Israel, um Estado-nação
muito peculiar
Inegavelmente Israel é uma nação e um Estado muito
especiais, peculiares, no concerto das nações. Nascida a nação de um projeto
consciente de emigração de judeus e de expulsão dos “não-judeus”, o sionismo,
para se estabelecerem, colonizarem, lutarem por espaço vital e criarem as bases
de um futuro Estado judeu. Tal se concretizou através da promoção pela via
armada de uma enorme operação de limpeza étnica dos então habitantes históricos
da Palestina sob mandato britânico desde 1918, na sequência da derrota turca,
anterior potência ocupante, na I Guerra Mundial.
O projeto sionista engrossou em massa crítica, força
política e militar e em legitimidade internacional, após a derrota da Alemanha
nazista e a terrível verdade escancarada para o mundo que consistiu no
Holocausto. O apoio dos judeus em todo o mundo e a emigração para Israel dos
sobreviventes na Europa, refugiados e judeus cidadãos de diversos países,
tornaram-se uma vaga imparável. O que culminou com a resolução da ONU de 1947
em promover a partição da Palestina em dois territórios, com vantagem espacial
para a população judia em detrimento dos palestinos, árabes ou cristãos,
beduínos ou de outras etnias minoritárias, sensivelmente o dobro da população
judia na época.
As guerras entre Israel e países árabes (1948/49, 1967,
1973), os conflitos entre resistentes palestinos e o Estado judeu, antes e
depois das Intifadas,as invasões no Líbano com massacres em campos de
refugiados, os ataques terroristas de ambos os lados, os assassinatos seletivos
de dirigentes da resistência palestina, de políticos e altos quadros dos países
vizinhos , em especial do Irão, o cerco a Gaza desde 2005 e sua evolução para
um campo de concentração atenuado a céu aberto, tudo isso, por diversas razões,
redundou no fortalecimento político e militar do Estado de Israel.
Uma potência tecnológica, uma economia do conhecimento,
um grande produtor de armas, com poderosas Forças Armadas, as IDF (Israel
Defense Forces), que se confunde com o Estado e a nação. Em muitos poucos
países as forças armadas têm o grau de legitimidade e integração ideológica e
prática com os cidadãos, como acontece em Israel. Cidadãos que são reservistas
muito bem treinados e ativos militarmente até os 50 anos de idade.
O apoio de toda ordem dos Estados Unidos, em especial,
mas também do “Ocidente alargado”, ao qual Israel pertence, apesar de sua
posição geográfica, foi e continua sendo essencial para o atual status quo. É de um general
norte-americano a expressão de que Israel “é um enorme porta-aviões ancorado no
meio de um território hostil ao Ocidente”. Algo pelo estilo.
A especificidade e o empoderamento de Israel derivam
também do enorme sofrimento dos judeus europeus consubstanciado no Holocausto.
O genocídio promovido pelo regime nazista colocou a Alemanha, mas, de certo
modo, toda a Europa e o “Ocidente alargado” em dívida com o povo judeu. O
sionismo ganhou, com esta enorme tragédia, o impulso que faltava para garantir
o apoio internacional à criação do Estado judeu, a “terra para um povo sem
terra”, numa divisão desigual na Palestina britânica, em favor do Estado
nascente. Este “crédito” quase ilimitado com que Israel conta desde sua criação
se traduziu de diferentes formas e ações.
A violência do ataque do Hamas em 7 de outubro só fez
renovar este crédito, como se viu no apoio dado pelo Ocidente à reação de
Israel, no aval dado a partir de então às ações de invasão e retaliação, de
vingança pura e dura pela ousadia do Hamas de invadir e matar (em) território
de Israel. No passado, o apoio diplomático e repressivo da Inglaterra, potência
ocupante, à causa sionista foi fundamental, desde a Declaração Balfour de 1917.
As tropas e a administração inglesa aliaram-se abertamente aos grupos sionistas
nos anos 1930 e massacraram muitas aldeias palestinas, além de as mapear
geográfica e politicamente para o Haganah. A partir dos anos 1960, o apoio
norte-americano e europeu ao Estado de Israel só fez crescer e há muitos anos,
este é o receptor da maior ajuda externa dada pelos EUA a outro país. Curiosamente
o Egito de Anwar Sadat foi o segundo maior receptor por muitos anos.
