quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Carlos Bocuhy: O retrocesso ambiental com a volta de Trump

Estamos adentrando a uma nova fase de retrocessos para a gestão climática. A ascensão de Donald Trump, que retorna à Presidência dos EUA, poderá provocar um tresloucado atoleiro para a governança global. Isso inclui retrocessos sociais, retirando possibilidades de fortalecimento do multilateralismo global.

O efeito backlash é reconhecido internacionalmente como retrocesso, reação adversa à implementação das mudanças positivas para a sociedade e o meio ambiente. Por exemplo, a desregulamentação ambiental e perda de direitos sociais, retroagindo em protetividade social e da natureza.

Não é de hoje que isso ocorre, mas antes não era explícito.  Mathias Quent, da Universidade Magdeburg-Stendal, afirma que: “durante décadas, as grandes empresas ocidentais de combustíveis fósseis exerceram influência financiando campanhas de relações públicas, fundações, think tanks, mídia e muito mais. Nos EUA, a manipulação organizada por empresas petrolíferas está particularmente bem documentada. Jornalistas e acadêmicos estão atualmente investigando essas questões, e litígios por compensação estão em andamento”.

backlash climático, uma ocorrência negativa nas boas políticas de contenção do aquecimento global, volta a ganhar espaço no cenário norte-americano. Forças econômicas ambiciosas, que antes atuavam de forma discreta, agora buscam explicitamente retrocessos normativos e promovem políticas de governo alheias à realidade dos impactos climáticos e aos alertas da ciência.

Jamie Dimon, chefe do JP Morgan, o maior banco dos Estados Unidos, tem afirmado repetidamente que a vitória de Donald Trump os colocou em tal estado de alegria que “era como se estivessem dançando na rua”.  

No atual cenário de emergência climática é uma insanidade retroagir para os caminhos do Business as usual, dos negócios como sempre foram, sem limites éticos. Joe Biden, em seu último discurso à nação, apontou a ascendente e perigosa “oligarquia tomando forma nos EUA”.

De fato. Os anúncios de esvaziamento com relação aos compromissos com o Acordo de Paris, por parte de organizações financeiras norte-americanas de porte, demonstram estado de subserviência às novas diretrizes econômicas sinalizadas por Trump. Há um evidente oportunismo econômico pegando carona no ônibus tresloucado do novo governo.

Donald Trump e seus apoiadores à direita tentam descaracterizar os benefícios da energia limpa, caracterizando-a como uma forma de domínio chinês ou impulsionadora do aumento dos custos de energia, ou até mesmo como manobra “globalista”. Essa estratégia é bastante conhecida de cientistas políticos: “Uma vez no poder, partidos com tendências de extrema direita impedem o progresso suado no clima, mimam teorias da conspiração de extrema-direita e profundas queixas socioculturais e, às vezes, se esforçaram para corroer as instituições democráticas”, afirma o relatório “O nexo entre a reação verde e o retrocesso democrático na Europa”.

Por outro lado, revelam-se interesses econômicos das sanhas imobiliária, de petróleo e econômico-especulativa, que se insurgem contra qualquer restrição econômica trazida pelas exigências da sustentabilidade. “Na esteira das vitórias recordes da extrema-direita nas eleições parlamentares da União Europeia em junho, os líderes do bloco estão reduzindo as prioridades climáticas”, afirma matéria veiculada pela Time sobre as tendências do backlash europeu.

A geração de riqueza imediatista e irresponsável encontra espaço em governos reacionários, ao contrário das questões humanitárias. O Mito de Midas retrata bem o enlouquecimento ambicioso que a tudo transforma em ouro – resultando em nada para consumir ou sobreviver.  Trump afirma que haverá agora uma “fase de ouro para a América”. Fase fóssil seria o termo mais apropriado.

Diretrizes, leis e programas de financiamento que foram defendidos por Joe Biden para impulsionar empregos verdes, regular a poluição e financiar infraestrutura podem ser atacados por ordens executivas do atual presidente dos Estados Unidos, assim como remover restrições de perfuração em terras federais – cumprindo sua promessa de “perfurar, perfurar” e aumentar a produção e a independência de energia dos EUA. Ele também prometeu proibir novos projetos eólicos e cancelar mandatos de veículos elétricos.

“Perfurar, perfurar, perfurar” é o refrão cantado por Trump, mas isso já ocorre. A América de Joe Biden quebrou recordes na produção de hidrocarbonetos.

O backlash climático não é uma prerrogativa exclusiva dos maiores poluidores do planeta. Ele também se reflete na antropofagia fóssil dos objetivos ambiciosos da Opep, uma organização que tem se empenhado em atrair cada vez mais adeptos para prolongar a sobrevida dos combustíveis fósseis.

No Brasil, o ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira acaba de anunciar que o Ibama deverá liberar a extração de petróleo na foz do rio Amazonas, região que receberá a COP30 no final de 2025.

Posições de governo como esta não diferem do que temos observado na história recente. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão, por exemplo, são acusados de ampliar seus negócios petrolíferos e tentar atenuar as medidas pela eliminação do petróleo que ocorrem no âmbito dos acordos climáticos globais.

