Pão
vira inimigo se você pensar só em proteína e carboidrato, diz Rita Lobo
Há 25
anos, a chef de cozinha Rita Lobo lançava o site Panelinha com um intuito
simples: ensinar qualquer pessoa a cozinhar em casa para ter uma alimentação
mais saudável baseada em comida de verdade.
A ideia
era ajudar o público, de forma simples e democrática, a evitar os chamados
ultraprocessados, alimentos feitos majoritariamente com ingredientes
industriais, aditivos químicos e poucos itens in natura.
A
missão se provou cada vez mais relevante: os alimentos ultraprocessados já
respondem por cerca de 20% das calorias diárias ingeridas pela população
brasileira, segundo uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
No
mundo, os dados são ainda mais alarmantes: em alguns países de alta renda, como
o Reino Unido, os alimentos ultraprocessados já respondem por mais de 50% das
calorias consumidas, segundo estudo da revista Lancet.
Neste
mês de novembro, a mesma publicação científica lançou uma série especial focada
nos efeitos dos alimentos ultraprocessados sobre a saúde humana.
O
conjunto reúne três artigos assinados por 43 pesquisadores de diferentes países
e pede adoção de políticas públicas que combatam o avanço dos ultraprocessados.
A chef
brasileira foi uma das convidadas para o lançamento presencial, em Londres, e
conversou com a BBC News Brasil sobre a responsabilidade da indústria, o papel
das políticas públicas e o desafio de tornar a comida de verdade acessível em
um mundo cada vez mais dominado por produtos ultraprocessados.
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Confira a entrevista abaixo.
• Se precisasse traduzir o que essa série
traz para um público leigo, como faria?
Rita
Lobo - Eu diria assim: "Leia a lista de ingredientes do rótulo. Se tiver
nomes de coisas que você não tem na sua cozinha, deixe no supermercado".
O que a
revista está dizendo é que esses produtos que parecem comida, têm cheiro de
comida, têm sabor de comida, na verdade, são formulações industriais que o
corpo não entende mais como comida.
E, em
função disso, o consumo desses produtos, que tira da mesa a comida de verdade,
está adoecendo as populações.
Os
índices de obesidade no mundo só crescem, e com eles crescem as doenças
crônicas não transmissíveis, como doenças coronárias, diabetes, alguns tipos de
câncer e até problemas ligados à saúde mental.
O que a
Lancet está dizendo é que não basta só os indivíduos fazerem escolhas melhores.
São necessárias políticas públicas que levem comida de verdade às pessoas e que
dificultem o acesso e o consumo dos ultraprocessados.
• Como reconhecer um ultraprocessado?
Rita
Lobo - O principal é a lista de ingredientes. Mas também existe uma lógica: é
um produto pronto para comer, que você não precisa cozinhar?
E é
importante saber o que é comida de verdade, que é aquela feita a partir de
alimentos in natura ou minimamente processados. Não é só o que você compra na
feira. Quando você compra um pacote de feijão, ali dentro tem feijão. Não é
"feijão sabor feijão".
Um
iogurte natural, por exemplo, não é ultraprocessado, porque só tem leite e
fermento. Não tem adição de açúcar, adoçante, corante, saborizante ou
emulsificante. É basicamente leite e fermento.
A
comida de verdade é feita por mãos humanas, não é feita na fábrica, e ela leva
em conta um padrão alimentar tradicional.
No
Brasil, é o arroz com feijão, os legumes, as verduras, a farofinha. O problema
não é a batata frita — o problema é a batata frita ultraprocessada, aquelas
congeladas, cheias de amidos modificados e aditivos.
• E o que mantém as pessoas mais longe
hoje de cozinhar?
Rita
Lobo - Essa é uma pergunta complexa. Durante muito tempo, até os anos 90 no
Brasil, as pessoas comiam mais comida de verdade. Em países como Estados Unidos
e Inglaterra, isso foi até as décadas de 60 ou 70.
As
mulheres não trabalhavam fora. Quando elas foram para o mercado de trabalho — o
que foi essencial — os homens não ocuparam esse lugar na cozinha. E a cozinha
virou uma espécie de terra de ninguém.
A
indústria que antes ajudava a conservar alimentos passou a perceber que era
muito mais lucrativo oferecer comida pronta, com uma validade enorme e com
ingredientes cada vez mais baratos, cheios de aditivos que fazem o produto
parecer comida.
Hoje,
são bilhões de dólares em marketing dizendo, desde que a criança nasce, que
aquelas misturinhas industriais são melhores que a comida de verdade.
E trago
outro ponto: você disse que comeu ovos mexidos hoje no café da manhã. Muita
gente escolhe essa refeição por ser uma fonte de proteína.
E a
maioria das pessoas não diz "eu comi ovos", diz "eu comi minha
proteína". "Estou evitando carboidrato simples."
