O mistério de por
que a covid-19 parece estar se tornando menos letal
Quando os
virologistas observaram pela primeira vez a variante XEC da covid-19, que começou a se
tornar dominante no outono de 2024 no hemisfério norte, os sinais iniciais
foram ameaçadores.
Última descendente
da variante ômicron do
SARS-CoV-2, a XEC surgiu por meio de recombinação, um processo que
leva duas outras variantes a formarem juntas seu material genético.
Os testes pareciam
indicar que este processo permitiria que a nova variante se esquivasse
facilmente da proteção imunológica oferecida pelas infecções passadas ou das
últimas versões das vacinas contra a
covid-19, baseadas nas variantes mais antigas JN.1 e KP.2.
"A proteína
spike é bastante diferente das variantes anteriores, de forma que foi muito
fácil prever que a XEC tem potencial para evitar a imunidade induzida por
infecções pela JN.1", declarou o professor de virologia Kei Sato, da
Universidade de Tóquio, no Japão. Ele realizou um dos primeiros estudos sobre a
variante XEC, publicado em dezembro de 2024.
Nos Estados Unidos,
especialistas em doenças infecciosas se prepararam para um possível surto de
hospitalizações, imediatamente após o feriado de Ação de Graças – o que não
aconteceu.
Testes de
vigilância, que envolveram a avaliação de covid em amostras do esgoto das
principais cidades, indicaram que a variante XEC certamente estava infectando
as pessoas. Mas a quantidade de pacientes hospitalizados foi consideravelmente
menor do que nos invernos anteriores.
Dados dos Centros
de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês)
indicam que a taxa de hospitalizações no início de dezembro de 2023 era de 6,1
a cada 100 mil pessoas. E, durante a mesma semana de dezembro de 2024, o índice
caiu para duas a cada 100 mil pessoas.
O que aconteceu?
"Neste
momento, estamos observando níveis muito baixos de pessoas com a forma grave da
doença, apesar da quantidade astronômica de covid encontradas no esgoto",
afirma o professor Peter Chin-Hong, da Divisão de Saúde de Doenças Infecciosas
da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos.
"Isso
simplesmente mostra que, independentemente do quanto uma variante pode parecer
assustadora no laboratório, o ambiente onde ela aparece é muito mais
inóspito."
Algumas indicações
sugerem que a covid em 2025 é uma doença mais leve. Os conhecidos sintomas de
perda de olfato e paladar, por exemplo, estão se tornando menos comuns.
É verdade que
algumas pessoas estão sendo hospitalizadas e morrendo, mas Chin-Hong afirma que
a ampla maioria dos pacientes será assintomática ou sofrerá um resfriado muito
leve, que alguns poderão muito bem confundir com uma alergia sazonal, como a
causada pelo pólen.
Os indivíduos
imunocomprometidos ainda são particularmente vulneráveis, mas o professor
acredita que o principal fator de risco para a forma mais grave da covid,
agora, é simplesmente ter mais de 75 anos de idade.
Ainda assim, os
especialistas aconselham que todos os grupos vulneráveis tomem a última vacina
contra a covid-19. Ela pode fornecer proteção vital contra a doença grave,
hospitalização e morte. E, embora a variante XEC aparentemente cause doença
mais leve, não há como garantir que outras variantes mais graves não irão
surgir no futuro.
Isso significa que
a ameaça representada pela covid-19 está longe de ser eliminada e que o vírus
não deve ser subestimado. Os especialistas acreditam que ele continuará sendo
uma ameaça persistente e significativa para a saúde pública.
O risco de
desenvolver covid longa também não desapareceu e, para algumas pessoas, esta
condição pode durar anos.
Na Faculdade de
Medicina Icahn em Mount Sinai, em Nova York (EUA), o professor de microbiologia
Harm Van Bakel é um dos líderes do Programa de Vigilância de Patógenos.
O programa aplica a
última tecnologia da genômica para acompanhar em tempo real as infecções
fúngicas, virais e bacterianas no sistema de saúde do hospital Mount Sinai.
Van Bakel conta
que, no inverno atual da região, os dados demonstram que a covid apresenta
relativamente poucos casos até o momento, mesmo com o surgimento da variante
XEC.
"Eu diria que,
nos últimos seis meses, ficou relativamente calmo", explica ele. "Em
comparação com outros vírus respiratórios, eu diria que o SARS-CoV-2 talvez
represente, pelo menos em casos de hospitalização, cerca de 10% das infecções
por vírus respiratórios que estamos observando nesta estação."
Mesmo quando os
pacientes são internados no hospital, os protocolos de tratamento foram
sensivelmente alterados nos últimos dois a três anos.
