Cessar-fogo
em Gaza revela a fragilidade de Israel
O ministro das Relações Exteriores do Catar, em um anúncio crucial na
noite de quarta-feira, 15, confirmou que Israel e o Movimento de Resistência
Islâmica (Hamas) finalizaram um acordo destinado a interromper a guerra
genocida e destruidora na Faixa de Gaza por pelo menos 42 dias. Este acordo é
essencialmente uma reformulação do acordo de cessar-fogo proposto anteriormente
em maio pelo governo Biden, quando o Hamas declarou que aceitava o acordo,
enquanto Israel o negou e continuou com a guerra. Acontece que Israel queria
tempo para trazer mais destruição a Gaza, somar mais mortes e usar as suas
cartas para subjugar o Hezbollah no Líbano. Nesse contexto, o Catar surge mais
uma vez como um dos maiores vencedores deste acordo, solidificando seu
papel-chave na arquitetura da diplomacia regional. O pequeno Estado do Golfo
dominou a arte de manobrar entre adversários, alavancando suas relações com
atores aparentemente irreconciliáveis para mediar onde outros vacilam. Ao fazer
isso, Doha reafirma seu lugar como a capital da negociação, capaz de se dirigir
a Trump com um discurso simples: se os negócios são o seu jogo, é aqui que eles
acontecem.
Para Donald Trump, o acordo é menos um avanço diplomático do que uma
narrativa cuidadosamente embrulhada como presente. Foi oferecido a ele um belo
enredo de triunfo – o retorno dos reféns israelenses, o fim do conflito -,
elaborado perfeitamente para corresponder a seu populismo político. O acordo de
cessar-fogo se encaixa perfeitamente na mitologia de sua presidência: um
negociador habilidoso, o líder que tem sucesso onde outros falham, o disruptor
que abala as fundações de impasses arraigados e status quo mortais.
Quanto a Joe Biden e sua equipe de política externa, o acordo serve como
um sombrio epílogo de seu mandato – uma sombra esmaecida no comando do poder,
persistente, mas impotente. Eles saem como filhos fiéis de um legado político
que exige lealdade inabalável a Israel, uma história que exigiu sua lealdade ao
mesmo tempo em que os desvendou. São trágicos liberais, não somente cúmplices,
mas tragicamente compelidos, testemunhas e participantes de uma máquina de
destruição que antecede seu tempo e sobreviverá a ele. Sua defesa, quando vier,
não se baseará no arbítrio, mas na necessidade, como se estivessem presos por
forças além de seu controle. E, no entanto, havia uma escolha. Eles escolheram
a monstruosidade e deixaram o cargo sabendo muito bem que poderia ter sido
diferente.
·
A narrativa fragmentada de
Israel
Em Israel, o acordo marca o desenrolar de uma narrativa e a tentativa de
construção de outra – uma tentativa precária de mudar da fantasia da vitória
total para o pragmatismo da vitória suficiente. Israel agora enfrenta os
limites de suas aspirações, compelido a se consolar com suas conquistas
geopolíticas. Isso inclui o sucesso de seu aparato de inteligência em se
infiltrar na resistência libanesa e sua capacidade de exercer imenso poder
destrutivo em Gaza e no Líbano. No entanto, essas conquistas celebradas
permanecem ofuscadas por contradições não resolvidas. Por trás da retórica
triunfalista está uma questão fundamental: o que, em termos tangíveis, Israel
alcançou?
Apesar das alegações de sucesso estratégico – um Hezbollah enfraquecido,
um Irã diminuído e um Hamas maltratado – Israel não garantiu a vitória total
que busca. O Hezbollah continua sendo uma força capaz, a influência regional do
Irã perdura e o Hamas persiste como um lembrete dos limites das campanhas
militares de Israel, enquanto o Iêmen provou sua capacidade de interromper o
transporte marítimo global. A grande mídia amplifica as afirmações de triunfo
estratégico, mas a realidade é muito mais preocupante: os militares
israelenses, antes mistificados, agora parecem brutais e altamente ineficazes,
com sua aura de invencibilidade destruída no cenário global.
Este acerto de contas se estende além do campo de batalha. Os fracassos
dos militares – sua incapacidade de antecipar ameaças ou entregar resultados
decisivos – irão lentamente se espalhar pela sociedade israelense, expondo
tensões de longa data. Atrasos na finalização de um cessar-fogo, priorização da
expansão dos assentamentos em vez de recuperação dos reféns para muitas forças
de direita e a recusa dos Haredim em se alistar aprofundaram as fraturas
internas. Essas tensões são agravadas ainda mais pelas tentativas de redesenhar
a estrutura legal do Estado e as consequências econômicas e sociais da guerra.
