Crise climática condena
uma geração inteira a nascer e viver sob condições de calor sem precedentes
No ano em que o
Acordo de Paris completa 10 anos, é importante entender quais são suas metas de
longo prazo e o que elas significam para esta e para as próximas gerações.
Em
um cenário otimista, se as metas do Acordo de Paris forem cumpridas, a
crise climática terá sido resolvida ao final do século 21. Até
lá, porém, a crise deve se agravar em meados deste século, quando muito
provavelmente ocorrerá um período de “overshoot” (do inglês, ultrapassar).
Durante esse período, a temperatura média do planeta
deverá estar acima da meta proposta
pelo Acordo.
Após
este período de overshoot - que pode durar de uma a várias décadas -, a
temperatura começará a cair até se estabilizar em 1,5°C na virada do século 21
para o século 22.
A
geração que fatalmente viverá suas vidas inteiras dentro deste período de calor
sem precedentes na história da humanidade já tem nome: “Geração
Overshoot”.
Para
tentar garantir o sucesso do Acordo de Paris, esta geração terá a
árdua missão de remover da atmosfera uma enorme quantidade de GEE (Gases do
Efeito Estufa). Ainda não é claro, porém, se tecnologias para
remoção de GEE existirão na escala necessária para que essa geração possa
evitar um colapso climático ao final deste século.
Nessa
incerteza quanto ao futuro, o conflito entre os interesses da geração atual e
os interesses da geração overshoot é um tema que merecerá mais discussão nos
próximos anos e décadas.
·
Trajetórias
possíveis
O Acordo de Paris, firmado em 2015,
não estabeleceu um prazo concreto para o cumprimento das metas previstas no
Artigo 2, que trata de um limite aceitável para o aquecimento global:
“Manter
o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis
pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a
1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, reconhecendo que isso reduziria
significativamente os riscos e os impactos da mudança do clima”.
A
comunidade científica, de modo geral, entende que o
Acordo de Paris estipula metas para serem cumpridas até o final do século 21.
Existem duas razões para visarmos um marco temporal aparentemente tão distante
como esse.
A
primeira é uma restrição imposta pelo sistema climático do planeta: quanto
mais GEE são emitidos (especialmente o CO2), mais a temperatura média global se
eleva. Uma redução imediata das emissões de GEE, porém,
não seria acompanhada de um declínio imediato da temperatura média global.
Mesmo
que todos os países resolvessem eliminar hoje suas respectivas emissões, ainda
assim a temperatura continuaria se elevando por várias décadas, até que a média
global comece a regredir e se estabilizar em 1,5°C ao final do século 21.
A
segunda razão é uma restrição imposta por princípios de justiça. O Acordo de
Paris assumiu que os países mais pobres não
poderiam reduzir imediatamente as suas respectivas emissões sem comprometer o
próprio desenvolvimento e a perspectiva de erradicação da pobreza.
Assim, o Acordo de Paris estipulou também, no Artigo 4, que cada país poderia
continuar emitindo GEE até que suas respectivas emissões atinjam, o quanto
antes, um pico.
Após
o pico, as emissões devem ser então rapidamente reduzidas. A suposição de que a
meta de longo prazo, estipulada no Artigo 2, poderia ser atingida bem antes do
final do século 21, portanto, poderia se mostrar incompatível com a realidade
do sistema climático do planeta e injusto para com os países em
desenvolvimento.
O
problema, porém, é que o Acordo de Paris não estipula nenhuma “trajetória”
(pathway) específica para o cumprimento das metas de longo prazo. Existe uma
infinidade de trajetórias compatíveis com essas metas.
O melhor dos mundos
possíveis é aquele em que as metas do Acordo de Paris são cumpridas. No entanto,
dependendo de escolhas que se fazem hoje, o melhor dos mundos
possíveis pode também significar o pior dos mundos para a geração overshoot,
que terá de viver sob extremos climáticos sem precedentes na história da
civilização.
·
Conflito
de gerações
Países
como o Brasil têm uma prerrogativa legítima de querer alcançar o “nível de país
desenvolvido”. Com base nisso, o governo atual, ao invés de defender a redução,
defende a ampliação da exploração de petróleo. A Organização Nacional da
Indústria do Petróleo chegou mesmo a sugerir que a exploração na Margem
Equatorial brasileira seria de suma importância para as “futuras gerações”.
O
problema, porém, é que quanto mais exploramos combustíveis fósseis na geração
atual, maior será a elevação da temperatura para a geração overshoot – e por um
período mais prolongado.
O
que muita gente não percebe é que não importa se o petróleo a ser
explorado na Margem Equatorial nos próximos anos será consumido no Brasil ou no
exterior, as consequências para o clima são as mesmas,
pois GEE não veem fronteiras nacionais.
A
suposição de que a exploração na Margem Equatorial não envolverá riscos para o
meio ambiente não leva em consideração que o principal risco não é o de um
derramamento de óleo na região, mas o de um aumento da
temperatura global incompatível com as metas do Acordo de Paris.
