terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Novas hidrovias na Amazônia podem agravar mudanças climáticas, alertam especialistas

O Brasil está prestes a investir dezenas de bilhões de reais na construção de mais de 2 mil km de novos canais de navegação em rios da Amazônia – o que, segundo especialistas, pode resultar na conversão de terras de povos tradicionais à agricultura com alta emissão de carbono. Em outubro de 2022, o governo de Bolsonaro, que deixava o cargo, emitiu uma licença preliminar atestando a suposta viabilidade socioambiental dos primeiros 500 km de uma hidrovia Araguaia-Tocantins na Amazônia oriental, há muito sonhado, que pode chegar a ter entre 2 mil a 3 mil km de extensão. Em agosto, promotores federais entraram com uma ação civil pública pedindo que a licença da era Bolsonaro, que continha falhas “graves”, fosse anulada e que o Ibama fosse impedido de emitir a licença de instalação. Eles apontaram várias ilegalidades na licença prévia: “A licença nunca comprovou a viabilidade socioambiental”, disse o promotor Sadi Flores Machado à Mongabay.

Emitida com 27 estudos “pendentes”, sem os quais era impossível avaliar a viabilidade, a licença do trecho da hidrovia Araguaia-Tocantins nunca deveria ter sido concedida, constituindo “desvio de finalidade do Ibama”, acusam os promotores. “O número [de estudos que faltam] nessa fase é alto”, disse à Mongabay a ex-diretora do Ibama, Suely Araújo. “Você pode deixar algumas pendências na licença prévia, mas não estruturais, que sejam importantes o suficiente para mudar a viabilidade ambiental do empreendimento.” Por causa desses estudos, que há muito precisam ser feitos, em março de 2022, o então diretor de licenciamento do Ibama, Jônatas Souza da Trindade (ex-aluno de Araújo), assinou um documento declarando a “inviabilidade ambiental das obras”.

Meses depois, após a intervenção do Ministério da Economia, Trindade voltou atrás, sem apresentar justificativa técnica, e emitiu uma licença prévia, excluindo o despacho com suas conclusões anteriores do processo oficial da obra no Sistema Eletrônico de Informações. “Isso é irregular”, disse Araújo. “Você pode mudar de posição, mas tem que ter a coragem de explicar: estou mudando de posição, e as razões são essas. Mas eu não posso sumir com a minha primeira posição no processo [oficial].” A licença exclui ilegalmente milhares de pessoas de povos tradicionais que vivem naquele trecho do Rio Tocantins e dependem dele para pesca e navegação, e os classifica sumariamente, sem evidências, como “não na área de impacto direto” para cortar custos. A licença também “está subdimensionando os danos, e isso é muito grave”, diz o promotor Machado. Trindade se recusou a exigir o diagnóstico de um ano de desembarque pesqueiro pelos pescadores, um “marco zero do licenciamento”, de acordo com Machado. Sem isso, as consequências são “muito graves”, pois é impossível avaliar futuros danos à renda e à segurança alimentar dos pescadores. Isso é necessário para a indenização, segundo o princípio do poluidor-pagador que está na legislação ambiental, ou seja, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) deve pagar por qualquer dano que causar. O DNIT alega que não é responsável pelos danos das operações do canal de navegação comercial.

Nilton Lopes de Melo, da Vila Tauiry, disse à Mongabay que o plano do DNIT de “dar um salário mínimo por 30 meses” após as detonações do rio é totalmente insatisfatório. “Os nossos poços envenenados, porque bebemos a nossa água do rio, e os peixes envenenados pela dinamite, que ninguém vai querer comer” durarão muito tempo após as explosões acabarem, deixando os moradores sem sua principal fonte de renda. Eles exigem indenização por família e acusam o DNIT de “violar [nossos] direitos como povos ribeirinhos tradicionais”. O licenciamento do canal significa que “a gente está criando a pobreza e os refugiados climáticos por obra do próprio Estado”, diz o promotor Machado. Esses danos e custos recairão não apenas sobre os contribuintes brasileiros, mas também, devido ao aumento das emissões do desmatamento incentivado pelo canal, “sobre a sociedade como um todo”. Mesmo assim, o Ibama está prestes a permitir que a licença de três anos para as explosões do Rio Tocantins comece a valer em 2025. “Para o Ministério Público Federal, qualquer licença expedida será ilegal”, diz uma mensagem enviada pelos promotores à Mongabay. “A ação foi apresentada à Justiça Federal em 16 de agosto de 2024 e, desde então, aguarda decisão judicial.”