Para um Estado que vincula sua sobrevivência ao domínio militar, essas fissuras
revelam os limites da unidade após a guerra. A sociedade israelense agora terá
que contar com seus crimes, seus sucessos e sua nova imagem perante o mundo.
A conquista mais excepcional de Israel não está em garantir a vitória,
mas em mostrar uma devastação implacável – uma capacidade de destruir em escala
imensa. Essa persistência na destruição, em vez de alcançar a segurança,
ressalta até onde Israel está disposto – e autorizado – a ir. Nesse paradoxo
reside o fracasso mais profundo: o colapso de sua narrativa ética e a erosão de
sua legitimidade moral aos olhos do mundo.
O cessar-fogo expõe ainda mais uma crescente desconfiança na promessa de
segurança ao longo das fronteiras militarizadas de Israel, tanto no norte
quanto no sul. A ilusão de uma fortaleza impenetrável está se desgastando, à
medida que as fronteiras permanecem voláteis e os adversários perduram. Os
israelenses que vivem na fronteira são forçados a confrontar a verdade
inquietante de que os mecanismos projetados para garantir sua segurança não são
mais suficientes, sua eficácia minada pelas realidades duradouras da
resistência e da ocupação.
Incapaz de extinguir os palestinos ou suas reivindicações políticas, e
sem vontade de se envolver em uma gramática de reconhecimento, Israel se
condenou à guerra perpétua. Essa condição, longe de refletir força, destaca a
dependência aguda de Israel de seu patrono imperial, cujo apoio inabalável se
tornou mais essencial do que nunca para uma supremacia contínua fundida com o
discurso racializado na região. O vício da guerra deixa Israel navegando por um
caminho que não oferece nem resolução nem reconciliação – apenas a persistência
de suas contradições e de seu papel na definição das fronteiras da
monstruosidade no século XXI. Israel sai dessa guerra com um ambiente
estratégico alterado. Algumas dessas mudanças irão jogar em seu benefício e
permitirão que ganhe tempo. Mas, também, perde muito em termos morais,
políticos e, na verdade, nas suas próprias lutas sociais e políticas.
·
Resistência e questões de
futilidade e eficácia
O discurso palestino em torno da Tufan al-Aqsa (Inundação de Al-Aqsa)
está preso na fixação implacável no entendimento binário entre vitória e
derrota, reduzindo a violação do muro de Gaza em 7 de outubro a um cálculo frio
de utilidade e resultados.
Esse quadro predominante, impregnado da lógica da razão instrumental,
reconfigura a resistência em um esquema estéril de meios e fins, separando-a de
suas raízes históricas e existenciais. Enquadrar a questão como tática – Tufan
atingiu seus objetivos? – obscurece uma dialética mais profunda de necessidade
e futilidade que assombra as deliberações palestinas. Essa dialética não apenas
oscila entre agência e desespero, mas expõe uma armadilha sistêmica: a
resistência emerge como um desafio ao colonialismo, mas permanece enredada
pelas próprias estruturas que busca desmantelar.
Para os críticos da resistência a Israel, essa armadilha torna-se uma
acusação constante. Segundo sua lógica, a resistência é incluída na maquinaria
colonial à qual se opõe, reduzida a uma inevitabilidade trágica desprovida de
poder transformador. Nessa visão, a resistência apenas proporciona poder e
oportunidade para se expandir e se reafirmar. Através desta lente, Tufan, para
alguns palestinos, torna-se um exercício de futilidade.
Em 15 meses de guerra, as vozes daqueles que argumentavam contra a
necessidade de resistência e questionavam sua eficácia pediam que o Hamas se
rendesse, entregasse suas armas e implorasse por misericórdia. Muitos dos que fizeram
esse apelo argumentaram que Israel não sucumbiria, não libertaria prisioneiros
palestinos e continuaria a guerra até expulsar os palestinos de Gaza ou anexar
o território para construir assentamentos. Embora o acordo de cessar-fogo não
impeça o retorno à guerra e a retomada desse mesmo processo, o retorno dos
palestinos do sul ao norte de Gaza e a retirada parcial das tropas israelenses
refletem a extensão e a amplitude das concessões israelenses. Essas concessões
ocorreram durante uma semana especialmente difícil para as tropas israelenses,
com até 15 soldados mortos em toda a faixa, inclusive no norte de Gaza.
