Racismo, ferida colonial que não
cicatrizou
Discutir a realidade escravista, ainda que envolta no tabu, implica, de
fato, desvelar as máscaras do neoliberalismo, em face do confronto com a
ditadura do capital. Seria esta uma via para a superação das cicatrizes
históricas? Mesmo à luz de um cenário de dominação, a busca por subterfúgios
que permitam ruir essa tradição imperial e de superioridade ética manifesta-se,
paradoxalmente, como uma tentativa de transgredir tais constrições.
A confluência entre a construção e a persistência de um sistema de
exclusão, que perdurou por quase quatro séculos, perpetua, no século XXI, um
debate idiossincrático e antimeritocrático. Ao vislumbrar o racismo como um
sistema de opressão, é indelével reconhecer a profundidade do seu enraizamento
nas relações de produção e poder que estruturam a sociedade moderna. Esses
traços delineadores e submersos constituem o substrato da manutenção desse
sistema opressor. Sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético de Karl
Marx, tal estrutura não é natural ou eterna, mas fruto de um processo histórico
que acompanha a consolidação do modo de produção capitalista, fulcro da
atualidade. Ao analisarmos o surgimento e a manutenção do racismo sob essa
ótica, torna-se possível compreender como as relações de classe, a acumulação
de riqueza e a exploração econômica são indissociáveis da racialização e do
reacionarismo. O racismo moderno emerge como uma justificativa ideológica para
a exploração de povos africanos e indígenas no sistema colonial que, outrora,
dominou massas e reprimiu nações. A partir do século XVI, o capitalismo
nascente dependia de práticas como o tráfico de escravizados e o trabalho
forçado, fundamentais para a acumulação primitiva de capital, conforme apontado
por Marx em O Capital. A racialização, nesse contexto, não se configura
apenas como um subproduto, mas como uma ferramenta para legitimar tal
exploração. Com a consolidação do capitalismo industrial e, posteriormente, do
neoliberalismo, o racismo passou a operar de maneira mais sofisticada,
adaptando-se às novas formas de exploração e dominação invisíveis.
A precarização do trabalho, a segregação urbana e a violência estatal
contra corpos racializados exemplificam como o sistema racial continua
funcional ao capitalismo contemporâneo. Em O Avesso da Pele,
Jeferson Tenório expõe essa dinâmica ao narrar a vida de um homem negro marcado
pela violência estrutural e pela exclusão. A obra evidencia como o racismo não
é apenas uma questão individual, mas um fenômeno sistêmico que condiciona as
possibilidades de existência e resistência. O protagonista, por meio de suas
vivências, revela como a cor da pele se torna um marcador social que define
quem é digno de direitos e quem está destinado à marginalização.
Movimentos negros ao redor do mundo têm, historicamente, enfrentado essas
estruturas, desde as revoltas quilombolas até as lutas contemporâneas por
igualdade e justiça racial. A hipocrisia das elites e a fragilidade das
instituições brasileiras configuram-se como um retrato fiel de um sistema
colonial e imperialista que mutilou corpos em nome da narrativa da
superioridade do “homem branco”. Essa conjuntura, aliada ao identitarismo,
máscara um passado de barbárie e dominação, delineando-o de forma estruturada
no século atual, por meio de teorias meritocráticas e ideologias que perpetuam
a marginalização de povos e etnias há séculos oprimidos. A condição
colonialista desempenhou um papel crucial na gênese e na perpetuação do
racismo. Ao longo dos séculos, o processo de colonização, conduzido
principalmente por potências europeias, estruturou-se não apenas como um
empreendimento econômico, mas também como uma prática ideológica que
justificava a exploração e a subjugação de povos. Nesse sentido, o racismo pode
ser compreendido como uma superestrutura ideológica que reflete e sustenta uma
base material de exploração econômica.
Tal abordagem considera que as ideias e valores de uma sociedade estão
profundamente enraizados em suas condições materiais de produção e reprodução
social. Assim, o racismo não se trata de um preconceito isolado, mas de uma
ferramenta essencial para a consolidação do sistema capitalista global em seus
primórdios. O tráfico transatlântico de africanos, por exemplo, foi fundamental
na acumulação primitiva de capital, desumanizando povos não europeus como
instrumento para maximizar lucros e, simultaneamente, fornecendo justificativas
ideológicas para a manutenção de tais práticas. Uma hipótese que problematiza
esse cenário é apresentada no ensaio Crítica da Razão Dualista, de
Francisco de Oliveira, ao apontar como a compressão salarial transfere os
ganhos da elevação da mais-valia para o polo da acumulação, e não para o
consumo. Oliveira argumenta que a renda das classes médias decorre das
exigências técnico-institucionais da estrutura industrial global e não de preconceitos
de classe ou cor. Contudo, é possível contra-argumentar que, embora a
acumulação de capital pareça neutra em relação à cor da pele, o capitalismo
acumula significações mercantis que orientam diretamente as integrações sociais
e, indiretamente, as condições de vida dos indivíduos. No âmago dessa
determinação econômica, a orientação racial emerge como uma construção
histórica, embora multifacetada e parcialmente autonomizada em relação às
condições materiais de produção. Nesse contexto, a superexploração do trabalho
de corpos racializados foi uma estratégia para compensar as perdas das
burguesias dirigentes em suas relações de dependência. Por fim, obras como as
de Machado de Assis e Jeferson Tenório configuram-se como testemunhos e
denúncias dessas dinâmicas, revelando as desigualdades e promovendo reflexões
sobre transformação social. O racismo, ao impor dor e sofrimento com base em
teorias pseudocientíficas, não apenas perpetua uma mentalidade retrógrada e
conservadora, mas também mantém o atual sistema de crenças escravagista e
repressor.
