A
atuação de Cuba em Angola mudou o curso da história africana
O fim
do domínio colonial português em Angola, há cinquenta anos, marcou também o
início de uma missão militar cubana com grande impacto na história do país,
repelindo uma invasão sul-africana e impedindo que Pretória levasse seus
aliados locais ao poder. A missão deixou ainda sua marca em toda a região:
Nelson Mandela atribuiu à vitória cubana sobre o exército sul-africano em 1988
o mérito de ter acelerado o fim do apartheid.
Quando
as forças armadas cubanas se envolveram abertamente em Angola, em novembro de
1975, houve uma suposição generalizada de que Cuba era um “Estado satélite”
soviético. Aqueles que conheciam bem Cuba argumentavam que não era tão simples.
Questionavam se o país poderia realmente ser descrito como um Estado cliente e
se Moscou tinha realmente interesse em se envolver (indiretamente) nos
conflitos internos da África Austral.
Com o
tempo, pesquisas posteriores desviaram a atenção de uma interpretação que devia
muito à perspectiva hegemônica da Guerra Fria. Lentamente, tornou-se claro que
o envolvimento de Cuba ocorreu a pedido do novo governo do Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA), ao qual Portugal havia entregado o controle do
país às pressas.
O MPLA
estava agora ameaçado por forças rivais que contavam com o apoio da África do
Sul e dos Estados Unidos. O MPLA solicitou ajuda de Havana com base em seus
próprios laços estreitos com Cuba e no histórico de apoio cubano à luta
anticolonial.
<><>
Solidariedade internacional
Apartir
de 1961, Cuba seguiu uma estratégia de apoio ativo às revoluções armadas e às
lutas anticoloniais na América Latina, África e Ásia. A seminal Conferência
Tricontinental de Havana, em 1966, expressou essa linha de solidariedade
ideológica com os radicais do Terceiro Mundo.
“Nelson
Mandela atribuiu à vitória cubana sobre o exército sul-africano em 1988 o
mérito de ter acelerado o fim do apartheid.”
Essa
política também incluía o apoio aos Estados pós-coloniais contra ameaças
externas, por exemplo, através de ajuda militar para defender a Síria contra
Israel em 1973. O pedido do MPLA em 1975 foi, portanto, um passo natural, assim
como a resposta positiva de Cuba. A partir de agosto, já havia um pequeno
contingente cubano em Luanda, prestando consultoria sobre a defesa da cidade.
A
rápida resposta de Cuba ao pedido de ajuda pegou Moscou de surpresa, e os
líderes soviéticos foram constrangidos a oferecer apoio logístico, apesar de
suas reservas, que ecoavam sua oposição anterior à estratégia insurrecional de
Cuba. Longe de obedecer aos ditames de seu aliado soviético, Havana estava, na
verdade, influenciando as interpretações soviéticas dos acontecimentos no Sul
Global, um padrão que se repetiu posteriormente com a Nicarágua e Granada.
Havia
outro contexto, mais interno, para o envolvimento de Cuba em Angola, enraizado
na cultura política do país. A solidariedade com as forças anti-imperialistas
no exterior era, em parte, uma manifestação externa de padrões bem
estabelecidos internamente, como demonstrado em muitas das mobilizações e
campanhas participativas bem-sucedidas desde 1959.
Tudo
isso acontecia em um Terceiro Mundo que passava por transformações dramáticas.
Novos governos pós-coloniais estavam surgindo, e muitos deles buscavam
aconselhamento ou assistência cubana com base em laços antigos. Na América
Latina, o padrão de regimes militares pró-EUA durante as décadas de 1960 e
início de 1970 começara a mudar, com governos mais nacionalistas em muitos
países dispostos a reconhecer Cuba e a comercializar com o país.
Isso
coloca em questão a visão tradicional de que Cuba cessou seu apoio ativo à luta
armada nas Américas após 1970 devido à sua dependência econômica da URSS. Na
verdade, com o afrouxamento do cerco estadunidense e continental à ilha, Cuba
agora podia buscar aliados por meio da diplomacia, em vez de apoiar movimentos
guerrilheiros.
A
estratégia insurrecional regional de Cuba não se baseava apenas em uma
interpretação radical heterodoxa do marxismo e em um compromisso ideológico com
o anti-imperialismo. Refletia também a realidade de que Cuba tinha pouco a
perder ao responder dessa forma ao cerco e ao isolamento, tendo como pano de
fundo um compromisso secreto dos EUA, após a Crise dos Mísseis de Cuba em 1962,
de não invadir a ilha. Agora que o isolamento estava diminuindo, Havana podia
explorar novas formas de promover a solidariedade com o Terceiro Mundo.
Uma vez
que o MPLA e seus aliados cubanos neutralizaram a ameaça militar imediata a
Angola, a ajuda cubana estendeu-se a áreas civis para a construção de
infraestrutura pós-colonial. Centenas de técnicos, pessoal médico, professores,
agrônomos e até mesmo agentes culturais se voluntariaram por períodos
prolongados. A prática cubana de internacionalismo se expressaria, a partir de
então, principalmente em campos não militares, estendendo-se a mais de quarenta
países.
