O golpe de Estado
algorítmico
A conjuntura: dias
antes, o CEO da Meta (empresa proprietária do Instagram, Facebook e WhatsApp)
anuncia publicamente o afrouxamento das políticas de checagem de informação em
suas redes, afirmando também que o mundo carece de “energia masculina” e dando
uma guinada ideológica de alinhamento ao novo governo Donald Trump e às pautas
de extrema direita no mundo.
A Advocacia-Geral
da União pede explicações aos representantes da empresa no país, salientando
que tal postura da empresa apresenta dano potencial à preservação dos direitos
de minorias étnicas, sociais e de gênero. O escritório da empresa no Brasil
responde protocolarmente que os direitos serão preservados.
O fato: em menos de
24 horas, um vídeo de um deputado de extrema direita brasileiro recebe mais de
150 milhões de visualizações no Instagram, cerca de três a quatro vezes o
número de acessos diários à rede a partir de endereços de IP brasileiros. O
material é cheio de informações falsas sobre uma suposta taxação do Pix,
mecanismo de transferência de valores muito popular.
O resultado: o
assunto rompe a bolha das redes e passa a ser discutido abertamente no
mundo off-line. A velocidade e o volume de propagação das informações
distorcidas foram tão grandes que, estrategicamente, somente restou ao governo
brasileiro recuar na proposta de combate à sonegação que originou as mudanças
na forma de processamento do Pix, sob promessas de “melhorar a comunicação” com
as pessoas e ameaças de processo criminal contra as e os difusores
das fake news.
Todo este caos que
gerou um forte desgaste do governo entre parte da opinião pública soa como uma
declaração de guerra dos quatro cavaleiros do apocalipse informacional (X,
Facebook, Instagram e WhatsApp) contra qualquer país ou instituição que
apresente propostas de regulação para a obtenção de mais-valia psíquica e
informacional. Como de hábito, a cruzada imperialista para a exploração das pessoas
precisa de disfarces palatáveis ao público.
Em nome do lucro,
hasteia-se a bandeira bizarramente distorcida do conceito de liberdade de
expressão. Não se duvide que, no futuro próximo, esse
conceito fake substituirá a propalada e desgastada “defesa dos
direitos humanos” como justificativa para os EUA invadirem militarmente países
e garantirem um gordo faturamento a seu complexo empresarial.
Se em outras áreas
o capitalismo soube se disfarçar sob o manto do progresso e da tão falada
civilização, sua vertente neoliberal informacional não tem pejo de se mostrar
na sua face mais selvagem, no melhor estilo “terra-sem-lei” dos filmes de
bangue-bangue, onde quem saca mais rápido a informação distorcida fere de morte
o inimigo.
Neste sentido, é
quase uma tautologia supormos que o caminho até 2026 e depois será de guerra
constante entre o complexo informacional dos EUA e as instituições brasileiras,
em mais um capítulo da guerra híbrida a que somos submetidos, no mínimo, desde
2013. O fato novo é a postura belicosa e escancarada pró-intervenção direta
das big techs e de seus criminal masterminds no processo
político e social brasileiro.
Porém, alguns
fatores precisam ser interpelados de frente para entendermos as ameaças
subjacentes a este processo. É bastante plausível – e já ocorreram casos no
passado, notadamente em 2016 – que a Meta tenha, por meio de direcionamentos
algorítmicos, “incentivado” as visualizações do vídeo em questão. Muitas
pessoas que não seguem o tal deputado ou desconhecem sua existência receberam o
vídeo diretamente ligado ao perfil deste político. Todavia, este procedimento,
isoladamente, não resolve todo o enigma.
Há algum tempo já é
possível afirmar que aquilo que erroneamente chamamos
de fake news não se restringe à desinformação, à notícia falsa
ou à boataria, constituindo-se em um modo de vida caracterizado pela
dissolução das fronteiras epistêmicas e ético-políticas entre verdade e
falsidade, construindo uma compreensão da realidade na qual somos agentes e
pacientes simultaneamente.
O fake tornou-se
o concreto, possuindo dimensão material e efeitos na chamada realidade,
desnudando algo que já estava presente no cotidiano: o ressentimento latente, o
medo generalizado, a antipolítica e a mentalidade de competição de todos contra
todos. Isso impacta não apenas a vida de quem, de certa forma, escolhe ou é
levado a escolher abraçar esta realidade paralela, mas todos os processos
sociais e a vida de todos os integrantes dos círculos relacionais nos quais
esta pessoa se insere.
A informação e a visão
de mundo tidas como falsas (por não corresponderem aos fatos) tornam-se o
próprio índice de verdade em si, uma verdade construída sem necessidade de
correspondência completa aos dados e que passa a ter valor absoluto para quem a
abraça, o que, no limite, chega a abarcar o próprio conceito do real e sua
compreensão deste. A pessoa que adota o discurso e a prática cínica não percebe
(ou escolhe ignorar) a dissonância cognitiva existente entre sua visão de mundo
e os processos que ocorrem na realidade. Isso é chamado, por Theodor Adorno e
Marilena Chaui, de cinismo.
