terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Marcelo Zero: O Brasil não está se afastando do BRICS; está se aproximando do mundo

Tenho lido e escutado, aqui e acolá, que a política externa do terceiro governo Lula está se afastando do BRICS, com “receio de desagradar os EUA”, justamente no momento em que Brasília assume a presidência do estratégico grupo.

Assim, o Brasil estaria preferindo, segundo essas versões, privilegiar suas relações com os EUA e aliados do Ocidente, em detrimento de uma aposta estratégica mais equilibrada com o BRICS e o Sul Global.

Tais afirmações:

1.    parecem presumir que o Brasil tem de aceitar o pseudo-dilema imposto pela nova Guerra Fria;

2.    não parecem apoiar-se em evidências empíricas sólidas.

Com respeito ao primeiro ponto, já escrevi, em diversas ocasiões, que o Brasil vê a ordem mundial como um jogo de soma positiva, no qual a ascensão e a prosperidade de novos atores não implicam, necessariamente, a ruína de protagonistas já consolidados. A prosperidade de uns pode e deve estimular a prosperidade de outros. Apostar em assimetrias e confrontos é burrice.

Já alguns, tanto à direita quanto à esquerda, vêem o mundo sob a ótica falaciosa de um jogo de soma zero.

Consideram que o Brasil deva ceder aos imperativos geopolíticos de uma nova e obtusa “Guerra Fria”. Em outras palavras, nosso país teria de fazer a falsa escolha entre ter boas relações com os EUA e o Ocidente ou ter relações igualmente densas com China, Rússia etc., além de ser um membro do BRICS.

Essa é a falsa escolha que os EUA procuram impor ao Sul Global, algo que deverá se aguçar, agora, com Trump e a nova hegemonia do MAGA.

O Brasil, evidentemente, não pode aceitar tal imposição, que limita sua projeção no mundo, contraria seus interesses e o obriga a “importar” conflitos geopolíticos.

Pelo mesmo motivo, não se deve supor que o Brasil, à frente do BRICS, adotará uma gestão que acirre os conflitos geopolíticos mundiais. Uma política de confronto com o “Ocidente”. Nem o Brasil, nem a China, nem a Rússia e nem o Sul Global desejam, a priori, uma política de confrontação. Ao contrário, procuram evitá-la, embora possam e devam reagir, se confrontados.

Dessa forma, o Brasil de Lula pratica uma política externa universalista e amplamente cooperativa. Não porque tenha “medo” de contrariar os EUA, mas sim porque essa é a política que convém mais aos seus interesses e à construção de uma ordem mundial mais pacífica, simétrica e inclusiva.

O Brasil, num cenário mundial complexo, conflitivo e mutável, tem de procurar oportunidades onde elas surjam.

Evidentemente, tal política não significa afastamento do BRICS ou de quaisquer outros grupos de países. Ao contrário, implica cooperação cada vez maior com esse grupo, o qual, goste-se ou não, vem reordenando a ordem mundial.

Quanto ao segundo ponto, os dados empíricos disponíveis indicam que as relações econômicas e políticas do Brasil com os demais BRICS vêm se adensando cada vez mais.

O crescente comércio é uma evidência empírica significativa do adensamento dessas relações.

Em 20 anos, a corrente do comércio bilateral entre o Brasil e a China passou de US$ 6,6 bilhões em 2003 para US$ 157,5 bilhões, em 2023.

Nesse último ano de 2024, as vendas para o Brasil foram as que mais aumentaram na balança comercial chinesa. O governo da China divulgou que a alta foi de 22%, na comparação com 2023. Assim, embora as exportações brasileiras para a China tenham apresentado diminuição conjuntural, a corrente de comércio atingiu nada menos de US$ 160 bilhões, recorde histórico. E os investimentos chineses no Brasil aumentaram 33%, somente em 2023.

Também com a Rússia, nossas relações e nosso comércio vêm se adensando, apesar das draconianas sanções internacionais. Em 2024, o comércio bilateral entre os dois países atingiu um recorde histórico. A corrente de comércio chegou a impressionantes US$ 12, 4 bilhões.

Com a Índia, outro grande membro do BRICS, a nossa corrente de comércio, em 2024 (US$ 12 bilhões), teve o seu segundo melhor ano, ficando atrás somente de 2022.

Ademais, do ponto de vista político, nossas relações diplomáticas e de cooperação continuam muito fluidas com todos os BRICS, inclusive com os novos membros, como a Indonésia, por exemplo.

Com a China, em particular, apenas nestes dois primeiros anos do terceiro governo Lula, foram firmados nada menos que 52 atos internacionais, entre protocolos, memorandos de entendimentos e acordos. Quinze desses atos internacionais foram firmados na visita que Lula fez a Beijing, em abril de 2023, e outros 37 foram assinados na visita de Chefe de Estado que Xi Jinping fez ao Brasil, em novembro do ano passado. Nunca se assinaram tantos atos internacionais em tão pouco tempo.

