Como
funciona a IA que cria 'reencontros' virtuais com pessoas que já morreram
Um
aplicativo que usa inteligência artificial para criar avatares de pessoas já
falecidas tem gerado polêmica na internet. Chamado de 2Wai, o app permite
recriar alguém virtualmente para interações ao vivo. Por enquanto, está
disponível apenas nos Estados Unidos.
Antes,
é preciso gravar um vídeo da pessoa diretamente no app, que servirá para criar
o avatar digital. O processo dura cerca de três minutos (entenda mais abaixo).
Um
vídeo que demonstra a tecnologia viralizou no X. Nele, uma mulher grávida
aparece conversando com a própria mãe, que já morreu. A história avança e
mostra a avó contando uma história para o bebê e, em seguida, a criança já
crescida usando o app para interagir com ela.
O vídeo
da 2Wai, de quase dois minutos, foi publicado pelo cofundador da startup, Calum
Worthy, e já ultrapassou 40 milhões de visualizações. Worthy, para quem não
sabe, também é ator e ficou conhecido pela série "Austin & Ally",
do Disney Channel, em que interpretou "Dez".
O post
logo recebeu uma enxurrada de comentários, a maioria críticos. "Essa é uma
das coisas mais vis que já vi", escreveu uma pessoa.
"Mais
uma forma de as pessoas perderem completamente o contato com a realidade e
evitarem o processo normal do luto", afirmou outra.
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Como funciona o 2Wai?
O 2Wai
é um aplicativo para criar "HoloAvatars", como a empresa chama os
avatares, que não se limitam a pessoas já falecidas. A startup afirma que é
possível gerar um "HoloAvatar" de "personagens", como um
personal trainer, escritor, agente de viagem ou até astrólogo.
Quando
é de alguém que já faleceu, ele só pode ser criado se houver um vídeo gravado
antes da morte — com a pessoa falando e se movimentando. A partir dessas
imagens, a IA amplia o repertório do "gêmeo digital", que, segundo o
2Wai, consegue falar como a pessoa real, reconhecer o usuário e lembrar
informações passadas.
A
empresa afirma que o app suporta mais de 40 idiomas, mas não diz se o português
do Brasil está disponível. Por enquanto, o 2Wai está funcionando apenas para
iPhone (iOS) nos EUA, mas chegará "em breve" a modelos Android.
O
serviço é totalmente gratuito atualmente, mas eles dizem que "assinaturas
e compras dentro do app podem ser incluídas no futuro".
Especialista
ouvida pelo g1 alerta para o risco de dependência e para a "ilusão de
realidade" ao usar IAs, especialmente durante o processo de luto.
"A
mesma tecnologia que oferece companhia pode gerar confusão entre o real e o
simulado, criar dependência afetiva e, em alguns casos, amplificar a
angústia", analisa Mariana Malvezzi, psicóloga e psicanalista da faculdade
ESPM.
🔎 Grief tech: a técnica de replicar
alguém que já morreu de forma digital com IA é conhecida como grief tech
("tecnologia do luto", em português). Plataformas desse tipo criam o
que chamam de "clones digitais" ou "gêmeos digitais" que
permitem conversar e interagir com versões virtuais de pessoas que já morreram.
"Essa
ilusão da IA pode minar a autonomia emocional, afastar o enlutado de rituais do
luto e dificultar o movimento de simbolização, que é reconhecer a morte e, aos
poucos, ressignificá-la", completa a especialista.
Um em
cada quatro brasileiros se imagina usando inteligência artificial para
conversar com familiares já falecidos, aponta uma pesquisa da ESPM realizada
neste mês para ao Dia de Finados. O levantamento ouviu 267 participantes que
perderam entes queridos nos últimos dois anos.
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Tecnologia do tipo se espalha
O uso
de IA para "reviver" pessoas falecidas tem se tornado cada vez mais
comum. Em maio, o g1 mostrou o caso de uma versão de inteligência artificial de
uma vítima de homicídio que "marcou presença" em um julgamento no
Arizona, nos EUA.