Em outras palavras, o próprio fato de que um acordo de cessar-fogo foi
alcançado – um cessar-fogo que mitiga algumas das piores ansiedades entre os
palestinos – perturba a lógica daqueles que defendem a futilidade da
resistência, embora não inteiramente. Revela que Israel, apesar de seus planos
de limpeza étnica em Gaza, foi obrigado a ceder. A resistência perdura, o Hamas
permanece firmemente no poder e, mesmo que abdicasse desse poder, a abdicação
ainda teria que passar pelo próprio Hamas.
Embora o futuro permaneça incerto – frágil, com o acordo sendo
possivelmente quebrado a qualquer momento e a ameaça iminente de uma nova
guerra -, sua própria existência fratura a aposta dos palestinos alinhados com
a futilidade da resistência. Nas próximas semanas, os prisioneiros palestinos
deixarão as prisões israelenses e as pessoas deslocadas para o sul de Gaza
retornarão ao norte. Israel executou uma guerra punitiva, mas também chegou a
um limite, demonstrando que a questão palestina persiste apesar da monstruosa
vontade que Israel empregou nesta guerra.
·
O projeto de libertação e um
acerto de contas existencial
Desde o início da guerra, uma onda de intelectuais palestinos e árabes
invocou a tradição da autocrítica, uma tradição profundamente enraizada na
experiência intelectual árabe, particularmente após a Nakba ou a guerra de
1948, e mais tarde Al-Naksa, ou a guerra de 1967. Este momento de reflexão, emergindo
com uma velocidade quase urgente, baseia-se em uma genealogia da crítica
forjada à sombra da derrota.
No entanto, parece carregar em si um inerente paradoxo: a derrota, tanto
em sua realidade material quanto em seu peso simbólico, não é apenas mais um
resultado, mas se tornou a estrutura, a própria lente através da qual o eu
coletivo percebe sua existência.
O eu coletivo é, portanto, apresentado como sujeito e objeto de um
questionamento implacável – um questionamento disposto a desvendar as “ilusões”
que obscurecem a realidade ou impedem a realização de uma possibilidade mais
“pragmática”. Começa, aparentemente, como um esforço terapêutico, um meio de
contar com o fardo de aspirações equivocadas. E, ainda assim, a recorrência de
declarações como “tudo em que acreditávamos entrou em colapso; tudo o que
esperávamos falhou; tudo o que sonhamos desapareceu”, revela que esse
questionamento não apenas desestabilizou estratégias ou táticas, mas mergulhou
mais fundo na própria essência da resistência. Em outras palavras, passou da
autocrítica para a autolaceração.
O que emerge não é uma simples crítica, mas um acerto de contas
existencial, um discurso que remodela a relação entre esperança e desespero,
entre a ação e significado. O questionamento não visa refinar táticas, mas
desestabilizar as bases da resistência, levantando um espectro muito mais
preocupante: o projeto de libertação se enredou no absurdo da própria luta?
Suas contradições excederam a capacidade da história de resolvê-las ou
contê-las? É uma dialética que levou alguns a defender a retirada, a dizer
“vamos nos concentrar na construção do Líbano” ou “vamos assinar nosso próprio
Acordo de Oslo e seguir em frente”. Esses apelos, envoltos na linguagem da
racionalidade, mascaram uma rendição não apenas do território, mas da própria
gramática da resistência.
Em sua essência, a resistência não pode ser reduzida a suas dimensões
táticas ou estratégicas. Não é apenas um confronto no campo de batalha, mas uma
ruptura das certezas ontológicas do colonizador. Sua essência está em forçar o
colonizador a confrontar questões que ele procurara evitar: seu poder pode
realmente garantir a resolução? Os massacres proporcionam finalidade ou
aprofundam o abismo?
A resistência força o colonizador a encontrar sua própria contingência,
a reconhecer a fragilidade das estruturas que acreditava inatacáveis. Nesse
sentido, o campo de batalha não é um espaço apenas de violência, mas também de
interrogação – um local onde a soberania do colonizador está sujeita a dúvidas.
Em outras palavras, o objetivo da resistência é forçar o inimigo a se
questionar.