Nossa Parceria Estratégica com a China, que data de 1993, foi a primeira do mundo. Em 2012, a Presidenta Dilma Rousseff e o Primeiro-Ministro Wen Jiabao anunciaram a elevação do relacionamento sino-brasileiro ao patamar de Parceria Estratégica Global. Após um intervalo ocasionado pelo golpe e pelo governo Bolsonaro, a parceria agora passou a se chamar Comunidade de Destino Compartilhado Brasil-China por Um Mundo Mais Justo e Um Planeta Mais Sustentável. Trata-se de uma nova elevação na categoria da parceria, que revela maior densidade diplomática e confiança política.

Com respeito a adesão ou não do nosso país à Nova Rota da Seda, Brasil e China adotaram uma solução “confucionista”, a do “caminho do meio”.

Brasil e China explorarão as sinergias entre esse programa estratégico da China e os programas estratégicos do Brasil e da América do Sul, como a Nova Indústria Brasil (NIB), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Plano de Transformação Ecológica e o Programa Rotas da Integração Sul-Americana, para impulsionar a atualização e o melhoramento da qualidade da cooperação entre os dois países, promover os processos de modernização do Brasil e da China, e contribuir positivamente para a interconectividade e o desenvolvimento sustentável regionais.

Saliente-se que o Programa Rotas da Integração Sul-Americana prevê 5 grandes rotas que vão integrar a América do Sul, ligando o Atlântico ao Pacífico, a Amazônia brasileira ao Pacífico e ao Caribe etc.

Ou seja, o Brasil e outros países da América do Sul já têm um planejamento estratégico sobre o tema. A China cooperará com o Brasil, no âmbito dessa estratégia regional, numa sinergia soberana.

Dessa forma, o Brasil estabeleceu uma cooperação soberana com tal programa chinês, com base em seus interesses e planejamento próprios.

Por conseguinte, a não adesão pura e simples não é algo feito para agradar aos EUA, como dizem os incautos. É algo imposto pelos princípios da reciprocidade e da igualdade entre os Estados, e que revela o grau de maturidade e de confiança de uma relação bilateral de meio século.

Em suma, não há afastamento nenhum. Nem econômico, nem comercial e nem político entre Brasil e o BRICS ou entre Brasil e China. O que há é um adensamento crescente, que se não interromperá com o governo Trump.

Na realidade, o governo Trump deverá acelerar o processo de consolidação do BRICS e das relações entre o Brasil e o Sul Global, e mesmo entre o Brasil e parceiros mais tradicionais, como a União Europeia.

Com efeito, o protecionismo exacerbado de Trump e sua agressividade geoestratégica, inclusive contra aliados seculares dos EUA, como a Dinamarca e o Canadá, só vão acelerar as mudanças geoeconômicas e geopolíticas internacionais.

Em vez de tornar os EUA maiores, esse isolacionismo agressivo e irracional tenderá a apequenar a antiga potência hegemônica. O Brasil, o BRICS e o Sul Global se aproveitarão dos vácuos econômicos, comerciais e políticos criados pela irracionalidade trumpista.

Os EUA é que estão se afastando do mundo. O Brasil está fazendo o movimento inverso: está se aproximando, cada vez mais, do BRICS e do resto do planeta.

Lula é o oposto de Trump.

E, no longo prazo, quem apostar em cooperação, em paz, em preservação ambiental, em superação da pobreza e na eliminação das assimetrias é quem sairá ganhando.

É quem será grande, de verdade.

 

¨         Começa a era Trump, um período de mudanças no mundo e ameaças para o Brasil. Por José Reinaldo Carvalho

Donald Trump foi empossado presidente dos Estados Unidos nesta segunda-feira (20), marcando o início de seu segundo mandato à frente de um país que, embora mantenha características de superpotência, vive um período de declínio e diminuição de poder, fenômenos que estão na base do apelo principal de sua vitoriosa campanha eleitoral - Tornar a América Grande Novamente -, com vistas a promover transformações de envergadura e profundas nas políticas doméstica e externa dos Estados Unidos.

Há muita ansiedade e temor no mundo de que a reviravolta prometida por Trump represente um influxo ainda mais reacionário, com ameaças à democracia, à soberania nacional de países que lutam para firmar sua independência e agravamento de tensões, exacerbando rivalidades com países considerados rivais estratégicos, principalmente a China.

Há receios também quanto à possibilidade de retrocessos no enfrentamento da crise ambiental, no exercício do multilateralismo e no isolacionismo em termos de política econômica, provocando crises no comércio global. 