A
versão da vítima criada por IA disse ao atirador que lamentava que eles
tivessem se encontrado no dia do crime, naquelas circunstâncias, e afirmou que,
em outra vida, os dois poderiam ter sido amigos, segundo a agência Associated
Press.
Em
outro caso polêmico, o jornalista Jim Acosta, ex-âncora da CNN norte-americana,
"entrevistou" um avatar criado por IA de Joaquin Oliver, jovem de 17
anos morto no massacre em uma escola de Parkland, na Flórida, em 2018.
O
vídeo, publicado no YouTube, mostra Acosta ao lado da versão digital de
Joaquin, recriada pelos pais a partir de uma foto antiga, com voz e movimentos
gerados por IA.
• 'Deathbots': testamos os robôs de IA que
permitem 'conversar com os mortos'
A
inteligência artificial (IA) está sendo cada vez mais usada para preservar as
vozes e as histórias dos mortos.
De
chatbots baseados em texto que imitam entes queridos a avatares de voz que
permitem que você “converse” com os falecidos, uma crescente indústria digital
do além promete tornar a memória interativa e, em alguns casos, eterna.
Em
nossa pesquisa, publicada recentemente na revista científica Memory, Mind &
Media, exploramos o que acontece quando a lembrança dos mortos é deixada a
cargo de um algoritmo. Nós até tentamos conversar com versões digitais de nós
mesmas para descobrir.
Os
“deathbots” são sistemas de IA projetados para simular as vozes, os padrões de
fala e as personalidades dos falecidos.
Eles se
baseiam nos traços digitais de uma pessoa — gravações de voz, mensagens de
texto, e-mails e postagens nas redes sociais — para criar avatares interativos
que parecem “falar” do além-túmulo.
Como
disse a teórica da mídia Simone Natale, essas “tecnologias da ilusão” têm
raízes profundas nas tradições espiritualistas. Mas a IA as torna muito mais
convincentes e comercialmente viáveis.
Nosso
trabalho faz parte de um projeto chamado Synthetic Pasts, que explora o impacto
da tecnologia na preservação da memória pessoal e coletiva.
Para
nosso estudo, analisamos serviços que afirmam preservar ou recriar a voz, as
memórias ou a presença digital de uma pessoa usando IA.
Para
entender como eles funcionam, nos tornamos nossas próprias cobaias. Carregamos
nossos próprios vídeos, mensagens e notas de voz, criando “duplos digitais” de
nós mesmas.
Em
alguns casos, desempenhamos o papel de usuários preparando nossas próprias
vidas pós-morte sintéticas. Em outros, atuamos como enlutados tentando
conversar com uma versão digital de alguém que faleceu.
O que
descobrimos foi fascinante e inquietante.
Alguns
sistemas se concentram em preservar a memória. Eles ajudam os usuários a gravar
e armazenar histórias pessoais, organizadas por tema, como infância, família ou
conselhos para entes queridos. A IA então indexa o conteúdo e orienta as
pessoas por ele, como um arquivo pesquisável.
Outros
usam IA generativa para criar conversas contínuas. Você carrega dados sobre uma
pessoa falecida — mensagens, postagens, até mesmo amostras de voz — e o sistema
cria um chatbot que pode responder no tom e estilo dela. Ele usa um subconjunto
da IA chamado aprendizado de máquina (que melhora com a prática) para fazer
seus avatares evoluírem ao longo do tempo.
Alguns
se apresentam como divertidos (“faça uma sessão espírita com IA”), mas a
experiência pode parecer assustadoramente íntima.
Todas
as plataformas afirmam oferecer uma conexão emocional “autêntica”. No entanto,
quanto mais personalização tentávamos, mais artificial parecia.
Quando
solicitados por esses sistemas, fornecemos mais informações sobre nós mesmas,
apenas para que o bot repetisse exatamente as frases que usamos em respostas
rígidas e programadas.