O absurdo incompreensível é a abismal discrepância entre ciência e decisões políticas. Os alertas sobre o aquecimento global vêm de longa data. James Hansen, físico da Nasa e “pai das mudanças climáticas”, como é reconhecido, foi preso em frente à Casa Branca em Washington, na década de 80, ao protestar por maior transparência nos dados sobre os riscos do aquecimento global.

Hansen abandonou estudos na Nasa sobre a temperatura extremamente quente da atmosfera de Vênus. Ao perceber que a Terra estava aquecendo pelo mesmo motivo de concentração de carbono na atmosfera, o físico concluiu que estudar nosso próprio planeta em transformação faria muito mais sentido para a humanidade.

Depois de quatro décadas, em janeiro de 2025, a ciência concluiu que o planeta Terra tinha superado a média anual de 1,5ºC acima dos valores do início da era industrial. Estudos apontam um aquecimento de 0,33ºC por década, o que nos remete minimamente à média de 2ºC por volta de 2040, limite extremamente perigoso, pois com 1,5ºC já é possível sentir os fortes impactos climáticos.

A diferença entre 1,5ºC e 2ºC foi o pomo da discórdia durante a Conferência de Paris em 2015. Apesar dos fatos que, há dez anos, já demonstravam uma tendência de que não seria possível estancar o processo de aquecimento tão cedo, diante do baixo protagonismo multilateral global, a meta de 2ºC foi cuidadosamente rejeitada. Adotou-se, então, o objetivo menor de 1,5ºC até 2100, uma alternativa pedagógica para convencer os governos a adotarem medidas imediatas e mais restritivas com relação à emissão dos gases efeito estufa (GEE).

A boa intenção virou risco. Desenhar cenários adaptativos com base em 1,5º C para 2100 representa, no atual contexto, subestimar cenários adversos e deixar de se preparar para ameaças reais. A imprevisibilidade política se associa à climática. O multilateralismo colaborativo, alimentado pelo crescente backlash, não correspondeu às expectativas do Acordo de Paris, já abandonado por Trump em 2016, durante sua primeira gestão.

Os Estados Unidos, segundo maior emissor de gases efeito estufa (GEE), passará novamente a ignorar seu símbolo de águia para adotar novamente comportamento de avestruz? Enfiará vergonhosamente a cabeça no buraco, em cegueira propositada voltada à interesses devastadores e imediatistas?

Mesmo diante da constatação de que atingimos a média global de 1,5ºC, Trump poderá acirrar drasticamente o backlash climático, em cegueira evidente. Neste ano o sul da Califórnia ardeu em chamas, com prejuízos estimados em 150 bilhões de dólares, metade do valor prometido pelos maiores responsáveis pelo lançamento de GEE durante a COP29 do Azerbaijão para suprir, ainda que de forma insuficiente, o fundo de perdas e danos para a adaptação climática global.

Biden, em seu último pronunciamento, colocou a importância da América em não entregar seus valores a um nacionalismo populista, que pouco se importa com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mas sim com o estímulo de enriquecimento na mão de poucos, como geralmente demonstram análises dos benefícios trazidos pelo Produto Interno Bruto (PIB).

A transformação pela economia está se tornando um objetivo cada vez menos tangível. Biden se referiu às tendências econômicas que pairam sobre a América como “concentração extrema de riqueza, poder e influência que literalmente ameaçam nossa democracia.” De fato, quando o poder constituído decide pelo que não é de interesse do povo, mas sim de grupos e interesses econômicos, prevalece o interesse privado sobre o interesse público. Essa distorção não se concretizará sem “acentuada tendência de desinformação, de manipulação e falsas informações, que permite o abuso de poder”, afirmou o ex-presidente dos EUA.

Nesse aspecto, os retrocessos na normatização de redes sociais para evitar fake news ganharão força, o que já se percebe claramente nas declarações de oligarcas da tecnologia digital, como Musk e Zuckemberg.

A sociedade brasileira deve estar atenta a esses fatos que terão profundos reflexos no País, pois estimularão a prática da desinformação e da espoliação ambiental, uma vez que a baixa exigência no plano internacional enfraquece tanto os avanços internacionais já conquistados como a prática do multilateralismo colaborativo.

Quando o backlash ascende, aumenta o desequilíbrio ambiental. Mas a ameaça vai muito além dos retrocessos na desregulação ambiental econômica.  Zaki Laïdi, professor de relações internacionais da Sciences Poafirma que Donald Trump acredita fundamentalmente na força e zomba daqueles que queriam fazer as pessoas acreditarem que a competição entre os Estados era uma coisa antiga do século XIX.

O governo antiambiental da maior potência global e seus efeitos poderão elevar as ameaças à sobrevivência da humanidade, espécies vivas e ecossistemas vitais. Diante dos limites planetários já fragilizados em sua capacidade de suporte, a atual fase de retrocessos poderá levar o mundo a um estado de insolvência ambiental.

backlash climático, ansiado por setores especulativos-predadores, eleva o patamar das ameaças que poderão impactar os pontos de não retorno planetários.  Esses perigos devem ser duramente combatidos por meios jurídicos, de comunicação, por setores progressistas da área política, econômica e com ampla mobilização social.

 

Fonte: Le Monde

 

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