Trump ameaça assinar ordens executivas draconianas contra os imigrantes, provocando desde o início a acentuação de um grave conflito social. 

É grande na sociedade americana a inquietação para com o enfrentamento de questões sensíveis, como aborto, direitos das mulheres, direitos humanos, família, direitos das pessoas LGBT e exercício do supremacismo racista, prevalecendo a visão ultraconservadora da direita.Há ainda questões políticas e econômicas que podem alterar a configuração do exercício do poder nos EUA: hipertrofia do presidencialismo e aumento das desigualdades socioeconômicas. 

Para inverter a imagem negativa, e começar o mandato exibindo prestígio e força, Trump capitalizou a seu favor o acordo de cessar-fogo e troca de prisioneiros entre o Hamas e Israel e se apresentou como o líder que irá salvar a humanidade da 3ª guerra mundial. "Esse acordo só poderia ter acontecido como resultado de nossa histórica vitória em novembro", disse ele em comício realizado neste domingo (19). No mesmo discurso afirmou: "Eu acabarei com a guerra na Ucrânia, acabarei com o caos no Oriente Médio e impedirei que a Terceira Guerra Mundial aconteça - e você não tem ideia de quão perto estamos".

Trump apresenta também como um trunfo a medida que anunciou para breve de restaurar o TikTok nos Estados Unidos, para simbolizar a defesa da liberdade de expressão e a redução de um contencioso com a China, além de ser uma atitude simpática a milhões de usuários da rede social nos EUA, principalmente o público jovem. Decerto as primeiras pesquisas de opinião pública registrarão o bom acolhimento dessas declarações e medidas. 

Para as forças progressistas em todo o mundo, os temores com a gestão Trump se justificam pela reafirmação do lema "America First", que é a quintessência de seu projeto. Foi a ideia-força de sua campanha, quando reiterou a decisão de limitar o envolvimento dos Estados Unidos em alianças multilaterais, como a Otan, e na guerra da Ucrânia, que por pouco não levou o mundo a uma conflagração generalizada.

O mapa do caminho da política externa ainda não foi divulgado, deixando incertezas quanto aos impactos que o unilateralismo e o isolacionismo de Trump terão no enfrentamento dos principais focos de tensão no mundo. Existe a possibilidade de que a postura trumpista redunde em enfraquecimento da cooperação internacional, desmoralização das instituições multilaterais, militarização das relações exteriores e criação de tensões, mesmo que não se traduzam em guerras quentes de imediato. A retirada de compromissos multilaterais, combinada com a promoção de uma política agressiva e unilateral, pode acarretar instabilidades políticas e tensões regionais.

Trump deu declarações sobre a anexação do Canadá, a aquisição da Groenlândia e a reconquista do controle sobre o Canal do Panamá. É um misto de provocação política com expressão de força e nacionalismo, para dizer até onde poderia ir para realizar a ambição de tornar a América grande de novo. Comentários como esses reforçam uma visão nacionalista e expansionista, apelando para uma base política que valoriza a projeção de poder dos EUA.

O interesse na Groenlândia sugere que uma frente de luta será aberta em torno do Ártico, a manifestação sobre o Canadá pode ser um modo de constranger o país em disputas comerciais e a ameaça sobre o Canal do Panamá é mais um aviso sobre o rol de medidas que pode tomar de contenção da China, para cujo comércio internacional o canal desempenha papel estratégico.  

<><> Impacto na Ucrânia 

Trump prometeu encerrar a guerra entre Rússia e Ucrânia em "um dia", mas nçao detalhou como. Nem podia. Durante a campanha, criticou os altos valores de ajuda militar enviados pelos EUA à Ucrânia e sugeriu condicionar esse auxílio a conversações de paz com Moscou. Tudo indica que, ato contínuo à sua posse, Trump cairá na real sobre os prazos para alcançar a paz, que serão mais dilatados do que apenas “um dia”. No discurso deste domingo, fez uma afirmação peremptória da decisão de atingir esse objetivo e posou de paladino da paz mundial. Para confirmar sua disposição de andar rapidamente na direção de um acordo de paz na Ucrânia, impediu a presença de Zelensky na sua posse e acelerou os entendimentos para agendar um encontro de cúpula com o presidente russo Vladimir Putin

<><> Oriente Médio: cenário de maior instabilidade 

No Oriente Médio, não há dúvidas sobre o alinhamento de Trump com Israel. As sinalizações que deu até agora são no sentido de retomar os chamados Acordos de Abraão, iniciados em seu mandato anterior, buscando ampliar as alianças de Israel com países como a Arábia Saudita, na tentativa de isolar o Irã. Mas o ambiente regional não favorece de imediato a concertação de tais acordos, em face dos traumas provocados pelo genocídio na Palestina. Atuam também como fatores desfavoráveis a manobras diplomáticas efetivas a falta de compromisso de Trump com um cessar-fogo abrangente e permanente e sua posição de não reconhecer o Estado palestino independente. 