Como exemplo, para
um/a terraplanista, fatos ocorrem e se explicam metodologicamente como se o
planeta fosse plano, independentemente do consenso científico e das explicações
corroboradas em sentido contrário à crença deste sujeito. Numa subversão
solipsista do método cartesiano, o fato da pessoa pensar tal absurdo dá a ela a
convicção que, pelo fato de poder ter sido pensado, há Verdade no pensado. Ou,
ainda, o indivíduo cínico pode até ter consciência do alcance de seus atos, mas
deliberadamente prefere não se importar com isso ou se esconder sob o dístico
de “apenas cumprir ordens” em nome de uma universalidade fictícia ou uma
coerência de superfície entre ação e pensamento.
Agora, o que esta névoa
entre a verdade e a falsidade tem a ver com o neocolonialismo informacional e a
pretensa tolice das pessoas em acreditar em informações sem pé nem cabeça e não
conferirem o que recebem? Dois fatores se sobressaem neste processo: a
existência de viés de confirmação prévio àquelas informações e algo que podemos
chamar de índice emocional da verdade.
No primeiro caso,
as pessoas tendem a aceitar como verdadeiras as informações às quais já possuem
alguma familiaridade ou que ressoam suas crenças prévias sobre o tema em
questão, tornando-se especialmente incisivas nas estratégias inconscientes de
persuadirem as e os demais. Somando-se a isso um estudo da
revista Science que apurou que uma informação distorcida tem
potencial e velocidade de compartilhamento até 100 vezes maior do que uma
informação verdadeira, é simples constatar que o volume de compartilhamento
sobe exponencialmente se alguma coisa da notícia já está pré-validada pelo
receptor e potencial emissor, principalmente se ataca um “inimigo” deste emissor
– e, na guerra santa da direita bolsonarista contra a “ameaça vermelha”, só o
fato de compartilharmos o mesmo oxigênio que eles coloca um alvo bem chamativo
em nosso peito.
Já o índice
emocional da verdade pode ser entendido como a relação emocional prévia não com
o conteúdo da informação, mas com a pessoa emissora. Você pode até saber que
sua tia compartilha notícias falsas no grupo de WhatsApp da família,
mas é sua tia, faz um café bom, etc., e você deixa barato, deixando inclusive
de corrigi-la. Outros parentes balançarão mais, pensando “será que ela está tão
errada assim?” e isso cria um ambiente favorável, no mínimo, à aceitação de
parte da história. Junta-se a isto a sensação de “dono da verdade” e de se
sentir especial que habita a mente de uma pessoa propensa a cair em fake
news (ela sabe a “verdade”, o resto do mundo não) e está dada a receita
para um desastre informacional sem precedentes.
Logo, o que fez a
notícia descabida sobre o PIX prosperar, além de um cálculo político bem
pensado da oposição e a little help from their friends das empresas
de tecnologia e redes sociais, alinhadas à extrema direita mundialmente? O medo
gerado pela informação distorcida.
Os golpes de Estado
contemporâneos não precisam de “um cabo e um soldado”, mas da manipulação da
percepção da realidade de uma população inteira com base em estímulos
emocionais. Sob a égide do medo, as pessoas abdicam da liberdade em prol da
segurança, e não se incomodam em ser oprimidas desde que possam transferir a
carga de opressão recebida para alguém mais “fraco” – ou seja, também querem a
chance de oprimir.
Querem crer no
falso por ser mais palatável que o verdadeiro, ou mais estimulante que este.
Querem crer, mesmo que não saibam que querem, pois isso proporciona satisfação
psicológica a elas. Amam ter medo, amam ter prazer – e isso se confunde.
Os moguls das
redes sociais entendem como ninguém como esta operação psicopolítica funciona,
pois é desta economia pulsional que retiram sua mais-valia assombrosa. Agora,
assim como os burgueses fizeram com os aristocratas na passagem entre a Idade
Média e a Idade Moderna, parece terem se cansado de “apenas” exercer o poder
econômico e político definindo os fluxos monetários, desejando no presente
tanto o culto à personalidade como a organização das estruturas políticas e
sociais à sua imagem e semelhança, sem a máscara de um estado pretensamente
impessoal a dificultar sua glorificação.
Combater este
aparato digital – mas, principalmente, este modo de vida no qual tanto os
megaempresários do ramo como o cidadão comum se compreendem como os
protagonistas de suas próprias histórias, aqueles que, com sua presença, fazem
a diferença no mundo (e outros jargões neoliberais meritocráticos) –
persistindo apenas em ferramentas analógicas como o ingênuo apelo à
racionalidade da política e da vida social, ao dever moral dos seres humanos em
agir categoricamente e outras platitudes carregadas de esperança, mas
completamente desajustadas da vida real, somente resultará em uma varrida sem
precedentes nos próximos anos.
A lei precisa ser
utilizada em toda a sua força, é claro, mas sem uma operação que funcione no
mesmo terreno – o pulsional – podemos até ter a certeza de que a verdade
factual está do nosso lado, mas receberemos em troca a manjada frase “isso é só
a sua opinião”.
Isso não é um
problema de comunicação da esquerda ou do governo, ainda que tenha havido
deslizes no processo. É uma questão de que este modo de vida fake é a
realidade em que vivemos hoje, uma realidade na qual até mesmo as lutas sociais
agem pelo princípio universal da concorrência de todos contra todos, no qual o
medo é estimulado para maior controle social. Sem decifrarmos o funcionamento e
as possibilidades desta esfinge, é certo que seremos devorados por ela.
Fonte: Por Benito
Eduardo Maseo em A Terra é Redonda
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