<><>
Ponto de virada
Oque
tudo isso significou para a própria Cuba? Olhando para trás, fica claro que o
envolvimento do país em Angola representou um ponto de virada em vários
aspectos.
O
voluntariado desempenhou um papel importante desde o início. A liderança em
Havana deixou claro que toda a iniciativa seria baseada nesse princípio e
convocou os soldados cubanos a participar.
A
dimensão da resposta foi notável. De fato, muitos estrangeiros acharam
inacreditável, supondo que a disposição para servir fosse resultado de coerção
ou da promessa de benefícios materiais. No entanto, quando acadêmicos de fora
de Cuba pesquisaram o fenômeno, tenderam a concordar que o voluntariado era
genuíno, pelo menos nos estágios iniciais.
Para
entender isso, precisamos analisar o contexto da participação popular em Cuba
desde 1959. Em 1975, a solidariedade prática e ideológica já havia sido
mobilizada por meio do envolvimento em massa em diversas organizações —
principalmente nos Comitês de Defesa da Revolução (CDRs) de bairro — e em uma
série de campanhas para alcançar objetivos definidos, desde a promoção da
alfabetização e da saúde até a defesa de Cuba contra a ameaça de invasão.
“Muitos
cubanos viam o trabalho no exterior como uma forma de romper com o hábito
imposto de se isolarem sob o cerco dos EUA, oferecendo-lhes novas
experiências.”
Por
meio dessas experiências coletivas constantes, as noções de solidariedade e
voluntariado tornaram-se partes integrantes do tecido social e da cultura
política cubana. De fato, grande parte do projeto de construção nacional das
décadas de 1960 e início de 1970 foi alcançada por meio desses mecanismos.
Havia
também outros atrativos. Por exemplo, muitas pessoas viam o trabalho no
exterior como uma forma de romper com o isolamento imposto pelo cerco dos EUA,
oferecendo-lhes novas experiências. Isso também poderia lhes dar acesso a bens
escassos e moeda forte. Além disso, havia um certo grau de pressão dos colegas
no ambiente de trabalho, como no caso de voluntários que persuadiam outros a
fazer o mesmo.
Com o
tempo, porém, a estratégia de enviar pessoas para o exterior para prestar
assistência tornou-se um elemento natural e proeminente da política externa de
Cuba e da vida dos cubanos comuns. Muitas pessoas trabalhavam no exterior ou
tinham um amigo ou familiar que o fazia.
<><>
Cuba e a África
Quanto
ao esforço militar propriamente dito em Angola, uma das primeiras reações
públicas foi de grande orgulho nacional. Cuba passou a ser vista como aliada de
um Estado pós-colonial, contra os impopulares Estados Unidos e o regime pária
do apartheid na África do Sul. Isso aumentou a autoconfiança coletiva em
relação ao potencial de Cuba para desempenhar um papel global claramente
honroso, mas que antes parecia impossível.
A
campanha angolana também teve um efeito imprevisto, mas significativo. Ela
trouxe um novo foco, tanto popular quanto oficial, para a composição étnica de
Cuba. A partir de novembro de 1975, a liderança cubana passou a se referir ao
projeto como “o retorno dos escravos”, relembrando o grande número de africanos
que os colonialistas espanhóis haviam trazido à força de Angola para
impulsionar a produção de açúcar. O nome oficial da campanha foi Operação
Carlota, em homenagem a uma famosa rebelde escravizada angolana da época.
Angola,
portanto, lembrou aos cubanos o impacto cultural da África em sua sociedade e
sua contribuição vital para os padrões econômicos do país, bem como seu
radicalismo político (presente nas três rebeliões de independência do século
XIX). Isso remodelou o processo de definição de uma identidade cubana como base
da revolução e forma de encontrar um lugar no mundo.
“Angola
lembrou aos cubanos o impacto cultural da África em sua sociedade e sua
contribuição vital para os padrões econômicos do país, bem como para seu
radicalismo político.”
Isso
era necessário porque os cubanos haviam passado por uma experiência bastante
típica, na qual o colonialismo e o neocolonialismo moldaram sua identidade,
levando-os a aceitar sua própria inferioridade e a superioridade de seus
colonizadores, e a olhar para o norte em busca de aspirações coletivas por uma
futura “Cuba Libre”. Esse padrão continuou durante o período da
questionável independência de Cuba, entre 1902 e 1958, reforçado pela
significativa imigração espanhola até a década de 1930.
Após
1959, novas políticas e a hostilidade dos EUA em relação à Revolução Cubana
forçaram o desenvolvimento de uma nova afinidade radical com a América Latina.
Isso se expressou por meio do apoio ativo à rebelião armada na região, mas
também pelo protagonismo cultural continental seminal da Casa de las Américas.