Às
vezes, o tom era incongruente, como quando emojis alegres ou frases otimistas
apareciam mesmo ao discutir a morte — um lembrete claro de que os algoritmos
são ruins em lidar com o peso emocional da perda:
>>>
Oh, querida… 😔 Isso (a morte) não é algo que eu
gostaria que alguém ficasse remoendo. Para ser sincera, tudo está um pouco
confuso agora. 🌫️ Vamos conversar sobre algo um pouco
mais alegre, ok?
As
ferramentas mais baseadas em arquivos que testamos proporcionaram uma
experiência mais tranquila, mas também impuseram categorias rígidas e nuances
limitadas.
Como
observou o estudioso de mídia digital Andrew Hoskins, a memória na era da IA se
torna “conversacional” — moldada pelas interações entre humanos e máquinas.
Mas, em
nossos experimentos, essas conversas muitas vezes pareciam monótonas, expondo
os limites da intimidade sintética:
>>>
Humano: Você sempre foi tão encorajador e solidário. Sinto sua falta.
Deathbot:
Estou aqui para você, sempre pronto para oferecer incentivo e apoio sempre que
precisar. E sinto sua falta também… Vamos enfrentar o dia de hoje juntos, com
positividade e força.
Por
trás dessas experiências existe um modelo de negócios. Não se trata de
instituições funerárias de caridade, mas de startups de tecnologia.
Taxas
de assinatura, níveis “freemium” e parcerias com seguradoras ou prestadores de
serviços de saúde revelam como a lembrança está sendo transformada em um
produto.
Como os
filósofos Carl Öhman e Luciano Floridi argumentaram, a indústria digital do
além-vida opera dentro de uma “economia política da morte”, onde os dados
continuam a gerar valor muito tempo depois do fim da vida de uma pessoa.
As
plataformas incentivam os usuários a “capturar sua história para sempre”, mas
também coletam dados emocionais e biométricos para manter o engajamento alto.
A
memória se torna um serviço — uma interação a ser projetada, medida e
monetizada. Isso, como o professor de tecnologia e sociedade Andrew McStay
mostrou, faz parte de uma economia mais ampla de “IA emocional”.
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Ressurreição digital?
A
promessa desses sistemas é uma espécie de ressurreição — a reanimação dos
mortos por meio de dados. Eles oferecem o retorno de vozes, gestos e
personalidades, não como memórias relembradas, mas como presenças simuladas em
tempo real.
Esse
tipo de “empatia algorítmica” pode ser persuasivo, até mesmo comovente, mas
existe dentro dos limites do código e altera silenciosamente a experiência de
lembrar, suavizando a ambiguidade e a contradição.
Essas
plataformas demonstram uma tensão entre as formas arquivísticas e generativas
da memória.
Todas
as plataformas, porém, normalizam certas formas de lembrança, privilegiando a
continuidade, a coerência e a capacidade de resposta emocional, ao mesmo tempo
em que produzem novas formas de personalidade baseadas em dados.
Como
observou a teórica da mídia Wendy Chun, as tecnologias digitais muitas vezes
confundem “armazenamento” com “memória”, prometendo uma lembrança perfeita
enquanto apagam o papel do esquecimento — a ausência que torna possível tanto o
luto quanto a lembrança.
Nesse
sentido, a ressurreição digital corre o risco de interpretar erroneamente a
própria morte: substituir a finalidade da perda pela disponibilidade infinita
da simulação, onde os mortos estão sempre presentes, interativos e atualizados.
A IA
pode ajudar a preservar histórias e vozes, mas não pode replicar a complexidade
viva de uma pessoa ou de um relacionamento. As “vidas pós-morte sintéticas” que
encontramos são atraentes precisamente porque falham. Elas nos lembram que a
memória é relacional, contextual e não programável.
Nosso
estudo sugere que, embora você possa conversar com os mortos usando IA, o que
você ouve em resposta revela mais sobre as tecnologias e plataformas que lucram
com a memória — e sobre nós mesmos — do que sobre os fantasmas com os quais
eles afirmam que podemos conversar.
Jenny Kidd recebeu financiamento do Leverhulme Trust e
do Arts and Humanities Research Council.
Eva
Nieto McAvoy não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe
financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com
a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu
cargo acadêmico.
Fonte:
g1

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