Esse
jeito de falar muda tudo. Quando o que você "precisa" é proteína,
tanto faz se vem do ovo ou do whey. Tanto faz se você vai comer frango ou um
iogurte proteico. Até o jeito de falar sobre comida é moldado por essa
indústria.
A gente
passa a chamar os alimentos pelo nutriente que eles entregam. E, a partir daí,
tanto faz estar escolhendo comida de verdade ou um produto. Porque o foco vira
o nutriente — e você começa a perder a capacidade de diferenciar o que é comida
e o que não é.
• Essa onda desumaniza o jeito que a gente
vê a comida?
Rita
Lobo - Totalmente. Isso tem nome na nutrição: reducionismo nutricional. Quando
você passa a escolher a comida só pelo nutriente que ela vai te entregar, você
perde a referência do que é comida de verdade.
Até o
jeito de falar muda. Em vez de "vou beber água", a pessoa diz
"preciso me hidratar". E aí alguém aparece dizendo que tem algo
"melhor que água", como um isotônico. E você cai nessa armadilha.
• Algum ultraprocessado entra na sua casa?
Rita
Lobo - Quando você vira a chave, você percebe que não precisa de
ultraprocessados. Pelo contrário: hoje, se alguém me oferece um
"chocolate" que já nem é mais chocolate — esses confeitos com sabor
de chocolate dos produtos comerciais —, para o meu paladar é doce demais,
artificial demais. Não é algo que eu ache gostoso, nem algo que eu queira
comer.
E eu
sei, por experiência própria, que é possível ter uma alimentação baseada em
comida de verdade. Mas tem duas coisas essenciais.
A
primeira: não existe querer ter uma alimentação saudável e não saber cozinhar.
A
segunda coisa é o planejamento. Se você decide o que vai comer só na hora da
fome, você vai fazer piores escolhas.
As
nossas avós já faziam isso: cardápio semanal, lista de compras, para não
comprar demais nem de menos. Se você compra mais, joga comida fora — e joga
dinheiro fora. Se compra menos, falta ingrediente o tempo todo: "Esqueci
de comprar cebola, não dá para fazer o arroz".
Planejar
é essencial, inclusive para o orçamento. E pensar em comida três vezes por dia
cansa. Se você pensa nisso uma vez por semana, planejando, fica muito mais
fácil manter uma alimentação saudável. Você compra melhor, cozinha mais, divide
porções, congela.
Planejamento
é fundamental. Aprender a cozinhar é fundamental.
E isso
não é "assunto de dona de casa". É assunto da casa. É o motivo de eu
ter me aproximado tanto do mundo da saúde pública, porque hoje a ciência e a
medicina entendem que transformar alimentos in natura e minimamente processados
em comidas gostosas é uma ferramenta poderosa para ter uma vida melhor, mais
saudável — e mais saborosa também.
• E eu queria perguntar o que acha da
inteligência artificial na cozinha, que é sempre um espaço tão humano.
Rita
Lobo - Eu vejo de forma muito positiva, porque a inteligência artificial ajuda
em coisas que as pessoas já não têm tanta habilidade.
Por
exemplo: planejar. Se eu te disser agora "faz um planejamento básico de
quatro dias do que você vai comer e uma lista de compras", você vai
demorar muito tempo. E talvez nem faça tão bem quanto as nossas avós faziam,
porque elas tinham essa habilidade.
A
inteligência artificial sabe fazer isso. Você precisa saber perguntar, mas eu
acho uma coisa muito boa.
Para
criar receita, eu ainda não estou totalmente satisfeita. Eu adoraria que fosse
melhor.
No
Panelinha a gente tem uma equipe testando receitas todos os dias, das 9h às
18h.
A gente
testa receita para quem mora sozinho, por exemplo. Porque quando você mora
sozinho, você tem praticamente um relacionamento com o repolho. Ele dura. Mas
você faz uma vez e, no dia seguinte, pensa: "de novo repolho?". Então
a gente testa inúmeras formas de preparar o mesmo ingrediente.
Uma
hora grelhado, outra hora assado com bacon, outra hora refogado com cominho,
que muda completamente o sabor, outra hora em salada com maçã... A gente fica
testando possibilidades.
A
inteligência artificial ainda não está totalmente pronta para criar receitas
assim, mas para planejamento eu acho que ela é muito boa.
• E falando de política pública, para quem
quer cozinhar mais em casa, tem um cenário ideal que poderia ajudar e fazer
alguma diferença contra esse lobby milionário dos ultraprocessados?
Rita
Lobo - Quanto mais a gente cozinha e compra alimentos in natura e minimamente
processados, mais a gente estimula esse mercado.
E
quanto menos a gente consome ultraprocessados, mais a gente desestimula esse
outro mercado. Claro que essa comparação não é simples, nem totalmente justa.