O DNIT  tenta, ilegalmente, licenciar apenas um trecho da proposta da hidrovia.  Araguaia-Tocantins para evitar a revisão completa de sua viabilidade socioambiental em todos os trechos planejados, descumprindo uma decisão de 2009, acusam os promotores. Esse trecho de 500 km é um Cavalo de Troia, e abre a porta para um canal Araguaia–Tocantins que pode chegar a ter entre 2 mil e 3 mil km, exigindo a construção de várias megabarragens, sem que se avaliem os impactos “sinérgicos” sobre comunidades e ecossistemas nos estados do Maranhão, Tocantins, Mato Grosso e Goiás, e sem consulta a essas comunidades, diz Machado.

“Dividir o licenciamento, pressionar o licenciamento intencionalmente para simplificar o processo é ilegal”, diz Araújo. “É a velha prática de consumar um megaprojeto através da realização de partes de sua obra, de modo que o conjunto se torne mais tarde irreversível,” escreveu o senador Jorge Kajuru. No trecho de 500 km entre Marabá e Barcarena, o DNIT usa um “artifício” para “reduzir artificialmente os custos. A premissa deles é que eles não estão licenciando a operação da hidrovia. Eles estão licenciando só a obra de dragagem e derrocagem”, explica Machado. O DNIT considera “impactado” apenas um trecho de 212 km para ribeirinhos tradicionais, em um raio de 3 km, e, para indígenas e quilombolas, em um raio de 10 km das “intervenções”. Esses limites, “sem embasamento técnico ou jurídico, violam a Convenção 169 da OIT”, leis internacionais e nacionais, bem como a missão institucional do Ibama de analisar os impactos em primeiro lugar, sem descartar de antemão as comunidades. “O posicionamento do Ministério Público Federal é que todas as comunidades ribeirinhas que utilizam, de forma tradicional, as águas da bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia para a pesca e para a navegação são impactadas,” diz Machado.

·        Transporte pela hidrovia aumenta emissões de carbono

Tentar abrir novos canais para atender à ilusão de um transporte hidroviário mais barato de commodities agrícolas para exportação é uma “proposta com custo-benefício ruim” para a sociedade brasileira, pois os gastos com esse transporte aumentam devido à redução do nível dos rios, disseram especialistas à Mongabay. “Diferentemente de uma hidrelétrica, não existe uma previsão de distribuição equitativa do produto da hidrovia com a sociedade”, afirma Machado. Carlos Souza, diretor da MapBiomas Água, escreveu à Mongabay: “O projeto reflete uma visão de desenvolvimento que desconsidera os danos ao meio ambiente e privatiza recursos naturais escassos para o lucro de poucos, sem a devida consulta às comunidades afetadas. Há também uma falta de monitoramento adequado dos impactos futuros, e questiona-se para quem realmente esse empreendimento trará benefícios: se ao povo brasileiro ou aos interesses de grandes produtores e mineradores, sugerindo uma lógica de desenvolvimento que não prioriza o bem comum.”

O Ministério dos Transportes afirma que as hidrovias são “o transporte mais sustentável” e que eles “vão reduzir as emissões e tirar carros das estradas”. Especialistas refutam essas alegações, afirmando que são lavagem verde. Araújo, diretor do Observatório do Clima, adverte que, ao determinar a sustentabilidade, “Não dá para olhar só para as emissões. Tem que olhar para todos os impactos ambientais”, lembrando que a Hidrelétrica de Belo Monte prometeu produzir grande quantidade de energia sustentável, mas entregou muito menos, causando desmatamento indireto, o que a tornou uma grande região emissora de carbono. Rodovias e ferrovias próximas não serão fechadas, de forma que uma hidrovia no Tocantins vai aumentar as emissões, em vez de reduzir. “Para que esse argumento do DNIT tivesse algum sentido, seria preciso presumir que a operação da hidrovia vá fazer com que as rodovias não sejam mais utilizadas para escoamento dos grãos. E não é o que vai acontecer”, diz Machado. Porém, “a hidrovia não vai substituir as rodovias [e a Ferrovia Norte-Sul] para o escoamento de grãos”, diz Machado. O objetivo dos órgãos do governo é aumentar o escoamento. Sendo assim, as atuais emissões decorrentes do uso de combustível nas rodovias serão somadas às emissões das operações da hidrovia.

