Marcos Fabrício Lopes da
Silva: A importância dos desimportantes
Como relatou o
jornalista Gilvandro Filho, Reginaldo Rossi (1944-2013) protagonizou uma das
cenas mais icônicas da política brasileira. No ano de 1986, durante um
showmício de Miguel Arraes (1916-2005), na Praça Convenção, em Beberibe, no
Recife, o cantor que arrastava multidões e havia sido a estrela da campanha
vitoriosa do então prefeito do Recife, Jarbas Vasconcelos, subiu ao palco e
após as falas de apoio ao então candidato Arraes, Reginaldo protagonizou a cena
da noite ao cantar: “Eu devia te odiar, no entanto, só sei te amar…”. O
candidato que sempre carregava um tom sisudo, não resistiu. Considerando a
importância dos desimportantes, O Rei do Brega desenvolveu a
ironia como atividade política e soube cantar a voz de um Brasil plural, porém
fragmentado.
Diminuir o hiato
existente entre os privilegiados e os desvalidos passa necessariamente por dois
caminhos. Um: distribuição de renda mais justa. O outro: melhor qualidade da
educação. São duas guerras que o país se nega a enfrentar desde as Capitanias
Hereditárias. Não há salvação para o mundo pela violência ou pela eliminação
daquele que pensa diferente. Ditadura nenhuma presta. A saída está na
democracia, no debate de ideias, em busca do entendimento, da paz, do convívio
plural. Os direitos individuais e a liberdade de opinião e expressão são tão
sagrados quanto os direitos coletivos e o mínimo necessário para qualquer
pessoa levar uma vida decente, com casa, comida, saúde, educação garantidas.
Aqui e em qualquer lugar do planeta. Sim, é uma pauta da qual nenhuma nação
pode ficar de fora. Assim como há regras para um país participar do mercado
globalizado, cidadãos civilizados, de esquerda e de direita, no mundo inteiro,
precisam estabelecer o tratamento mínimo indispensável que cada Estado deve
garantir ao ser humano para lhe conferir dignidade. Sim, falo de uma revolução
globalizada. Sem bravatas nem fanfarronices.
O cidadão mediano,
aquele que, como eu ou você, caro leitor, tem mais informação do que poder,
mais desejo de contribuir para o bem público do que recursos para realizá-lo,
mais esperança no futuro do que rancor pelo passado, mais interesse na
estabilidade política e econômica do que ressentimento e desejo de ver o circo
pegar fogo, encontra-se desorientado. Somos bombardeados por diagnósticos
basicamente corretos e prognósticos interesseiramente catastróficos. Em nosso
país, 90% ganham menos de R$ 3.500 por mês. A renda média mensal dos 5% mais
ricos é de pouco mais de R$ 10 mil. E 1% dos brasileiros ganha mais de R$ 28
mil por mês. São os ricos de verdade. A elite. Um por cento. A massa de pobres,
portanto, decide o resultado eleitoral das urnas. Porém, os titulares do
mecanismo decisório não foram educados na arte da busca do bem comum.
A escola nos diploma, o
que equivale, para os desassistidos, a algumas cartas de alforria e, para os
privilegiados, a alguns passaportes para o poder. Quase nunca a escola traduz
as aspirações de seus alunos. Raramente leva em conta a bagagem cultural que
acumularam durante anos e anos de experiência viva. Grandes civilizações
existiram, certamente. Contudo, todas elas falharam em um ponto: limitaram a
importância dos desimportantes. Uma enorme quantidade de pessoas se tornou
fabulosamente rica nesses sistemas, e um exército inteiro foi mobilizado em
torno desse processo de segregação continuada. “Existe um contrato da
democracia com a desigualdade”, conforme alerta a antropóloga e historiadora
Ann Stoler (Jornal da Unicamp, edição 698, Campinas-SP, 13 a 26 de
novembro de 2023).
A discriminação
negativa ainda rege a maioria das decisões de poder e saber em sociedades
governadas por “relações coloniais”. O mercado da exclusão e da indiferença
mina por todos os lados o conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade
de participar ativamente da vida e do governo do seu povo. As disparidades
brasileiras começam no vergonhoso fato de que o Brasil é o oitavo país mais
desigual do mundo, mas é também a oitava maior economia do planeta. Acumula o
título de quarto maior produtor de alimentos, apesar de o fantasma da fome
ainda nos perseguir. Constata-se que estamos longe do processo democrático que
assegure a compensação das desigualdades, segundo aponta o estudo O
dilema do brasileiro [recurso eletrônico]: entre a descrença no presente e a
esperança no futuro (FGV, 2017), coordenado pelo sociólogo Marco
Aurélio Ruediger:
“Os resultados
encontrados sugerem um brasileiro indignado com as crises política, econômica e
institucional que atravessamos e, como consequência desse cenário, é um
indivíduo que desconfia da política, dos partidos e dos políticos que atuam
hoje. Em consequência disso, diversas formas de protestos políticos aparecem,
destacando-se aí a ampliação para um campo que parece se fortalecer nesse
ambiente: as redes sociais. É possível observar nas variadas formas de
protestos políticos uma significativa, porém preocupante, mobilização em torno
de uma manifestação de apoio a tipos de lideranças com perfis bastante
controversos, como aqueles com simpatia por medidas autoritárias”. Esperança,
otimismo e cordialidade não estão sendo suficientes para formar gente que
conheça os nós que apertam o País e saiba como desatá-los. Aqui e alhures,
entre o despreparo, o desvario e o aventureirismo, responda comigo: nenhuma das
alternativas anteriores.
Fonte: Observatório da Imprensa
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