A relação com o Irã é especialmente crítica. Trump, que retirou os EUA do Acordo Nuclear em seu primeiro mandato, pode adotar uma postura ainda mais agressiva, reforçando sanções e ameaçando intervenções militares.

<><> China: “bom começo” ou aumento da rivalidade?

O maior foco de preocupações no mundo quanto à evolução da situação geopolítica reside no relacionamento dos Estados Unidos com a China. Os sinais emitidos por Trump ainda são contraditórios. Durante a campanha eleitoral e posteriormente, já na condição de presidente eleito, utilizou uma retórica anti-China inflamada, enfatizando a necessidade de intensificar as guerras comercial e tecnológica contra o gigante asiático, despertando o temor no mundo de que as relações entre EUA e China podem entrar em um período de confronto ainda mais acentuado, com repercussões desastrosas para o comércio global e a estabilidade geopolítica. Trump nunca escondeu que considera Taiwan como um ponto-chave para conter a China e já explicitou que fornecerá armas à província rebelde chinesa para “defendê-la de Pequim”. A China, por seu turno, já deu várias demonstrações na prática de sua capacidade para realizar o bloqueio militar de Taiwan e impedir por todos os meios qualquer aventura “independentista”. 

Mas às vésperas da posse, na última sexta-feira (17) , Trump surpreendeu o mundo com um telefonema amistoso ao presidente chinês Xi Jinping. Ele enfatizou que preza seu ótimo relacionamento com o presidente Xi, observando que "os EUA e a China são os países mais importantes do mundo hoje, e devem manter uma amizade duradoura e trabalhar juntos para salvaguardar a paz global" (Global Times, 19 de dezembro). O presidente Xi respondeu gentilmente que ambos os países são grandes nações e que "atribuem grande importância à interação entre si, esperam que os laços China-EUA tenham um bom começo no novo mandato presidencial dos EUA" (idem). Isto abre caminho ao agendamento provavelmente ainda neste semestre de uma cúpula entre Xi e Trump, à semelhança do que deve ocorrer entre o norte-americano e Putin.

É algo a conferir com o desenrolar dos acontecimentos se a rivalidade sairá do controle e extrapolará para conflitos abertos ou se o mundo assistirá a um turno de mais intensa atividade diplomática entre chefes de Estado de grandes potências, algo que poderá ser uma característica saliente do mundo multipolar. 

<><> Prováveis contrapesos 

Trump chega politicamente forte ao seu segundo e último mandato como chefe de fila do imperialismo estadunidense. E, para além da retórica inflamada, com claros efeitos publicitários e diversionistas, mostra também seu lado pragmático e traquejo para lidar com a realidade. 

Mas seu poder não é ilimitado. Há fatores objetivos e subjetivos que atuam como contrapesos e limites à sua ação: a força econômica, política e militar da China, nova superpotência, o poder da Rússia, cada vez mais consolidado e indivisível, a emergência do Sul Global, com suas reivindicações cada vez mais fortes por uma nova ordem econômica e política internacional. São os fatores incontornáveis do novo mundo multipolar, realidade que a política de “América First” de Trump não poderá desconhecer nem revogar. 

<><> As ameaças sobre o Brasil  

Na América Latina, a tendência previsível é o aumento dos ataques contra governos progressistas e movimentos populares que resistem à lógica imperialista. Não é de se surpreender que bloqueios econômicos sejam intensificados, que golpes sejam fomentados e que animado pelo propósito de defender a primazia dos interesses norte-americanos seja empreendida uma abrangente ofensiva contra os povos da região. Mas tampouco está descartado um tratamento pragmático para com a Venezuela, ao menos quanto a um acordo específico de compra de petróleo.  

Ainda que não esteja no centro nevrálgico das disputas geopolíticas, o Brasil sofrerá impactos da ação trumpista. Sua equipe já sinalizou que pode impor tarifas às exportações brasileiras e exercerá pressão para afastar o país da China, maior parceiro comercial. Há também sinais de que Trump privilegiará na América Latina as relações com o ultrarreacionário Javier Milei, que poderá ser utilizado como um aríete contra o Brasil e fator de desestabilização regional. 

São notórias as ligações de Trump com a extrema direita bolsonarista, o que implica riscos de pressões políticas antidemocráticas, inclusive no embate eleitoral de 2026 pela Presidência da República. 

É um quadro complexo que exigirá habilidade e firmeza do governo brasileiro. E muita ação política com caráter anti-imperialista por parte das forças progressistas.  

 

Fonte: Brasil 247

 

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