Desde cedo, legitimado pela derrota imposta aos
vizinhos em vários guerras, Israel cresceu com a liberdade que se outorgou de
atacar seus vizinhos quando, onde e como considerou conveniente, para
neutralizar ameaças ou conquistar território. Israel conta há muito de uma
espécie de “licença para invadir e matar” e é o que assistimos há decênios no
pobre Líbano e mais recentemente na Síria. Dois Estados falhados, dilacerados
pela divisão multi-étnica e pelo regime de terror dos Assad e que agora são
fustigados sem fim à vista pelas IDF. O que sobrará destes dois sofridos
países, não se sabe.
Todo este multifacético empoderamento do Estado de
Israel ao longo de sua ainda curta existência, onde o exercício da força ante
os inimigos internos e externos é marca registrada, também se fez com o apoio
da chamada “opinião pública” e de inúmeros governos do “Ocidente alargado”.
Onde a versão de Israel sobre o conflito é a dominante. É raro vermos nas
televisões e jornais o ponto de vista da Al-Jazeera e dos dirigentes do Hamas
ou outros responsáveis palestinos e árabes. A maior parte dos países europeus,
com exceção da Espanha e Irlanda, se omite na condenação da política de terra
arrasada e morte da população de Gaza. O massacre sistemático, através de
bombadeios aéreos e das ações terrestres das IDF é “vendido” como guerra ao
Hamas, um bando de “não humanos”.
A prometida investigação do governo de Israel e das
chefias das IDF sobre a realidade do 7 de outubro é adiada para um futuro
longínquo. Mas alguns fatos são evidentes: Benjamin Netanyahu e as IDF sabiam e
acompanharam a preparação da invasão por parte do Hamas e outros grupos. Esta
se fez de forma escancarada e motivou relatórios internos das forças de
fronteira. Alguém duvida que os serviços secretos israelenses tinham e têm
infiltrados no seio dos grupos palestinos? Sendo assim, é forçoso concluir que
os altos mandos israelenses toleraram e contaram com a ação ofensiva dos
insurgentes. Com quais fins? Talvez não previram o êxito destas ações,
desprezaram a capacidade tática dos invasores e confiavam nas forças militares
de fronteira. Que, aparentemente, não foram reforçadas na sequência dos claros
indícios da preparação da invasão.
Esta foi um êxito militar e causou um enorme embaraço
para as IDF, ainda por explicar. Foi seguida de um verdadeiro pogrom sobre
moradores dos kibutzim próximos e
dos assistentes de um festival musical muito próximo à fronteira, permitido
pelas autoridades. As forças militares de fronteira foram fragorosamente
derrotadas e tiveram, segundo informações oficiais, mais de 300 mortos, além de
soldados capturados. Em relação aos 800 a 900 civis mortos pelo Hamas, é certo
que houve também baixas de “fogo amigo”. Os insurgentes foram de uma enorme
impiedade ao assassinar centenas de civis indefesos. E deram assim, por sua
ação, a justificativa que Israel precisava para invadir e promover a destruição
material de Gaza e o massacre de uma parte significativa de sua população.
A inviabilidade de Gaza enquanto território próprio de
palestinos, com um mínimo de instituições, escolas, hospitais, apoio
humanitário internacional a uma população sem oportunidade de ter uma economia
própria, não é o único objetivo estratégico dos altos mandos de Israel,
governado por uma coligação do Likud e mais cinco partidos de extrema-direita,
com amplo apoio popular e no Knesset, o parlamento unicameral. Benjamin
Netanyahu e demais dirigentes perceberam que estava criada a oportunidade de
uma ofensiva em grande escala, com ganhos territoriais quer na Cisjordânia,
quer nos países fronteiriços. Sem falar na promoção de limpeza étnica dos
não-judeus onde possível, de fustigamento militar sobre os “inimigos de Israel”
no Líbano, Síria e até no Irão, o inimigo maior. A possibilidade de uma guerra
aberta contra o Irão está no tabuleiro. Naturalmente se contar com o apoio
político e militar dos EUA de Donald Trump.
Vários dirigentes israelenses têm defendido que a
ofensiva sobre Gaza é uma oportunidade para “varrer” sua população para o
Egito, onde passaria a viver em acampamentos de refugiados, até com ajuda
financeira de Israel e de organizações de apoio humanitário. Mais um importante
passo para a desejada expulsão de não-judeus das terras que os religiosos e
muitos judeus consideram ser suas desde os tempos bíblicos.