Outro ponto factual a se considerar na manutenção do racismo
contemporâneo, é a atuação concisa dos aparelhos ideológicos do Estado. Esses
aparelhos, que incluem instituições como a mídia, o sistema educacional, a religião
e o aparato jurídico, são responsáveis por disseminar e consolidar certas
ideologias que reforçam a dominação de grupos sociais sobre outros. No contexto
do racismo, esses mecanismos atuam na naturalização da subordinação racial,
transformando-a em uma “verdade” social aparentemente incontestável. Esse
fragmento social é impreterível na teoria do Existencialismo de Jean-Paul
Sartre, particularmente sua concepção de liberdade e responsabilidade, a qual
oferece uma perspectiva profunda sobre como as ideologias sustentam o racismo e
são basilares de identidade. Para Sartre, o ser humano é condenado à liberdade,
ou seja, a condição humana é marcada pela possibilidade de escolher, agir e se
definir a partir de suas próprias escolhas.
No entanto, no contexto sócio-interrelacional essa liberdade é limitada
pelas condições históricas, sociais e culturais em que o indivíduo está
inserido. No caso do sistema estrutural do racismo, essas condições históricas
se manifestam por meio dos aparelhos ideológicos que impõem uma visão de mundo
que distorce a liberdade e a dignidade do ser humano de forma absorta a
condição de ser equável em termos sociais, políticos e existenciais, Sartre
argumenta minuciosamente que a sociedade cria uma “máquina de significação” que
impõe identidades e valores aos indivíduos. Nesse sentido, a estrutura
ideológica do Estado não apenas molda a consciência dos indivíduos, mas também
os empurram para uma conformidade com normas sociais que desvalorizam certas
existências, como as de pessoas negras. O racismo, portanto, pode ser visto
como uma forma de alienação existencial, na qual o indivíduo é reduzido a um
estereótipo racial, negando-lhe sua subjetividade e liberdade autêntica,
tornando a opressão uma construção social que envolve a objetificação do outro.
Dentro dessa realidade material, o sujeito racista “olha” o outro não
como um ser livre e único, mas como um objeto determinado por sua raça. Esse
processo de objetificação impede que o outro se realize como sujeito, limitando
sua liberdade. Instituições como o sistema educacional e a mídia reforçam essa
objetificação ao perpetuar visões distorcidas e desumanizantes das populações
marginalizadas. Abrindo dentro disso um parêntese: para atuação de governos
autoritários e pautados no que se conhece como o Mito das Democracias Raciais,
mas, ao analisar que homens, brancos, dentro desse sistema de dominação social,
NUNCA, e nem são dominados, condecorar a existência dessa prática tida em
moldes contemporâneos de Racismo Reverso, apaga da história um passado de
sofrimento, segregação e apartheid. Podemos assim, chamar isso de Democracia?
Creio que essa resposta já esteja pronta na conjuntura atual, assim, a
atuação europeia e colonialista de governos realizam a manutenção, hodierna,
dessa realidade boçal do Racismo. Por conseguinte, Sartre não apenas teoriza o
surgimento de inexorável movimento, como também aponta para a possibilidade de
transformação. A liberdade, embora condicionada, nunca é totalmente anulada. O
indivíduo sempre possui a capacidade de transcender as limitações impostas por
esses aparelhos ideológicos, embora isso exija um esforço contínuo e coletivo.
A luta contra o racismo, portanto, não é apenas uma luta contra instituições
externas, mas também uma luta pela reconstrução da própria subjetividade e pela
afirmação da liberdade humana em sua plenitude. Essa transformação exige que se
rompa com os valores que a sociedade impôs, reconhecendo, como Sartre nos
ensina, que “o homem se faz a si mesmo”, e que isso só é possível quando se
desafia a objetificação do outro imposta pelo racismo.
O Estado, ao perpetuar a objetificação e a negação da liberdade do
outro, contribuem para a manutenção de um sistema que limita a possibilidade de
uma existência autêntica e plena para aqueles que são racialmente
marginalizados. A superação do racismo, nesse sentido, exige uma transformação
radical das condições materiais e ideológicas que moldam as nossas percepções e
práticas sociais. Posto isso, ao observar o racismo como uma engrenagem
essencial no funcionamento das estruturas capitalistas, evidencia-se a
complexidade de suas ramificações sociais, econômicas e culturais. Mais do que
um legado de práticas passadas, ele se apresenta como um fenômeno dinâmico,
capaz de se adaptar às novas configurações de poder e produção. Sua
persistência não é apenas reflexo de um conservadorismo histórico, mas um
componente ativo na manutenção das desigualdades estruturais, reforçando tanto
as relações de exploração quanto os mecanismos simbólicos que naturalizam essas
hierarquias. Diante disso, qualquer tentativa de transformação social deve ir
além de soluções paliativas e enfrentar as condições materiais e ideológicas
que perpetuam essa lógica opressora, reconhecendo que a luta contra o racismo
é, também, uma luta pela redefinição das bases que sustentam as relações de
poder e produção contemporâneas.
Fonte: Por Mauro
Junior Griggi, em Outras Palavras
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