. É claro que daqui a dois anos as coisas podem mudar, não estou
fazendo uma previsão. Mas não só o Pablo Marçal acabou não indo para o segundo
turno: em várias capitais em que fenômenos do tipo Marçal, só que aí no caso,
apoiados pelo Bolsonaro, como foi Goiânia [com Fred Rodrigues, do PL],
Fortaleza [com o deputado
federal André Fernandes, PL] Curitiba [com Cristina
Graeml, do PMB]
e Belo Horizonte [com o deputado
estadual Bruno Engler, do PL], em todos esses casos você teve fenômenos
tipo Marçal, que chegaram ao segundo turno, praticamente empatando com
políticos com grande apoio de máquinas. Mas todos perderam. Ou seja, a extrema
direita tem chance, desde que ela se una à direita.
Essa minha
conclusão está respaldada pelas declarações que foram dadas logo após a eleição
por duas lideranças do campo da direita, que foram o Gilberto Kassab
(PSD) e
o Valdemar Costa Neto (PL), posicionados, neste momento, em campos distintos,
porque o Kassab está no campo da direita e o Valdemar Costa Neto está no campo
da extrema direita. Os dois viram que, sozinha, a direita não ganha e a extrema
direita também não. Há então um problema aí de unidade. Eu diria que, diante
disso, especificamente, o PT não tem muito o que fazer, porque é um problema do
outro campo.
O que você poderia
dizer é em que medida o PT está lidando com o problema da extrema direita, que
é o caso do Marçal. Eu diria que a saída para isso já foi dada em 2022 e, se a
situação se mostrar parecida, eu acho que ela vai ser colocada novamente como
saída: uma grande frente de todos os que quiserem salvar a democracia. Isso já
foi feito em 2022 e não me parece que haja nenhuma dúvida dentro do PT que, se
houver a mesma situação, isso vai voltar a se colocar.
·
Marçal
veio de um partido pequeno, sem tempo na TV, repetindo o que já havíamos visto
em 2018 com a candidatura de Bolsonaro, que não se aliou a ninguém e mesmo
assim venceu...
Singer - Em
2018, o que aconteceu foi que a extrema direita arrastou a direita. O
eleitorado de direita foi arrastado para o voto no Bolsonaro. Isso foi uma
onda, que se configurou enquanto onda quando ele sofreu o atentado. Até então, as
chances do [Geraldo] Alckmin [então candidato à presidência pelo PSDB] eram
razoáveis. Bolsonaro estava em uma ligeira queda e o Alckmin numa ligeira
ascensão.
Eu não estou
atribuindo tudo ao atentado, mas é que essas circunstâncias, por vezes,
potencializam tendências. Não foi o que se viu em 2022, quando houve a formação
de um bloco político-social novo, em que o bolsonarismo se apresentou como uma
alternativa, não foi uma onda.
Onda é quando uma
parte do eleitorado é tomada por um impulso de campanha. Tanto é assim que, em
2018, muita gente que fez campanha na periferia relatava que as pessoas diziam:
"Eu sei que o Bolsonaro tem esses problemas, mas se ele der errado, a
gente tira." Isso é uma forma de pensar que a pessoa está tomada por um
impulso momentâneo. Os estudos eleitorais captam isso.
Já em 2022 foi
diferente, foi uma opção mais organizada pelo Bolsonaro, que quase empatou a
eleição.
Estamos diante de
um outro tipo de cenário, que é: sozinha, a extrema direita não vence. E queria
acrescentar um elemento. O Bolsonaro está inelegível. E, estando inelegível,
isso cria um grande problema para a extrema direita, porque ele é o candidato
da extrema direita.
Bolsonaro é um
homem que tem carisma, dialoga com os setores populares no Brasil. Isso não é
pouca coisa. Eu diria que o único outro político que tem um diálogo com os
setores populares intenso é o presidente Lula.
Agora, ao ser posto
de lado, ele se transforma de uma vantagem em um problema. Primeiro porque ele
não podendo ser candidato, cria um vácuo. E ele, por razões táticas dele, não
quer e não vai deixar esse vácuo ser preenchido facilmente. Então ele está
criando, e, a meu ver, vai continuar criando, problemas para que esse vácuo
seja preenchido. Isso leva a extrema direita para uma situação difícil em 2026.
·
Lula
apareceu pouco nas eleições municipais
de 2022. Houve
uma questão relacionada à saúde, mas é só isso? Ou pode ter sido uma opção
política também?
Singer - Eu
não sei qual foi a estratégia que ele desenhou especificamente em relação a
alguns locais. Mas eu entendi que ele decidiu concentrar o esforço dele em São
Paulo. A meu ver, o fez. Os resultados acabaram não sendo os esperados, porque
ele não conseguiu transferir a base de [quem tem] até dois salários mínimos de
renda familiar mensal para o [Guilherme]
Boulos [candidato
do PSOL na chapa com o PT], que acabou ficando mais com o Ricardo Nunes. Em
outros locais, ele tomou uma decisão que é a seguinte: em locais em que havia
disputa dentro da base do governo, ele preferiu ficar afastado. Por razões que,
do ponto de vista do presidente, são compreensíveis.