Chin-Hong relembra
que os pacientes recebiam imediatamente anticoagulantes ou medicamentos para
diluição do sangue, para reduzir a possibilidade de formação de coágulos. Hoje,
isso não é mais considerado necessário.
Esteroides como dexametasona
ainda são usados em certos casos graves, mas ele afirma que estes tendem a ser
exceções e os antivirais são o tratamento predominante.
"Acho que a
ômicron e suas subvariantes se concentraram cada vez mais em causar sintomas de
resfriados mais leves no trato respiratório superior, em vez da pneumonia e de
algumas das manifestações invasivas que observamos no passado, como doenças
cardiovasculares e coágulos", explica o professor. "Isso significa
que, quando as pessoas chegam ao hospital, elas costumam entrar e sair em
espaço de tempo mais curto."
·
O
que está acontecendo agora?
Como parte do seu
trabalho rastreando diversos vírus respiratórios na Faculdade de Medicina da
Universidade de Missouri, nos Estados Unidos, o virologista molecular Marc
Johnson emprega todas os mecanismos possíveis para examinar os níveis de covid
em circulação atualmente. E, como Chin-Hong, ele também pode confirmar que o
vírus está presente em grandes quantidades.
"Começamos a
fazer amostragens do ar em muitos locais pela universidade e é bastante raro
retirarmos uma amostra entre os estudantes sem detectar covid", ele conta.
"Ainda estamos sendo expostos por todo o tempo, mas a maioria das
infecções simplesmente é atenuada."
Deduzir qual é o
motivo desta atenuação não é uma tarefa fácil.
Sato explica que
uma das razões que fazem com que as novas variantes da covid, muitas vezes,
pareçam muito mais assustadoras do que são na realidade é o fato de que a
virulência é tipicamente testada por meio da injeção do vírus em hamsters. "Mas
é claro que os hamsters não foram vacinados."
"Os hamsters
são muito similares aos humanos de 2019. Eles não têm imunidade específica
contra o SARS-CoV-2 e, por isso, a situação com os humanos de 2025 é bem
diferente."
Mas os níveis de
anticorpos – a forma mais facilmente mensurável de imunidade – não parecem
estar contribuindo sensivelmente para a nossa capacidade de atenuar as formas
mais recentes de covid.
Os índices de
vacinação em todo o mundo estão despencando. No final de dezembro, dados dos
CDC indicavam que apenas 21,5% dos adultos e 10,6% das crianças receberam a
vacina contra a covid 2024-2025 nos Estados Unidos.
E, quando Sato e
sua equipe estudaram a variante XEC, ela aparentemente se esquivou com
facilidade dos anticorpos neutralizantes decorrentes das infecções pelas
subvariantes anteriores da ômicron.
Para Chin-Hong,
existem duas possibilidades.
Uma delas é que a
ampla maioria das pessoas já foram vacinadas e infectadas tantas vezes que seus
corpos desenvolveram uma poderosa memória imunológica da aparência atual do
vírus. Isso significa que as novas infecções são rapidamente removidas antes
que possam penetrar mais profundamente no nosso corpo.
O professor
acredita que a queda progressiva dos números de novos casos de covid longa é
outra indicação desta possibilidade.
"Mesmo se a
covid entrar, ela será agora identificada e expulsa do corpo com bastante
eficiência", explica Chin-Hong.
"Na maioria
das vezes, ela não permanece por tempo suficiente para causar doença grave ou
problemas crônicos", prossegue ele. "Com a covid longa, uma das
hipóteses é que o vírus acione essa reação imunológica aberrante, mas não
consiga mais permanecer por muito tempo, reduzindo o risco de ocorrência."
A segunda
possibilidade é que a covid tenha entrado na rotina, o que irá torná-la cada
vez mais leve até que passe a ser similar ao resfriado comum. Chin-Hong afirma
que isso faz sentido, particularmente quando traçamos paralelos com surtos
históricos de coronavírus.
"As pessoas
costumam examinar pandemias de gripe, como a gripe espanhola de 1918, em busca
de indicações sobre o que poderá acontecer com a covid", explica ele,
"mas os coronavírus podem ser inerentemente diferentes da gripe. Por isso,
os coronavírus do passado podem oferecer melhores indicações sobre o
futuro."
"De forma
geral, parece que poderemos observar doenças menos invasivas e menos covid
longa com o passar do tempo e o aumento da imunidade da população – mesmo com a
contínua evolução do vírus, criando variantes como a XEC, que parecem
assustadoras no laboratório."
Até agora, a última
"supervariante" da covid ainda é a ômicron, que surgiu em novembro de
2021, após as variantes anteriores, alfa e delta. Dezenas de subvariantes
surgiram nos últimos três anos, mas nenhuma delas gerou alterações radicais na
trajetória da covid.