Um dos legados deste momento é se Israel enfrentará essas questões ou
permanecerá intoxicado por seu próprio poder. Questionará a extensão de sua
dependência dos Estados Unidos? Contará com a insustentabilidade de controlar o
destino de outro povo? E, depois de se tornar nuclear e tentar apagar os
palestinos para acabar com o conflito, Israel se contentará em apenas ganhar
tempo ou escolherá um caminho diferente? Embora isso permaneça, em si, uma
questão em aberto, as tendências fascistas de suas principais forças motrizes
tornam mais plausível que Israel aposte seu futuro em um mundo semelhante ao
atual acordo com os palestinos: muros, apartheid, deportações, exploração de
trabalhadores indocumentados, supremacia étinico-religiosa e uma vocação
implacável para a monstruosidade. Mas isso não elimina o mero fato de que o
desejo de Israel pela vitória total atingiu um limite, apesar de seu
excepcionalismo, e que essa suficiência da vitória signifique apenas que a
guerra continuará por outros meios.
·
O desmoronamento do
excepcionalismo israelense
A guerra revelou a falência moral norte-americana, a supremacia
racializada de Israel, sua monstruosa capacidade de destruição e sua teia profundamente
emaranhada de investimentos ideológicos, psíquicos e políticos no apagamento e
dominação. Este não é apenas um conflito de armas, mas uma revelação das
estruturas que sustentam e perpetuam a máquina da violência. A guerra expôs o
excepcionalismo em torno de Israel – não apenas em conceder impunidade ao
Estado, não apenas em silenciar e suprimir a dissidência em toda a Europa e
América do Norte, não apenas dentro de instituições acadêmicas ou da grande
mídia, mas em sua capacidade descarada de cometer crimes ao vivo.
Para os palestinos, essa capacidade é vista através de uma lente amarga,
como um poder israelense. Afinal, Israel é apresentado como um Estado que pode
se safar de qualquer coisa, uma realidade tão opressiva quanto a própria
violência. No entanto, é também esse mesmo excepcionalismo, esse limite imposto
ao discurso, que chama a atenção para a desconstrução de Israel como um estado
de supremacismo judaico e colonizador. Esse desenrolar não é simplesmente uma
questão palestina: é um apelo urgente para uma mudança radical – não apenas na
Palestina, mas em todo o mundo. Este continuará sendo o horizonte persistente
dos Tufan, muito depois do cessar-fogo – e, que crucialmente, nunca cessará na
Palestina.
¨ Israel já matou mais de 47 mil pessoas em Gaza, afirma
Palestina
O Ministério da
Saúde de Gaza informou nesta terça-feira (21) que o número de mortos chegou a
47.107 e o de feridos a 111.147 no enclave palestino devido à ofensiva
israelense, desde 7 de outubro de 2023.
De acordo com as
autoridades de Gaza, somente nas últimas 24 horas chegaram aos
hospitais da Faixa de Gaza um total de 71 corpos e 56 feridos.
O número de corpos
recuperados pode aumentar nas próximas horas, pois, de acordo com a autoridade
sanitária, muitas vítimas ainda estão enterradas sob escombros que equipes de
resgate não conseguiram acessar.
"Numerosas
vítimas permanecem sob os escombros e nas estradas às quais as equipes de
ambulâncias e de proteção civil não conseguem chegar", informou o
Ministério da Saúde de Gaza.
De acordo com o canal de TV Al Jazeera, 120 corpos foram
encontrados em Gaza nos últimos dois dias. Pelo menos dez palestinos foram
mortos e muitos ficaram feridos em um ataque militar israelense na cidade
de Jenin, na Cisjordânia ocupada, segundo autoridades de saúde.
Mais cedo, o
primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, anunciou o lançamento
da operação antiterrorista Parede de Ferro na Cisjordânia para
reforçar a segurança.
Na última
quarta-feira (15), Israel e o movimento Hamas concordaram com um acordo de
cessar-fogo por 42 dias mediado por Catar, Egito e Estados Unidos, que
prevê a entrada em vigor já no domingo (19).
A primeira fase do acordo estipula a troca de 33
israelenses detidos pelo Hamas por cerca de mil prisioneiros palestinos. As
forças de Israel terão que se retirar para as fronteiras da Faixa de Gaza,
embora permaneçam dentro dos seus limites territoriais por enquanto.
Fonte: Por Abdaljawad Omar, no site Mondoweiss, traduzido por Raquel Foresti, para Opera Mundi
Nenhum comentário:
Postar um comentário