É preciso fazer uma
distinção. Os interesses do presidente e do PT não são idênticos. O PT tem
interesses enquanto partido, que não são exatamente iguais aos interesses do
presidente, porque o presidente está apoiado numa vastíssima coalizão. E ele
está, a meu ver, olhando para 2026 com uma análise de que se ele não levar essa
coalizão para 2026, ele pode ter dificuldade.
·
Mas
existe uma certa resistência da ala mais à esquerda do PT de se aliar a
partidos do centrão.
Singer - Você
tem que distinguir duas coisas. Uma, é a frente democrática para derrotar uma
opção autoritária. Eu acho que isso ninguém questionou dentro do PT. A outra
coisa é, vamos dizer, uma frente mais orgânica que envolva uma mudança de
posição do próprio partido.
Aqui eu acho
importante recolocar as coisas numa perspectiva histórica. O PT é um partido
que tem o socialismo no seu programa. Se o PT continua sendo efetivamente
socialista, é uma discussão. Mas isso está no programa e na origem do PT, um
partido de esquerda no seu programa. O que está em debate, e não é um debate
significativo, é uma eventual mudança da identidade do PT.
Uma coisa é um
partido de esquerda entender que é preciso fazer uma frente tática para
derrotar um inimigo maior e comum. Isso faz parte da tradição histórica da
esquerda. Por isso que eu digo que não vejo nenhuma dificuldade dentro do PT em
relação a isso. O que há divergência é sobre a mudança da identidade do PT. O
que eu chamaria aqui de uma aliança mais orgânica com o centro e até mesmo com
o campo da direita. Tem partidos de direita, como, por exemplo, o Republicanos
e o PP, que estão no governo.
·
O
PT vai passar por eleições em julho para definir seu novo presidente. Até o
momento, Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara, está sendo ventilado como o
favorito de Lula para assumir o posto de Gleisi Hoffmann. Isso pode mudar os
rumos do partido em 2026?
Singer - Eu
não gostaria de me referir a nomes nesse momento, mas acho que talvez possa
haver uma alteração. Não é muito claro, porque acho que as candidaturas não
foram ainda apresentadas com clareza. Mas eu percebo dentro do partido um debate
por vezes subliminar que vai nessa direção, de em que medida o partido deveria
fazer um deslocamento mais ao centro com vistas, digamos, a ter supostamente
maior sucesso eleitoral.
Pode ser que essa
sucessão partidária coincida com um debate que acabe tendo algum resultado
maior. Mas não dá para afirmar isso antes de entender como essa competição vai
realmente se estruturar.
·
E
como o partido está formando sucessores? O PT tem debatido sucessão?
Singer - O
problema da sucessão de um líder carismático é sempre muito difícil. É aquilo
que o [Max] Weber chamava de rotinização do carisma. Na verdade, quando isso
acontece, você tem uma transição completa, de certa forma.
O Lula é um líder
carismático que é excepcional e confirma, aliás, a própria definição conceitual
do que é carisma. Qualquer que seja o resultado, ele vai ser difícil nessa
sucessão. E não seria de se esperar que houvesse imediatamente um outro líder
carismático que pudesse substituir esse líder.
Quando Lula não for
mais candidato, vai se formar um vácuo. E como ele vai ser preenchido, eu não
sei. O PT, eu tenho a impressão que seria natural que ele tivesse, e imagino
que já tenha, uma série de quadros, porque é um partido grande, enraizado
regionalmente, tem vários governadores e governadoras, prefeitos e prefeitas
com experiência política, capacidade administrativa, visão de mundo.
O problema, e eu
diria que acontece sempre que você tem a situação de uma liderança carismática,
é a sucessão dessa liderança carismática. Sempre é, de certa forma, traumático.
·
Existe
um risco do PT perder relevância quando Lula morrer?
Singer - É
impossível predizer o que aconteceria quando Lula sair da política. O PT tem
todas as condições de continuar sendo um partido muito importante no Brasil.
Não tem nenhum outro partido com o grau de apoio que o PT tem no Brasil. É
claro que há muita rejeição também, mas isso faz parte do jogo, porque um
partido da importância do PT também é natural que ele seja muito rejeitado. E o
PT é o partido mais sólido que existe hoje no Brasil.
Então, em tese, o
PT não deveria perder relevância. Aí a questão talvez seja de pensar não na
sucessão do Lula enquanto liderança carismática, mas pensar na direção do
partido. Lula também orienta o partido e ele tem uma visão da política. Para dirigir
um partido como o PT, precisa ter muita sabedoria no sentido de achar o
caminho.
A minha análise da
política brasileira é que você tem, fundamentalmente, três grandes campos, que
não se confundem com um partido, mas os partidos navegam nesses campos: um
campo popular, um campo de classe média e aquilo que eu chamo de partido do
interior, que é um conglomerado que, de modo geral, coincide com o centrão.
O PT é o principal
partido do campo popular. Em condições democráticas, o campo popular não vai
deixar de existir. Ele existe desde que o Brasil se democratizou, em 1945. E
vai continuar existindo, se houver democracia.
O grande problema é
que as tentativas de golpe, às vezes bem-sucedidas, às vezes malsucedidas, como
aconteceu em 2022, são para que o campo popular seja excluído da política.
No Brasil, uma
parte das classes dominantes preferiria, às vezes com mais intensidade, às
vezes com menos, que não houvesse essa competição eleitoral. Mas, havendo, e o
PT sabendo se colocar, acho que não haveria por que ele perder relevância.
Fonte: BBC News
Brasil
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