Na verdade, o transporte hidroviário interior causa mais emissões de carbono do que o transporte ferroviário, segundo um estudo europeu de 2018 (os ministérios dos transportes do Brasil costumam citar duas tabelas, de 2009 e 2015, promovendo a eficiência das hidrovias; o climatologista José Marengo diz que estudos sobre o tema “precisam ser refeitos” com dados atuais sobre a água). Desde então, as emissões das hidrovias, mais elevadas, aumentaram ainda mais, assim como o uso de combustível e os custos da tonelada/km no Rio Mississippi, como nos disse Mike Steenhoek, diretor-executivo da U.S. Soy Transportation Coalition. Em 2024, terceiro ano de seca grave no Meio-Oeste dos Estados Unidos, apesar da dragagem, os custos das hidrovias e as emissões de carbono por tonelada de grãos transportados são maiores, pois as barcaças precisam reduzir a carga e o número de embarcações por comboio. Os custos do transporte hidroviário em outubro foram 55% maiores do que a média de cinco anos. As quantidades de grãos transportados caíram. “Cada pé de profundidade de água ou calado que se reduz é o equivalente a carregar 7 mil bushels [190 toneladas] a menos de soja por barcaça”, diz Steenhoek. Como consequência, mais comboios são enviados para deslocar a mesma quantidade, reduzindo a eficiência, “levando a congestionamentos e gargalos”, “embarcações paradas por dias” e viagens mais longas, com extensões de rota para chegar a um canal suficientemente profundo. Os resultados: mais combustível e mais emissões. “Os agricultores são forçados a absorver custos mais altos de transporte hidroviário.” Portanto, os produtores obtêm “preços mais baixos para a soja e lucros menores”, enquanto lucram as exportadoras de grãos, como Cargill, Bunge e Louis Dreyfus. (O uso e o investimento dos agricultores em ferrovias mais confiáveis ​​em termos de clima aumentaram). Isso põe em dúvida o sonho do agronegócio brasileiro de obter transporte mais barato ao transformar o Rio Tocantins em seu próprio Mississippi.

As emissões de carbono dos novos canais também aumentam com o desmatamento causado pelos grãos brasileiros, devido à mudança no uso da terra, que se acelerará em toda a bacia do Araguaia-Tocantins, alerta Carlos Souza. O diretor da MapBiomas Água disse à Mongabay que um novo canal visando “expandir o escoamento aumenta o desmatamento. Então se vai ter também uma região que vai ter uma expansão agrícola muito grande, pode afetar as comunidades que já vivem lá com outro tipo de uso da terra [e que mantêm a maior parte da floresta em pé]. E aí pode haver uma substituição da agricultura de pequenos produtores pela agricultura industrial.” O promotor Machado concorda: “Os grãos que seriam escoados na hidrovia, em sua maioria soja, já é comprovado na literatura científica que essa produção gera efeitos climáticos. Então, certamente o que está acontecendo aqui é que está se licenciando uma obra que vai ser fonte causal de emissão de efeito estufa.”

Já prevendo o canal, o desmatamento ao longo do corredor do Tocantins se ampliou desde 2021, convertendo florestas em plantações de agronegócio e aumentando as emissões de carbono. Algumas comunidades [estão] sendo expulsas dos seus territórios em decorrência da especulação imobiliária às margens do rio, decorrência desse projeto, [já que] a ação da hidrovia vai tender a potencializar ou valorizar aquelas áreas”, diz Machado, gerando “pressões territoriais sobre estes povos, que estão sendo obrigados a se deslocar das suas terras. Esse deslocamento não é nada sutil”, diz o promotor. “É com ameaça, é com pistolagem, é com intimidação.” Segundo Machado, o DNIT não conseguiu protegê-los nem “impedir o desmatamento por meio da elaboração de um plano de mitigação com base no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal”. Questionado pela Mongabay sobre esse problema, o DNIT respondeu por e-mail: “Não temos informações sobre desmatamento relacionado à obra.”