Mas Johnson afirma
que, se um indivíduo imunocomprometido for infectado agora com uma linhagem
mais antiga de covid, como a variante delta de 2020, ela pode gerar algo
radicalmente diferente. Ele acredita que essa infecção pode ter impacto mais
grave em termos de doença e hospitalização, pois a variante pareceria
totalmente estranha para o nosso corpo.
"Elas não são
tão comuns quanto no passado, mas ocasionalmente ainda detectamos algumas
dessas linhagens do primeiro ou do segundo ano [da pandemia]", ele conta.
"Sabemos que
existem pessoas que sofrem infecção pela delta [identificada pela primeira vez
na Índia, em dezembro de 2020]. Se houvesse um surto de uma dessas linhagens
mais antigas e ela começasse a ser mais transmitida, a imunidade das pessoas
ficaria meio que confusa, pois ela pareceria ser muito diferente de tudo o que
já vimos nos últimos três anos."
Também é plausível
que possa ocorrer algo ainda mais estranho. Johnson indica que existem sinais
iniciais de que a eventual trajetória da covid pode fazer com que a transmissão
do vírus passe a ocorrer por via fecal-oral. Com isso, ele ficaria mais
parecido com o norovírus, cólera ou hepatite A do que com o resfriado comum.
Na plataforma X,
antigo Twitter, Johnson se descreve como "detetive do esgoto". Ele
afirma que o rastreamento da covid nos encanamentos pode trazer algumas das
previsões mais reveladoras sobre o vírus.
O SARS-CoV-2 ficou
conhecido por persistir no intestino, às vezes, por muito tempo. E Johnson e
seus colegas identificaram diversos indivíduos que parecem ter infecções
intestinais persistentes.
Isso foi possível
porque foram encontrados vírus da covid com padrões incomuns de RNA apenas no
sistema de esgoto, não em amostras de ambientes clínicos, como hospitais. E
essas "linhagens crípticas", como são chamadas, são excretadas
repetidamente pelos mesmos indivíduos anônimos específicos.
O palpite de
Johnson é que isso acontece ocasionalmente, quando uma linhagem de covid
adquire mutações que permitem que ela se transforme em uma infecção
gastrointestinal persistente. Ele acredita que, como resultado, é plausível que
o SARS-CoV-2 acabe eventualmente encontrando uma forma de se transmitir por
partículas de fezes, como fazem outros vírus pela via fecal-oral.
"É desta forma
que são transmitidos muitos coronavírus de morcegos", destaca Johnson.
"É
interessante que os ancestrais evolutivos da covid não eram vírus
respiratórios, mas entéricos [que moram no intestino], transmitidos pela via
fecal-oral, como pela água e alimentos contaminados ou por contato
interpessoal. Por isso, é possível que a covid venha a se tornar um patógeno
transmitido apenas pelos alimentos, mas isso provavelmente não irá acontecer em
curto prazo."
A outra questão
importante são as possíveis consequências da infecção gastrointestinal mais
longa causada pela covid e até que ponto ela será comum.
Para tentar
descobrir mais a respeito, Johnson tenta recrutar para um estudo pessoas que
tenham sofrido problemas gastrointestinais de longo prazo após a infecção aguda
por covid.
Ele acredita que é
particularmente importante para a saúde pública tentar entender algumas das
consequências das infecções intestinais de longo prazo pelo vírus.
Johnson observou
que, após um período de tempo, às vezes de vários anos, a maioria das linhagens
crípticas identificadas repetidamente por ele no esgoto acaba desaparecendo.
"Meu palpite é
que a pessoa morre, mas não sei ao certo, nem por quê", explica ele.
"Existem muitas perguntas sem respostas."
Por isso, embora a
ampla maioria das infecções por covid pareça ser benigna, pesquisadores como
Johnson e Chin-Hong insistem que ainda é importante vacinar as pessoas e que as
empresas continuem trabalhando para desenvolver a próxima geração de vacinas.
Além dos reforços
anuais, Chin-Hong afirma que a próxima fase do desenvolvimento de vacinas
contra a covid são as vacinas de mucosa, que podem realmente prevenir a
transmissão do vírus, não apenas a doença e infecções graves.
Também existem
trabalhos em andamento para desenvolver uma vacina universal contra a covid,
que não precise ser atualizada todos os anos.
"Por fim, o
que irá acontecer com a covid ainda é um tanto imprevisível", segundo
Chin-Hong.
"Como ainda
existe algum risco de doença grave e hospitalização, continuamos precisando de
melhores vacinas e produtos terapêuticos, pelo menos para algumas pessoas no
futuro."
Fonte: BBC Future
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