·
O Plano Dalet
A limpeza étnica é uma consequência básica do ideal
sionista. Já na década de 30 o Haganah, embrião das IDF, eleboraram e
executaram planos de expulsão dos palestinos árabes de suas terras e moradias
na Cisjordânia e no território depois definido para o Estado de Israel pela
ONU. Estes planos ( A, B e C) são conhecidos dos historiadores israelenses
entre os quais se destava Ilan Pappé, foram sendo elaborados ao longo dos anos e
culminaram no “chamado Plano Dalet ou “D”, que contava com todos os arquivos e
mapas dos vilarejos, com a lista de alvos humanos elaborado entre o outono
de 1947 e a primavera
de 1948. Segundo os
historiadores, como Walid Khalidi e Ilan Pappé, seu objetivo era
conquistar o máximo da Palestina mandatária e criar um estado exclusivamente
judeu, sem uma presença árabe, por qualquer meio, em conformidade com o que
Ben-Gurion dissera em junho de 1938 ao executivo
da Agência
Judaica:
“Eu sou pela transferência compulsória. Não vejo nada de imoral nisso.” O Plano
D foi, segundo Pappé, a maneira de executar essa diretriz: expulsão forçada de
centenas de milhares de palestinos árabes indesejados,
tanto de áreas urbanas como rurais, o que resultou em conflitos com mortes,
principalmente de civis palestinos, e cujos fatos ainda são controversos.”
(Wikipédia).
O que se viu nestes anos todos e com singular
intensidade a partir do 7 de outubro foi e é, de certo modo, a continuidade do
Plano Dalet, que combina eliminação física de insurgentes ou simples pessoas da
população não-judia com a limpeza étnica, consubstanciada na deslocação forçada
da população, condenada a viver em acampamento e no incentivo a que os
palestinos deixem o espaço vital conseguido e ampliado por Israel, desde 1948.
Num excelente artigo da jornalista portuguesa Alexandra
Prado Coelho ela chama a atenção para o que qualifica como “o mais exaustivo
relatório que um indivíduo fez desde 7 de Outubro: “Chama-se Bearing
Witness to the Israel-Gaza War e é um trabalho escrito e compilado
pelo israelita Lee Mordechai, historiador da Universidade Hebraica de
Jerusalém, doutorado em Princeton. Mordechai, 42 anos, encontrava-se numa
sabática nos EUA no 7 de Outubro. Queria fazer algo, e a partir de Dezembro
começou a reunir informação além da que estava a ser vista pela maioria das
pessoas em Israel. Em Março de 2024, o documento tornou-se viral no ex-Twitter
em hebraico. Mordechai ampliou o alcance: para seja quem for que queira saber.
Esclarece no começo: “Não recebi qualquer pagamento para escrever este
documento, e fi-lo em compromisso com os direitos humanos, a minha profissão e
o meu país.” Viu milhares de imagens horríveis. Não as mostra no texto, dá os
links. Não usa palavras como “terrorista” ou “sionismo”. Chama “militantes” ou
“operacionais” aos membros do Hamas… Tudo isto já estava documentado, e
Mordechai compila muitos exemplos. Mas talvez a parte mais singular do
relatório, pelo próprio facto de ser israelita e falar hebraico, seja o que ele
expõe sobre Israel, o ponto a que chegou a desumanização dos palestinianos. E
eis a chave, diz Mordechai: a desumanização dos palestinianos é o que permite
este horror”.
“Li o documento: é um texto claro, sucinto, quase
sempre factual, com poucos adjectivos. Considera o ataque do Hamas e outros
grupos a 7 de Outubro uma atrocidade. Tal como considera a resposta de Israel
um genocídio, e no fim explica porquê.”
Fica aqui a sugestão para a leitura tanto do artigo da
jornalista como do relatório do historiador israelense.
Dou como assente a conclusão do relatório, que também é
a de várias entidades internacionais, insuspeitas de parcialismo: O Estado de
Israel vem praticando desde o 7 de outubro uma campanha de massacres
continuados dos palestinos de Gaza que pode ser qualificado como genocídio.
·
A liquidação da solução dos dois Estados
A solução de dois Estados é um projeto de criação e de
coexistência pacífica dos Estados independentes de Israel e da Palestina que visa
acabar com as disputas de soberania política, territorial e militar na região.
A primeira proposta para a criação de Estados judeus e árabes no Mandato
Britânico da Palestina foi feita no relatório da Comissão
Peel de 1937. Ao rejeitar a
criação do Estado de Israel em 1948, a resistência palestina e vários países
árabes entraram em guerra com o nascente Estado e foram derrotados. Assim, a
criação do Estado da Palestina ficou adiada. Com as guerras que se seguiram,
1967 e 1973, Israel ocupou a Cisjordânia (1967) e continuou a boicotar de
diversas formas a possibilidade de criação de um Estado rival.
Várias tentativas de busca de solução para a chamada Questão
Palestiniana foram realizadas pelos Estados Unidos, em particular no governo
Clinton, com o Acordo de Oslo e com várias resoluções da ONU.