 “Isso tudo às vésperas da COP 30, sediada no estado do Pará”, diz o promotor. “É muito grave e muito contraditório e é muito triste também sob a perspectiva dos direitos humanos das populações que vão ser impactadas caso essa derrocagem e dragagem aconteça sem esse dimensionamento.” Ainda não construída, a hidrovia Araguaia-Tocantins está causando “danos ambientais climáticos, reconhecidos pela recente ação judicial da Advocacia-Geral da União (AGU)”, diz o promotor, “pagos pelo Estado Brasileiro e pelos contribuintes brasileiros, suportados por toda a comunidade global”. O DNIT deixou de fazer “estudos de risco climático e impacto climático”, incluindo cálculos de aumento de emissões, ignorando a Política Nacional sobre Mudança do Clima do Brasil. “Então, o Estado brasileiro, a estrutura do Estado brasileiro, com o licenciamento deficitário quanto à essa previsão dos impactos e agora, inclusive, o impacto climático, e não dimensiona isso, mesmo havendo essa previsão na legislação, vai gerar um dano climático que vai ser sentido por todos nós”, conclui Machado.

·        Seca na Amazônia põe em dúvida a viabilidade da hidrovia

Os planos da hidrovia Araguaia-Tocantins ignoram dois anos de seca agravada no Brasil em 2023 e 2024, quando a Amazônia perdeu mais de 5 milhões de hectares de água superficial, diz Souza. Durante a temporada das cheias, “os aquíferos não se recarregaram adequadamente. Dois anos consecutivos de seca, está contando realmente que tem um alarme, dando um sinal muito forte.” Em outubro, o nível do rio Tocantins estava em 2 metros, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), observa Souza. “No período de seca, ele [geralmente] fica em torno de três metros e três metros e meio. Então na seca, já é esperado que vai reduzir, vai baixar mais um pouco.” Isso tornaria difícil a navegação para barcaças com calado de 2,5 metros, conforme planejado pelo DNIT, sugerindo que seria preciso dragar uma área muito maior do que apenas “passos críticos” em um trecho de 177 km, conforme planejado. Segundo Souza, “para esse projeto, os propositores do DNIT têm que incluir, para os planos de adaptação e mitigação às mudanças climáticas, esses modelos.” A sub-bacia do Alto Tocantins “perdeu 42 mil hectares de água superficial natural desde 1985”, observa Souza. A vazão do Rio Tocantins será reduzida em 50% a partir de 2050, disse à Mongabay Rodrigo Paiva, hidrólogo do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade do Rio Grande do Sul. “O que aconteceria é que, para o Rio Tocantins, na média, ele ficaria mais seco. Isso prejudicaria um projeto de navegação. Então essa proposta do DNIT tem que levar em consideração esse cenário futuro.” O maior afluente do Tocantins, o Araguaia, perdeu de 40% a 67% da vazão desde 1980 e perderá mais 40% até 2040, diz Ludgero Vieira, professor da Universidade de Brasília. Vieira e Souza afirmam que a construção da hidrovia Araguaia-Tocantins incentivará mais conversão de terras à agricultura irrigada na bacia superior do rio, aumentando a perda de água, o que impediria a passagem de barcaças. “Se alguém cogita fazer canais de navegação no Rio Tocantins ou no Rio Madeira agora, vão dizer que está louco, porque o Madeira está com níveis extremamente baixos, principalmente devido às secas de 2023 e 2024. É muito arriscado”, disse à Mongabay José Marengo, climatologista e especialista em hidrologia.

Segundo apuração da Mongabay, os estudos do DNIT sobre novos canais no Madeira e no Tocantins usaram antigos dados “históricos” sobre a água. “Este projeto [do Tocantins] foi submetido à análise com base em dados hídricos até 2017”, o Ibama disse por e-mail à Mongabay. “No entanto, as mudanças climáticas e os impactos ambientais dessas alterações no regime de vazão não foram incluídos nas avaliações de viabilidade até o momento.” O uso de dados ultrapassados põe o Brasil em risco de não obter retorno sobre os investimentos no canal e “criando um desperdício de recursos públicos, que são escassos”, disse Luiz Fragoso, auditor sênior do Tribunal de Contas da União (TCU). Destacados especialistas em climatologia e hidrologia, Marengo, Souza e a ex-presidente do Ibama Suely Araújo disseram à Mongabay que o DNIT      deve atualizar os estudos do canal com projeções de disponibilidade hídrica. Caso contrário, corre o risco de “desperdiçar bilhões de recursos públicos”, como diz Fragoso.