Uma
coisa é “perder autossuficiência em petróleo em menos de 10 anos”, outra bem
diferente é perder a Amazônia devido à “savanização” e “colapso de
grande escala” da floresta. O mesmo se aplica ao Pantanal. A geração atual pode
lucrar com a exploração na Margem Equatorial. A geração overshoot, porém, terá
muito a perder.
Ter
clareza sobre essa questão é fundamental para que possa haver um entendimento
nacional e internacional sobre a trajetória a ser seguida no cumprimento do
Acordo de Paris.
Existe
atualmente a expectativa por uma transição energética justa. Mas a questão é
saber: justa para quem? Para a geração atual, para a geração overshoot ou para
as gerações que viverão no século 22? Beneficiar os interesses de uma geração
em detrimento das outras vai contra a ideia de justiça intergeracional.
·
Geração
overshoot e mitigações retroativas
Seria
talvez possível alegar que a geração overshoot não terá de enfrentar os mesmos
desafios que a geração atual está tendo de enfrentar. Ela herdará da geração
atual os benefícios da transição energética, mas sem que ela mesma tenha de
arcar com os custos da transição.
Segundo
essa alegação, em meados deste século as emissões globais já terão atingido um
pico e estarão retrocedendo em ritmo acelerado, rumo à estabilização da
temperatura em 1,5°C na virada para o século 22. A geração overshoot, assim,
terá todos os benefícios da energia verde abundante, contanto que a geração
atual tenha por enquanto a liberdade de emitir o que for necessário para
financiar o desenvolvimento humano e tecnológico que beneficiará as próximas
gerações.
Essa
alegação, no entanto, desconsidera um dado crucial sobre a crise climática – um
dado que tem sido inteiramente deixado de lado no debate público sobre
políticas para lidarmos com a crise.
Num
cenário bastante otimista, a geração overshoot não terá de passar pelo
sacrifício de reduzir as suas próprias emissões, já que ela supostamente
contará com novas matrizes energéticas que não envolvem a emissão e acúmulo de
GEE. No entanto, ela terá ainda assim de mitigar retroativamente as emissões
do passado – um passado que, obviamente, inclui o nosso presente. Denominamos
esse processo de “mitigação retroativa”, ou seja: remover da atmosfera os GEE
que não foram mitigados no passado.
Em
um relatório de 2014, o IPCC (Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) percebeu que a simples redução
das emissões de GEE, por si só, já não permitiria mais evitarmos uma tragédia
climática no futuro. Seria necessária também uma remoção substancial dos GEE já
acumulados na atmosfera.
O
IPCC alertou ainda para outro problema: não era claro se tecnologias para CCS
(Captura e Armazenamento de Carbono), incluindo DAC (Captura Diretamente do
Ar), poderiam ser implantadas em escala global a tempo de podermos evitar uma
catástrofe.
Em
2018, um novo relatório foi ainda mais reticente quanto à expectativa de que
tecnologias de CCS pudessem ser implantadas na escala necessária para garantir
o cumprimento das metas do Acordo de Paris.
É
importante não confundirmos aqui essas tecnologias com o tipo de tecnologia
que, por exemplo, a Petrobrás emprega para remoção de CO2 durante a exploração
de petróleo. Nesse caso, o CO2 é capturado e reinjetado no
poço de petróleo, mas com o objetivo de explorar mais petróleo ainda. O
que se ganha com a captura de CO2 é a capacidade de produzir ainda mais
emissões de GEE, que a geração overshoot terá de remover da atmosfera depois.
Para
agravar o problema, estudos recentes mostram que já praticamente não existem
mais trajetórias para o cumprimento das metas do Acordo de Paris sem a
utilização massiva de CCS.
Seria
talvez possível alegar que já existe um mecanismo bastante eficiente para fins
de captura e armazenamento de carbono: as florestas. No entanto, a suposição de
que a preservação de florestas e o reflorestamento de áreas desmatadas poderiam
servir de alternativa ao uso de tecnologias de CCS é bem pouco realista. A
quantidade de GEE que deve ser removida da atmosfera para o cumprimento das
metas do Acordo de Paris é superior à capacidade de absorção das florestas
atualmente existentes, ou em vias de recuperação.
Não
seria então mais racional investir no plantio de novas florestas ao invés de
investir no desenvolvimento de tecnologias de CCS? Em princípio, sim, mas
a criação de novas florestas em escala global demandaria uma quantidade
monumental de terras e de água. Isso poderia comprometer a
segurança hídrica e alimentar da geração overshoot.
Além
disso, é necessário levar também em consideração o tempo necessário para o
crescimento de novas florestas, e o risco de perdas resultantes de queimadas,
que se tornaram mais frequentes devidos às mudanças climáticas. Nesse
caso, as florestas deixam de absorver GEE e se tornam elas mesmas emissoras de
GEE.
O
cenário em que a geração overshoot terá de viver não é nada animador, mas ele é
ainda menos inóspito do que os cenários que as gerações subsequentes terão pela
frente, caso as metas do Acordo de Paris não sejam cumpridas.
Compete à geração
atual garantir que o período de overshoot seja tão breve quanto possível. Somente assim
a geração overshoot poderá não apenas se adaptar a cenários climáticos sem
precedentes, mas também legar às gerações subsequentes a esperança de cenários
mais promissores.
Fonte: g1
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