“Em 1974, uma resolução
sobre a “Solução pacífica da questão da Palestina” exigia “dois Estados, Israel
e a Palestina, lado a lado dentro de fronteiras seguras e reconhecidas” junto
com “uma resolução justa para a questão dos refugiados em conformidade com
a Resolução
194 da ONU “.
As fronteiras do Estado da Palestina seriam baseadas nas “fronteiras
pré-1967“,
ou seja, as fronteiras anteriores à Guerra
dos Seis dias.
A última resolução, em novembro de 2013, foi aprovada por
165 a 6, com 6 abstenções, com Israel e Estados Unidos votando
contra.” (Wikipedia)
De todas as idas e vindas sobre a hipotética criação de
um Estado soberano palestino, ao longo destes 75 anos de existência do Estado
de Israel, o que se pode concluir é que para as lideranças e mesmo para a
maioria dos cidadãos judeus de Israel esta solução deixou de a ser há muito
tempo. Já não importa o que pensava Golda Meir ou Shimon Peres, líderes
históricos de centro-esquerda. Nem as idas e vindas da diplomacia de Israel e
mundial. O que realmente conta são os fatos.
As negociações, resoluções e exortações, misturadas com
as guerras, Intifadas, massacres em campos de refugiados palestinos, como
Shabra e Shatila, no Líbano e ações terroristas de parte a parte, foram o pano
de fundo para uma ação consciente de vários governos israelenses no sentido de
ocupação/colonização de fato da Cisjordânia, que oficialmente não pertence a
Israel. Ao mesmo tempo que Israel retirou-se de Gaza em 2005, deixando que os
muitos refugiados e nativos administrassem este território, em conjunto com
Israel e com organizações internacionais.
Um concessão temporária, que ajudou a espicaçar as
rivalidades entre as organizações representativas dos palestinianos (OLP, Hamas
e outras menores). É sabido que o governo Netanyahu apoiou o Hamas de diversas
formas ao longo de muitos anos, por conveniência. A “concessão” terminou com o
7 de outubro, assim como a própria existência de Gaza foi e continua sendo
colocado em causa.
A base territorial principal do que poderia ser um
Estado palestiniano é a Cisjordânia. Assim seria antes de 1967 e da consecução
de uma política consciente de Israel de colonização e “judeização” da
Cisjordânia, ao mesmo tempo que exerce uma ocupação militar fortemente repressiva.
Desde 1967 terão sido assassinados ou mortos em confrontos, normalmente pedras
contra tanques, feridos e aprisionados dezenas de milhares de habitantes da
Cisjordânia, “governada” por uma corrupta e pouco prestigiada Autoridade
Palestiniana. Em abril de 2024, 9500 prisioneiros estavam nos cárceres de
Israel, alguns há mais de dez anos ou mesmo 20 anos, como Marwam Barghouti, o
mais prestigiado líder popular da Palestina, encarcerado desde 2002.
“Em julho de 2021, tinha uma população estimada de 2,9
milhões palestinos nos territórios controlados pela Autoridade Palestina, com
670 000 colonos israelenses vivendo na Cisjordânia em 2022; aproximadamente
227100 colonos israelenses viviam em Jerusalém Oriental em 2019.”(Wikipedia).
Desde 2021 os números de colonos judeus aumentaram, inclusive em zonas
fronteiriças com o Líbano. Já há reivindicações de candidatos a colonos no
norte de Gaza, na sequência de uma limpeza étnica desta zona fronteiriça,
empurrando seus antigos habitantes para o centro e sul de Gaza.
Benjamin Netanyahu com seu partido Likud e outros da
extrema direita religiosa ou ideológica governam Israel há muito tempo, desde
2009, com uma pequena interrupção. Antes já tinha governado de 1996 a 1999. Foi
o grande propulsor, mas não o único, em favor da colonização/ocupação da
Cisjordânia, incentivando e protegendo os colonatos. Sua agenda é cristalina, a
do Sionismo mais radical, mais consequente, a da criação do Grande Israel, com
a expulsão e ou subjugação da população não-árabe aos desígnios da “única
democracia do Médio Oriente”, este bordão tantas vezes repetidos no “Ocidente
alargado”.
A solução de dois Estados já foi suficientemente
enterrada por Israel, a maioria dos seus partidos e da opinião pública. A
insistência nela por parte de quase todos os países, desde EUA até a China,
está carregada de hipocrisia, conivência para muitos e impotência ante o
voluntarismo do projeto sionista. Somente uma mudança radical do panorama
regional e internacional poderia forçar Israel a concessões significativas.