No início da década de 1970, no entanto, a adesão de Cuba ao Comecon, a rede
comercial do bloco liderado pelos soviéticos, pôs fim à austeridade da década
anterior. As melhorias materiais geraram uma tendência entre os cubanos de se
verem como potencialmente parte do “Segundo Mundo”.
O
envolvimento cubano em Angola, juntamente com novas formas de colaboração com
um Caribe anglófono em processo de radicalização e uma visível guinada à
esquerda na América Central, serviu como um poderoso lembrete de que a África
sempre deu uma contribuição substancial para a formação da identidade nacional
de Cuba. Essa contribuição, porém, foi por muito tempo questionada e
contestada, apesar das reformas sociais e das declarações oficiais após a
vitória rebelde.
De
repente, a cor deixou de ser um tabu (em uma sociedade supostamente daltônica)
e passou a representar um elemento fundamental da identidade cubana, da qual os
cubanos podiam se orgulhar. A nova onda de austeridade que atingiu Cuba após o
colapso da União Soviética e a consequente perda de esperança minaram, em certa
medida, essa consciência racial. Mesmo assim, essa consciência agora tinha
raízes mais profundas do que antes e continuava sendo uma parte essencial da
identidade cubana.
<><>
Legados
Diante
disso tudo, como os cubanos continuaram a perceber o papel de seu país em
Angola? A década de 1980 viu um ligeiro declínio no entusiasmo inicial, com um
número estimado de mortes em torno de seis mil, de um total de mais de duzentos
mil que serviram no país. Também houve uma tendência, em alguns setores, de
enxergar a pressão dos pares como uma forma de pressão estatal, com o
voluntariado sendo visto como um meio de indivíduos furarem a fila para moradia
ou outros benefícios.
“Em
1988, uma força de mais de cinquenta mil soldados cubanos infligiu uma grande
derrota que erodiu o moral do exército sul-africano em Cuito Cuanavale, onde
ocorreu uma batalha campal.”
Após
uma epidemia de dengue em 1980, espalhou-se o rumor de que ela teria se
originado no voluntariado internacionalista. No ano seguinte, o êxodo em massa
de mais de 120.000 cubanos pelo porto de Mariel, que chocou o povo cubano e
seus líderes, tornou as queixas sobre Angola mais frequentes.
No
entanto, o entusiasmo e o orgulho retornaram após os eventos de março de 1988,
uma força de mais de cinquenta mil soldados cubanos infligiu uma grande derrota
que erodiu o moral do exército sul-africano em Cuito Cuanavale, onde ocorreu
uma batalha campal.
O
orgulho cresceu à medida que os efeitos da vitória cubana se tornaram claros:
as tropas sul-africanas se retiraram de Angola e da Namíbia pouco depois, e o
regime do apartheid começou a ruir com a libertação de Mandela em 1990, seguida
por sua eleição como presidente do país. Esse sentimento de orgulho sobreviveu
(e pode ter ajudado a confortar as pessoas) até mesmo durante a crise do início
da década de 1990.
Contudo,
a mesma crise também pôs fim à capacidade de Cuba de continuar com sua política
de internacionalismo na mesma escala de antes. O fornecimento de ajuda passou a
se limitar, em geral, à assistência após desastres naturais ou, como no caso da
Palestina, à educação e formação gratuitas para estudantes do Sul Global.
A
paciência dos cubanos foi frequentemente testada durante os anos de crise, pois
alguns contrastavam suas lutas diárias para sobreviver com suprimentos
limitados e racionamento com o que consideravam a generosidade de Cuba no
exterior. No geral, porém, o compromisso com a ideia de solidariedade
internacional pareceu persistir entre muitos cubanos, sugerindo (mesmo nas
circunstâncias mais extremas) que a crença popular na solidariedade ainda
exercia alguma influência.
“A Cuba
pós-1975 era diferente, e provavelmente ainda estamos descobrindo a extensão e
a natureza dessas diferenças.”
Também
pode ter contribuído o fato de o histórico de Cuba em fornecer ajuda a outros
países, mesmo durante crises, ter despertado significativa simpatia global pelo
país. Isso ficou evidente todos os anos, a partir de 1992, nas esmagadoras
votações da Assembleia Geral das Nações Unidas contra o embargo dos EUA
(ritualmente contestado apenas pelos Estados Unidos e Israel), reforçando a
sensação de que Cuba não estava sozinha. Com Donald Trump tendo endurecido
ainda mais o embargo, essa simpatia pode parecer uma pequena bênção, mas foi (e
talvez ainda seja) uma bênção.
A
experiência angolana, portanto, afetou Cuba de diversas maneiras, em sua
maioria para melhor. Reforçou muitas das crenças e compromissos do país,
angariou muitos aliados e inspirou sentimentos de orgulho (bem como queixas e
ressentimentos). A Cuba pós-1975 era diferente, e provavelmente ainda estamos
descobrindo a extensão e a natureza dessas diferenças.
Fonte:
Por Antoni Kapcia - Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário