Desafios
diante do pacto racial brasileiro
O mesmo
Estado que mata nas favelas é o que legitima nos tribunais a precarização –
duas faces de um genocídio que transforma corpos negros em combustível do
capital
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Percurso do genocídio do negro brasileiro
Em
1978, Abdias do Nascimento escreveu: “Levantei a voz e me identifiquei não como
representante do Brasil, mas como um sobrevivente da República de Palmares”.
A cada
novo massacre, setores diversos do espectro político são confrontados com a
permanência estrutural do racismo. Quando, em 1978, Abdias do Nascimento
denunciou o genocídio do povo negro brasileiro, ele não se referia a um evento
isolado, mas a uma política de Estado – uma engrenagem socioeconômica e
cultural que opera, há séculos, o extermínio e a desumanização do povo negro
neste país. Quase cinquenta anos depois, a denúncia permanece atual.
A gente
pode olhar para o último 28 de outubro, mas soa a muitos outros, anteriores: 26
de julho de 1990 (11 mortos, Acari); 2 de outubro de 1992 (111 mortos,
Carandiru); 23 de julho de 1993 (08 mortos, Candelária); 29 de agosto de 1993
(21 mortos, Vigário Geral); 12 a 21 de maio de 2006 (564 mortos, Baixada
Santista); 06 de maio de 2021 (27 mortos, Jacarezinho); 24 de maio de 2022 (25
mortos, Vila Cruzeiro).
A
chacina nos complexos do Alemão e da Penha, ocorrida há menos de um mês, repete
o roteiro que se conhece desde que a primeira pessoa escravizada que pisou
nesta terra, aquilombou e resistiu – de Palmares, ao Massacre de Porongos,
chegando, na atualidade, a muitas outras chacinas: invasão militarizada,
execução sumária, ausência de socorro, silêncio institucional, comemoração nas
manchetes, desumanização dos corpos de trabalhadoras e trabalhadores negros,
vilipêndio ás suas memórias e representantes dos poderes a justificar as mortes
e a reproduzir a lógica de proteção prioritária ao patrimônio da classe
dominante, em vez da vida humana.
São
esses territórios racializados – marcados por precariedade social e pela
resistência histórica do povo negro – tratados desde sempre como zonas de
sacrifício permanente. Um sacrifício, que não alimenta só os “passa fome,
metido a Charles Bronson”. Alimenta o mercado de pessoas dispostas a arrumar
qualquer trabalho precarizado para sobreviver, por óbvio, mas, também, para
tentar ser parte dos protegidos pela promessa intrínseca ao pacto de cidadania
cujo maior símbolo é a carteira de trabalho assinada. “Sou trabalhador, não me
mata” são frases comuns de se ouvir nos depoimentos de sobreviventes ou
testemunhas oculares das chacinas neste país. Mas o Estado sabe bem que
“morreu, neguinho, virou bandido”.
O
Brasil ainda vive sob os restos de uma abolição inconclusa. E cada operação
policial em favelas, presídios, blitz policiais para apreender motos de
entregadores negros escancara o que é a lei de 13 de maio e como se faz a
gestão da maior parte da classe trabalhadora brasileira desde então: uma
promessa de liberdade convertida em gestão de medo e morte.
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A sofisticação das tecnologias de extermínio
As
formas contemporâneas do genocídio se tornaram mais sofisticadas. Se na década
de 1970 Abdias do Nascimento denunciava o genocídio físico, moral e cultural,
somos a geração que está assistindo se somar a estes elementos a gestão
algorítmica da vida, típica desta fase do capitalismo chamada de
neoliberalismo.
O
relatório da Agência Brasil (2025) mostra que, dos 45 mil assassinatos
ocorridos em 2023, mais de 35 mil foram de pessoas pretas e pardas. O Atlas da
Violência 2024 já apontava 76,5% de vítimas negras entre os 46 mil homicídios
de 2022. A letalidade policial permanece aterradora: 6.243 mortes em 2024 –
média diária que a operação do Alemão e da Penha ultrapassou, segundo
levantamentos preliminares, patamares excepcionais de letalidade. No mundo do
trabalho, a morte também tem cor: artigo da Revista Brasileira de Saúde
Ocupacional denuncia o padrão de que o trabalho mata mais pessoas negras.
Esses
números são evidências do extermínio. O que Abdias do Nascimento chamou de
genocídio do povo negro brasileiro se manifesta na frieza da necropolítica: a
contabilidade da morte como rotina. Se em Gaza, entre outubro de 2023 e maio de
2025, 53 mil pessoas foram mortas, sendo 83% civis, no Brasil, o genocídio
negro mata, ano após ano, em silêncio, uma Gaza inteira — sem que se reconheça
a guerra e o genocídio em curso. Basta que se olhem as estatísticas para que
compreendamos o quanto nós, enquanto sociedade, somos conivente com milhares de
mortes que acontecem próximas, bem embaixo do nosso nariz.
Lutar
pelo fim do genocídio em Gaza é urgente, tal qual o é lutar pelo fim no
genocídio em todo o mundo, inclusive os que acontecem, sem declaração formal de
guerra, como no Brasil.
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Da cela ao aplicativo – o novo rosto da engrenagem
Como
argumentei no artigo “Da cela ao aplicativo”, postado no site A Terra é
Redonda, o Judiciário, o sistema prisional e o mercado de trabalho compõem uma
mesma linha de montagem do genocídio. A “escolha” possível para jovens negros é
de morte, dada a estrutura social e econômica que opera sobre esses corpos:
entre a bala e o aplicativo, a vida negra será consumida sem nunca gozar do
bem-viver e será tratada racionalmente como perdas toleráveis no jogo do
capitalismo; essas são as vidas descartáveis e que, por isso mesmo, não devem
ter direito algum garantido.
A
“modernização” da economia brasileira não rompeu com a lógica colonial para a
superexploração, mas a reconfigurou, pois o mesmo Estado que mata nas favelas é
o que legitima, nos tribunais, a precarização extrema e a negação de direitos
trabalhistas, movimento de suma importância para os capitalistas nacionais e
estrangeiros, numa economia de capitalismo dependente como é a brasileira.
Essa
fusão entre exploração e extermínio, esta superexploração racializada da força
de trabalho, é mecanismo pelo qual o capital dependente extrai valor não apenas
do trabalho vivo, mas também da morte administrada dos corpos negros. O
genocídio, nesse sentido, não é falha moral do Estado, mas política econômica
de regulação da força de trabalho excedente. É a gestão da morte como condição
de acumulação e disciplinamento do grande contingente de trabalhadores
precarizados negros.
A
reprodução dependente do capital se sustenta, hoje, na racialização da pobreza
que gera uma multidão sem possibilidade de reação e que necessitam se entregar
à superexploração de suas forças de trabalho para tentar sobreviver. A
necroeconomia brasileira opera assim: regula a empregabilidade pelo medo e pela
morte: o trabalhador negro sabe que o mesmo Estado que o obriga a aceitar a
entrega por aplicativo o pode matar na esquina. É a mesma engrenagem.
A
exploração e a morte são fases de um mesmo ciclo: o jovem negro que sobrevive
às chacinas nas favelas é empurrado para o trabalho informal, o subemprego, o
aplicativo. Se morre em serviço, vira estatística de acidente de trabalho – se
for registrado. Se protesta, enfrenta a repressão direcionada historicamente às
classes trabalhadoras racializadas, vide Rafael Braga. Se não se submete à
superexploração, buscando “ser bem sucedido”, procurando “dar uma solução
rápida e fácil pros meus problemas”, como ensina Afro-X, entrando para o crime,
é morto.
A
escolha que a pessoa trabalhadora negra tem desde cedo é essa: “Pega peso pro
patrão, curtir as férias no resort” ou, sendo diferenciado, sendo relíquia
mesmo, “Moleque bom quer ser patrão, pegar o peso do malote” é o que canta
Rincon Sapiência com N.I.N.A. na música Levantando a Taça.
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O mito da democracia e a falsa abolição
Em
Massacre de Jacarezinho, mais um retrato da falsa abolição, escrevi que o
racismo não atinge apenas uma pessoa, mas toda uma comunidade sobrevivendo e
resistindo em diáspora. Essa constatação permanece verdadeira e estamos
constantemente destruídos pela ausência de solidariedade de nossos pares de
classe.
O
Estado brasileiro insiste em se afirmar democrático enquanto naturaliza a morte
seletiva da população negra. Em que país democrático a morte massiva de civis
poderia ser relativizada no discurso público do chefe do Poder Executivo
estadual? Em que país democrático a constituição e sua garantia de que não há
pena de morte para civis isso seria possível? O que se chama de democracia é,
na verdade, a gestão desigual da cidadania: para alguns, a plenitude dos
direitos; para outros, a suspeição permanente.
Enquanto
nos horrorizamos com agentes americanos invadindo casas de estrangeiros sem
mandato, em sua guerra ao terror, aqui assistimos isso acontecer cotidianamente
em nome de uma guerra às drogas com reações institucionais desiguais, muitas
vezes insuficientes para reverter o quadro estrutural.
A
Constituição de 1988 representou uma vitória parcial da classe trabalhadora e
dos movimentos sociais, mas não conseguiu romper o pacto racial sob o qual se
funda nossa República: quem estava nas instituições seguiram sendo os mesmos
homens brancos historicamente beneficiados pela exclusão do grande contingente
de gente da classe trabalhadora dos espaços de decisão.
A
deslegitimação da Constituição e o não cumprimento pleno de suas promessas em
relação ao povo negro – com o esvaziamento de suas políticas – é tarefa que a
classe dominante nacional – historicamente alinhada aos interesses do capital
internacional – cumpre com zelo e perfeição: reformas trabalhistas, reforma
administrativa, reforma previdenciária, cortes orçamentários, privatizações,
militarização da segurança pública e da educação. Tudo isso estrutura o projeto
imperialista de dominação, exploração e pilhagem, restaurando a ordem colonial
sob roupagem democrática amparado em políticas cujo resultado é, de tempos em
tempos, corpos negros colocados lado a lado para deleite de quem goza com a
espetacularização da desgraça do povo negro.
O
genocídio do povo negro não se combate apenas com indignação moral e discurso.
Requer ruptura epistemológica. Requer o reconhecimento de que a neutralidade
jurídica é cúmplice do extermínio. Essa neutralidade que não é só mera omissão,
mas forma social racializada. O Direito do Trabalho, por exemplo, ao aceitar o
contrato intermitente, converteu a exploração em liberdade. A mesma
racionalidade jurídica que caminha para legitimar a uberização é a que, na ADPF
635, hesitou em frear a letalidade policial.
A ADPF
635, aliás, é mais um exemplo de como o direito liberal, enquanto
forma-mercadoria, hesita diante da proteção da vida negra: reconhece o
problema, cria planos, protocolos e relatórios, mas mantém intacta a
engrenagem, tal qual a Lei Áurea: a homologação parcial de 2025
institucionalizou a hesitação como política de Estado – freou o verbo (ou nem
isso, considerando as falas do chefe do executivo estadual), não a bala.
Tem-se, aí, materializada a limitação inerente às respostas liberais diante de
uma estrutura racializada de violência. É a forma-mercadoria-direito traduzindo
o valor de troca em valor de vida.
Não é
mais possível que a parte da classe que goza das proteções jurídicas no Brasil
siga ignorante ao que denunciam os MCs há anos – de Cidinho & Doca, em seu
Rap da Felicidade, a Poze do Rodo na poesia de protesto “Talvez: as pessoas que
moram nesses territórios, que sustentam a metrópole com sua força de trabalho
querem bem-viver e nada mais. Como bem expõe Poze do Rodo – que tem letras de
músicas mais perigosas para o sistema capitalista do que se tivesse com um
fuzil nas mãos – denuncia assertivamente:
E se eu
disser que a polícia tá matando quem acorda cinco da manhã
Pra
trabalhar tentando ser alguém?
E se eu
disser que, na verdade, o sistema é mó covarde
Vê o
povo passar fome e não ajuda ninguém?
Favelado
tem que juntar com favelado pra fazer acontecer
Porque
eles nunca vai fechar com nós
Poze do
Rodo aponta a solidariedade de classe como saída deste impasse e, não se
engane: ele sabe do que fala, pois a realidade e a historicização das
explorações e flexibilizações – também como parte do genocídio do povo negro –
nos ensinou que “se não for nóis
não vai
ser ninguém, com nóis é nóis”.
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Encruzilhadas do capital e da morte
Na
encruzilhada gênero-raça-classe-capacidade-sexualidade, as estatísticas ganham
corpo: são mulheres negras que perdem filhos para a polícia e vivem
superexploradas por conta da falta de proteção dos trabalhos realizados por
corpos negros, em regra, precarizados; são pessoas negras com deficiências
invisibilizadas, mas também mortas pelo Estado, como na Operação Verão; são
trabalhadoras negras empurradas para o serviço doméstico, um dos espaços mais
desprotegido da legislação e com fiscalização por parte de auditores fiscais do
trabalho ainda diminuta que gera anualmente casos assustadores como o de Sônia.
Essas
encruzilhadas revelam o caráter estrutural do genocídio: o racismo não é
desvio, não é coisa de governo A ou B, mas é engrenagem. O racismo organiza a
divisão do trabalho, regula o valor da vida e define quais vidas são
socialmente reconhecidas como plenamente dignas de proteção.
Não há
democracia possível enquanto o Estado brasileiro insistir em tratar a população
negra como inimiga interna, assim como não há cidadania sem reparação e,
tampouco desenvolvimento sem a descolonização do pensamento e das instituições.
Mais: não há que se reivindicar amor por parte do povo negro quando a realidade
cotidiana ainda é marcada pela violência sistemática.
Reatualizar
a denúncia de Abdias do Nascimento, lhe expandindo, é, hoje, reconhecer que a
bala e o aplicativo são faces de um mesmo sistema. É afirmar que o genocídio
brasileiro é comparável, em escala e impacto, às guerras declaradas pelo mundo.
E é lembrar, como escreveu Clóvis Moura, que o povo negro sempre resistiu – e
porque resiste é que ainda há um país. Nós somos os que verdadeiramente “ainda
estamos aqui”, vivenciando tortura, morte, sumiço de corpos, condenações
políticas e retirada de direitos trabalhistas arduamente conquistados na base
de morte e medo!
Os
nomes das vítimas mudam, mas o mecanismo é o mesmo.
Jacarezinho,
Alemão, Penha, Bahia, Rio Grande do Sul, Alagoas, Pernambuco, São Paulo; pouco
importa: da senzala ao presídio, dos cantos ao aplicativo, a lógica é a mesma:
conter, disciplinar, explorar e descartar corpos negros.
Enquanto
o país não fizer justiça e enquanto não se enxergar nas mortes de cada
trabalhador negro o reflexo de seu próprio fracasso civilizatório, não haverá
democracia, nem liberdade, nem vida que valha a pena ser vivida.
O
genocídio do povo negro é reproduzido estruturalmente pelo Estado, e também por
dinâmicas de classe. Os governos mudam; o pacto racial de poder não. Enquanto a
branquitude dirigente – inclusive à esquerda – não negar o suborno sistêmico
ofertado, a democracia brasileira seguirá administrando a morte como política
pública. Se a vida negra importa – como afirmam nossas instituições – é hora de
materializar essa prioridade em políticas, práticas e decisões.
Daí
emerge a minha proposta para um direito do trabalho que está crise: seguirmos
no contrafluxo da ordem ocidental individualista e que chega ao ponto de não
tratar os direitos trabalhistas como o que são: essencialmente coletivos e,
neste sentido, o que atinge a uma pessoa trabalhadora, atinge a todas.
Falar
dos efeitos da discriminação racial no trabalho sem nomear o pacto racial que
estrutura o Estado brasileiro – e as formas contemporâneas de produção da morte
e da precarização que dele derivam – seria tratar o sintoma sem enfrentar a
doença. Quando afirmo genocídio, trabalho e reconstrução democrática, não estou
deslocando o tema da mesa: estou apenas explicitando que a discriminação racial
no mundo do trabalho não é um desvio, mas parte de um projeto histórico que
organiza hierarquias de vida e de morte. Enfrentar essa realidade é a única
forma séria de pensar qualquer estratégia jurídica de combate ao racismo.
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Refundação do direito do trabalho a partir da perspectiva negra
Tudo
apresentado nos aponta que estamos em um momento crítico, é verdade, mas também
único e propício para pensarmos em deixar de resistir somente, mas apontar a
necessidade de refundar o Direito do Trabalho. E o que isso importa debater
numa mesa que trata dos “Efeitos da discriminação racial no trabalho e as
formas de enfrentamento”. Não há como tratar efetivamente sobre esta questão
sem encarar que o racismo faz com que o direito do trabalho venha sendo
manejado como tecnologia de exclusão do povo negro, a fim de garantir o lucro
do capitalista no capitalismo dependente brasileiro.
Então
ao invés de efeito, estamos aqui apontando uma causa que, caso não tratada, não
teremos efeitos duradouros como o necessário para uma sociedade em que a
justiça social possa efetivamente se realizar.
Se a
mesa nos convoca a discutir os efeitos da discriminação racial no trabalho e as
formas de enfrentamento, é preciso reconhecer que o próprio direito do
trabalho, historicamente, foi mobilizado para tal. Por isso, o enfrentamento
real não pode se limitar à gestão dos sintomas: o que proponho é reparação
coletiva a partir do reconhecimento do uso deturpado do direito do trabalho
como ferramenta que vêm servindo à manutenção da exclusão socioeconômica das
pessoas trabalhadoras negras, com sua a arquitetura normativa, a precarização
generalizada e a blindagem processual que contribuí para manter o pacto racial
brasileiro.
É
somente quando nomeamos essa distorção estrutural do direito do trabalho que
podemos, enfim, propor um horizonte de transformação e reconstrução democrática
que responda àquilo que esta mesa se propõe a debater para pensarmos em um
direito das pessoas trabalhadoras.
A
abolição não se completa no passado: ela se decide agora, no que fazemos – ou
deixamos de fazer – diante da desigualdade racial no trabalho. Exu matou um
pássaro ontem com a pedra que atirou hoje: é isso. O tempo da reparação é já.
Fonte:
Helena Pontes dos Santos, em A Terra é Redonda

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