O que veremos no futuro imediato ou a médio prazo serão
mais massacres, mais prisões, mais repressão por parte de Israel sobre os
palestinianos de Gaza e da Cisjordânia, assim como mais incursões agressivas
sobre os vizinhos enfraquecidos. Com Donald Trump tudo piorará.
·
O suicídio moral de uma nação
Há alguns meses atrás testemunhamos as enormes
manifestações dos cidadãos judeus de Israel contra a resolução do Knesset de
limitar os poderes do Judiciário, um golpe escancarado contra a democracia,
hoje congelado, porém não anulado. Depois vimos as manifestações pela
libertação dos reféns, o que implica em concessões significativas ao Hamas.
Benjamin Netanyahu, arguido em processos de corrupção a aguardar julgamento,
não só conseguiu resistir no poder como fortaleceu-se. Seu ministro de Defesa,
um pouco menos “falcão” e preocupado com as IDF, demitiu-se.
As negociações para a troca de reféns por prisioneiros
e por um cessar-fogo tropeçam na inflexibilidade do governo de Israel, é o que
tudo leva a crer. Os partidos extremistas fortaleceram-se na coligação
governamental. Os colonos na Cisjordânia, empoderados, mataram vários e
continuam aterrorizando, com apoio militar, os palestinos residentes. Campos de
refugiados são bombardeados também na Cisjordânia. Tal como se vê pelo mundo
afora, também o Estado e a sociedade israelense caminharam para a direita nos
últimos anos.
Até o Haaretz, prestigiado
jornal independente, tem sido hostilizado pelo governo e chamado de “traidor”.
Amos Oz, as vozes do humanismo judeu, as agrupações ou partidos conotados com
um pensamento de esquerda ou mesmo moderado, vão se definhando. Uma sociedade
refém (em parte construtora) de uma Nação e um Estado agressivos,
militarizados, prepotentes, apoiantes da limpeza étnica, do horror quotidiano
em Gaza, da expansão territorial sob o disfarce de “criação de zonas-tampão”.
O mundo assiste e, em grande parte é cúmplice de um
paradoxo. Um povo que sofreu perseguições ao longo de séculos, que culminaram
com o horror do Holocausto, atualmente apoia, na sua maioria, o que para muitos
é um genocídio continuado. Se não genocídio, no mínimo, uma ação consciente de
violência extrema por parte de um Estado poderoso contra uma população quase
indefesa. A disparidade de forças é quase infinita. Se o que se viu e se vê em
Gaza não são, no mínimo, odiosos crimes de guerra, perseguição impiedosa de
civis, mulheres e crianças na maioria, fustigados pela fome e por absoluta
falta de condições de sobrevivência, então o que são?
Citando o relatório do professor Lee Mordechai, “é a
desumanização dos palestinianos é o que permite este horror”. E este horror,
apoiado ativamente ou aceite pela maioria dos cidadãos judeus de Israel, aponta
ou reflete uma quase falência moral de uma sociedade. Quando um cidadão comum, não
extremista, fala na televisão que tem pena do que acontece em Gaza mas…”são
eles ou nós”, a que ponto chegou esta sociedade?
Repito o que escrevi num artigo há três meses
atrás: “Pode um país, uma nação, um Estado, sobreviver e evoluir cercado de
inimigos ou pelo menos de países não amigos. Tendo que gerir autoritariamente
territórios ocupados com populações hostis? Um Estado que se permite declarar
como “persona
non grata”
o secretário-geral da ONU? Por quanto tempo e a que preço para sua população,
para sua economia?
Israel tem o direito de existir, mas as bases de sua
existência basearam-se em grande parte no desrespeito aos direitos inalienáveis
dos palestinos, que lá viviam há tantos séculos. Há um pecado original, cujas
consequências foram negativamente potencializadas e atualmente estão ao rubro,
em matéria de impossibilidade de convivência.
Desejo um futuro de paz para Israel, um país
extraordinário sob vários aspectos. Mas que necessita de, no imediato, se
livrar de Benjamin Netanyahu e de sua governança da extrema direita belicista.
E mudar radicalmente de atitude em relação aos palestinianos e a seus vizinhos
e com quase todo o mundo. De abdicar da arrogância e da estratégia de assentar
sua existência num Estado militarizado e numa guerra mais ou menos permanente
contra seus “inimigos”.
Infelizmente esta mudança é pouco provável a curto e
médio prazo, a não ser que na sequência de tragédias advindas do recrudecer do
conflito com o Irã.
Esperemos que sejam evitadas”.
Fonte: Por Carlos Henrique Vianna, em A Terra é Redonda
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