Tem gente que realmente não consegue ter outro tipo de alimentação.
Aqui na
Inglaterra, por exemplo, cerca de 52% das calorias vêm de ultraprocessados.
Então é mais complexo.
A
sensação de que cozinhar é um peso muda quando você entende que cozinhar é a
melhor ferramenta que você tem para ter uma vida melhor. Quanto mais você
cozinha, mais fácil fica.
Tem uma
coisa que me incomoda muito — mas eu sou educada, não saio brigando com
ninguém. Quando as pessoas dizem: "Ai, o que você faz é um dom. Cozinhar é
uma arte. Eu acho lindo, mas não é para mim, eu não tenho mão."
Quando
você diz isso, você está dizendo que ou a pessoa nasce com isso, ou nunca vai
cozinhar. E não é verdade. Cozinhar é como ler e escrever: você não nasce
sabendo, você aprende.
Todo
mundo aprende a ler e escrever. Uns viram grandes escritores, outros não
conseguem escrever uma mensagem direito, mas aprenderam. Cozinhar é a mesma
coisa.
Não
estou dizendo para ninguém virar chef, mas aquele básico para garantir uma
alimentação saudável, saborosa e dentro do orçamento, todo mundo pode aprender.
• Você viaja bastante. Está em Londres
essa semana. O que vê nos supermercados em comparação com o Brasil, com os
Estados Unidos, outros países?
Rita
Lobo - Caro. Esse é o primeiro ponto. Muito caro. No Brasil, hoje, comer comida
de verdade custa mais ou menos o mesmo que basear a alimentação em
ultraprocessados. Aqui, comer comida de verdade é mais caro, e isso você sente
no supermercado. Os ultraprocessados são muito mais baratos.
Parte
disso é porque no Brasil ainda se come muita comida de verdade, ainda existe
mercado para isso.
Quanto
menos a gente comer comida de verdade, mais baratos vão ficar os
ultraprocessados e mais caras vão ficar as opções realmente saudáveis.
Outra
coisa que me chama atenção em qualquer lugar que eu vou é que, quando estamos
no Brasil, o melhor jeito de se alimentar é seguindo a dieta brasileira. Quando
estamos na Itália, o melhor jeito é comer como os italianos.
Isso
acontece porque essas culinárias foram sendo construídas a partir dos alimentos
abundantes daquela região. Aqui na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá,
na Austrália, não existe um padrão alimentar tradicional tão claro, tão
equilibrado.
Quando
eu chego nesses lugares, eu tento buscar coisas mais frescas, que viajaram
menos. Eu adoro cozinhar onde eu vou. Vou ao mercado, compro comida e tento
entender os ingredientes locais.
No
Brasil, por exemplo, a gente nem imagina que cheddar pode ser um queijo
maravilhoso, porque a nossa referência é aquele "plástico" amarelo.
Aqui você encontra queijos cheddar incríveis, com diferentes tempos de
maturação. Então é isso: buscar comida local, comer o que é da região.
• Falando em comida local, o nosso PF
brasileiro… Ele é tudo isso mesmo? O que os outros países podem aprender com
ele?
Rita
Lobo - Ele é tudo isso e muito mais. Pensa o seguinte: há cinco grupos de
alimentos que a gente precisa comer.
Um
grupo é o dos cereais, raízes ou tubérculos. Esses três alimentos — um cereal
como o arroz, como a aveia, raiz ou tubérculo como a mandioca, como a batata —
formam um grupo, porque eles têm um papel nutricional parecido.
Aí a
gente precisa comer uma leguminosa, que são os feijões, o grão-de-bico, a
lentilha.
Aí a
gente precisa comer hortaliças, que é tudo que vem da horta: os legumes e as
verduras.
A gente
precisa — quer dizer, não precisa obrigatoriamente, mas pode — comer carnes e
ovos.
E a
gente precisa comer frutas.
Então,
o PF já tem quatro desses grupos, porque ele tem o arroz, que é o cereal; o
feijão, que é uma leguminosa; o bife, o frango, o ovo ou o peixe, que entram
como a carne.
E aí,
nas hortaliças, ora é um chuchu refogadinho, uma saladinha com tomate, a
cenoura ralada… e assim por diante.
Então,
o PF é uma fórmula de alimentação saudável. Ele já traz tudo isso.
E um
outro ponto: o feijão tem 19 aminoácidos. Para virar uma proteína, precisava de
mais um. E o arroz tem esse essa proteína essa esse aminoácido que faltava.
Então, é por isso que juntos o arroz com feijão formam uma potência
nutricional.
Só fica
faltando a fruta, que a gente pode — e deve — comer como sobremesa, mesmo que
vá comer um doce.
Fonte:
BBC News Brasil

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