·        Dragagem não garante água suficiente para a passagem das barcaças

Em função da aceleração da evapotranspiração nos rios brasileiros, prevista pela ANA, o calor extremo pode fazer evaporar a água do canal. “Você pode ter chuva (cai pouca chuva, mas cai), mas quando tem temperatura muito alta, a evaporação é muito alta”, diz Marengo, Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Pesquisas de janeiro de 2024 da Agência Nacional de Águas (ANA) mostram a perda futura de água devido à evapotranspiração. A linha cinza representa os níveis históricos, comparados à evapotranspiração acelerada segundo vários modelos de mudanças climáticas. “Tem um céu claro, tem um sol intenso, então, muita dessa água do rio evapora, então diminui mais a vazão. Então se aí se aplica dragagem, vai ser muito caro, mas ninguém garante que vá ter água suficiente para passar um barco ou uma barcaça, ainda com dragagem. Você pode cavar mais profundo o seu rio. Fica mais profundo, mas se tem pouca água, vai ter o mesmo problema. Os barcos não conseguem andar, porque é muito raso e simplesmente ficam presos na areia. Imagina manter um comércio todo o ano, um transporte todo ano, quando há água e não há garantias, todo ano, aí que vira um problema.Pensar em hidrovias somente com dragagem, acho que é um tiro no pé, como dizem aqui, não?”, diz Marengo. “Porque se não chove, não adianta fazer dragagem, e vai ter dinheiro gasto, vai a ser uma obra abandonada como tantas outras aqui no Brasil.”

O estudo de viabilidade econômico-técnica (EVTEA) sobre a hidrovia Araguaia-Tocantins nunca foi concluído, embora tenha sido iniciado, com R$ 5,18 milhões pagos a um consórcio que incluía a DTA Engenharia (questionado sobre o motivo, o DNIT mencionou “conversas internas”, sem dar detalhes). A empresa recebeu R$ 1,4 bilhão em contratos federais relacionados ao canal e tem um contrato de quase R$ 1 bilhão para explodir uma área rochosa de 43 km de extensão, o Pedral do Lourenção. O fato de nunca ter sido feito um estudo de viabilidade para um canal em um rio que o Brasil quer começar a explodir em março de 2025 é “preocupante e, potencialmente, um desperdício para os cofres públicos”, diz Fragoso. “É absurdo, ilegal e antiético”, afirma Machado. Sem estudos de viabilidade, os canais podem “criar ruínas” de leitos de rios. “Não há garantia de que dragagem e derrocagem caras vão funcionar” em grande escala e a alto custo, alerta Marengo, do Cemaden. “Ferrovias podem ser uma solução bastante viável, porque a ferrovia, de certa forma, polui menos, mas não depende assim de água. Só que esses governos no Brasil muitas vezes não pensam muito em ferrovias.”

Fragoso diz que o Brasil deveria pensar em ferrovias. Ele observa que a Ferrovia Norte-Sul (FNS), já em operação, corre paralela ao Rio Tocantins. Portanto, o canal proposto para o Tocantins e a FNS são projetos “concorrentes”, com o mesmo objetivo, no mesmo corredor logístico. No Plano Nacional de Logística 2035, que o TCU auditou, Fragoso diz: “O Ministério dos Transportes não fez uma análise de custo-benefício nem uma avaliação de alternativas.” O Ministério não conseguiu justificar por que, depois que o Brasil pagou R$ 15 bilhões pela Ferrovia Norte-Sul, os contribuintes deveriam gastar bilhões a mais para construir um projeto paralelo, em alguns lugares, sobreposto, sem estudo de viabilidade. “Não só vamos destruir quase 500 quilômetros de rio, mas também vamos gastar milhões anualmente com dragagem. Por que vamos fazer tudo isso? Não podemos encontrar uma alternativa para alcançar o mesmo objetivo logístico?”, pergunta André Ferreira, do Instituto de Energia e Meio Ambiente. Dragar um Rio Tocantins que está mais seco pode custar bilhões por ano, com base em contratos de dragagem em portos do sul. “Eu excluiria essa hidrovia do corredor logístico do Tocantins-Araguaia, e buscaria outras formas de viabilizar, com a Ferrovia Norte-Sul e a Ferrovia Paraense”, disse Ferreira. “Sem essa hidrovia, o país não vai parar por causa disso.” As comunidades temem que o canal interrompa seu modo de vida, detonando e dragando locais de reprodução de peixes, bloqueando a chegada de canoas até áreas de pesca, erodindo margens de rios, degradando a vegetação, interrompendo o fluxo para cursos d’água secundários, tirando sua pesca, forçando-os a se mudar para as cidades.

·        “É a invasão do nosso território”, dizem ribeirinhos

As lideranças ribeirinhas tradicionais do Pedral do Lourenção acusam o DNIT de violar seus direitos, entrando na aldeia Tauiry “sem o nosso consentimento”, pressionando-as a assinar documentos para forçar a aprovação da licença. Segundo o líder Ernandes Soares da Silva, em 12 de dezembro, o DNIT e a DTA Engenharia entraram na Vila Tauiry, apesar de as lideranças locais terem se recusado oficialmente a participar de uma reunião sem a presença dos promotores federais. Ele afirmou que os ribeirinhos foram ameaçados “de que, se não assinassem documentos” aceitando uma indenização menor e limitada por danos futuros à pesca, “não receberiam nada”, de forma que muitos pescadores, assustados, assinaram. “Essa reunião tem que ser derrotada”, diz Silva.

Em um e-mail à Mongabay, o DNIT disse que tinha “autorização da Prefeitura Municipal de Itupiranga” e apenas “teve como objetivo o DNIT e o Ministério de Portos e Aeroportos dialogarem com a comunidade” no que alegou ser um “espaço público”. Representando um coletivo de 23 vilas ribeirinhas do Pedral do Lourenção, o líder ribeirinhos Ronaldo Macena Barros disse à Mongabay: “Eles estão passando em cima de tudo, desrespeitando o nosso protocolo de consulta”, que proíbe reuniões com eles sem permissão prévia, “infringindo o OIT 169 e o Decreto Presidencial 6.040”, que protege os direitos de povos tradicionais culturalmente diferenciados. “Quando se trata de grandes empreendimentos, nós temos que ser consultados.”

Macena contou que houve “pressão política” e táticas de intimidação. O coletivo do Pedral do Lourenção se recusou a aceitar o relatório de um suposto evento de Ação Participativa porque “não condiz com a nossa realidade”, omitindo algumas das 23 comunidades. O DNIT e a DTA “insistiram [que nós cumpríssemos], e fizeram essa reunião [de 12 de dezembro] sem a nossa autorização. É a invasão do nosso território sem o nosso consentimento. Isso eu acho um desrespeito às populações ribeirinhas, que somos comunidades tradicionais, que ocupamos e moramos nessa região há várias gerações”, disse Macena. “Temos aqui nossas tradições, nossos modos de vida, que são totalmente diferentes da cidade. Então estão desrespeitando a nossa opinião, eles não estão acatando o que a gente tem feito.”

“O que a gente quer é a consulta prévia, livre, e informada de consentimento das comunidades ribeirinhas do território ribeirinho do Pedral do Lourenção. Mas até então, eles vêm não respeitando isso.”

O MPF disse à Mongabay que solicitou relatórios da Associação da Vila Tauiry (Acrevita), do DNIT e da DTA sobre a reunião polêmica. “Assim que tiver todas essas informações [relatos pedidos], o MPF vai se posicionar sobre a questão.” Os líderes temem que a licença de instalação para explodir as rochas do Pedral do Lourenção e formar o canal seja concedida sem que as comunidades tenham participado da consulta exigida por lei e com ilegalidades pendentes na licença anterior, emitida por Bolsonaro. Macena diz: “A ação civil pública, que o Ministério Público Federal fez, está protocolada na Justiça. A gente está aguardando, então, essa resposta”.

 

Fonte: Mongabay

 

 

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