Contradição
em movimento
A ideia
de“contradição em movimento” está no princípio da dialética marxista quando o
temido filósofo do século XIX formulou que os conflitos e tensões inerentes a
um sistema (como o embate entre capital e trabalho no capitalismo) são a
verdadeira força impulsionadora da história. Em vez de paralisar, esses
antagonismos geram mudança contínua, levando à evolução das estruturas sociais
e ao surgimento de novas formas. É a ideia de que a história avança através de
seus próprios opostos interligados.
Absorvi
esse conceito há mais anos do que desejaria lembrar, e o considero uma
ferramenta poderosa para o melhor entendimento das coisas terríveis que os
seres ditos racionais realizam neste sofrido planeta.
De
certa forma, e em pequena medida, há também um certo conforto para as nossas
cada vez mais frequentes ansiedades provocadas pelos absurdos que a política,
transformada com muita constância em barbárie, tem nos proporcionado nessa
primeira quadra do século XXI. Os embates de antagonismos ao final não são
paralisantes, mas movimentam, criam, fazem o mundo se transformar. E enquanto
estivermos em movimento, penso eu, há sempre a possibilidade da superação.
Esse
antigo conceito me veio à mente ao receber um recorte de jornal enviado pela
Embaixadora do Brasil em Ruanda, África, Irene Vida Gala. Amigos há muitos
anos, desde que ela abriu as portas do Itamaraty em 2003 para as editoras
universitárias brasileiras fazerem uma memorável feira do livro universitário
em Maputo, Moçambique, sempre trocamos informações e conversamos sobre temas de
interesse mútuo, como os livros, seus autores e as leituras.
A
última mensagem virtual que me enviou de Kigali carregava um recorte do jornal
ruandês The New Times do dia 7 de outubro. A matéria jornalística trata do
recém encerrado Festival Internacional Livros e Artes e ressalta que “o evento
foi projetado especificamente para celebrar e elevar a literatura e as
publicações como principais impulsionadores do desenvolvimento nacional de
Ruanda”.
Reafirmando
essa conclusão, segue-se o depoimento do Secretário Permanente do Ministério da
Juventude e Artes, Olivier Ngabo, que afirma que “o evento é mais do que uma
celebração da cultura, mas também um reconhecimento do papel central que
livros, publicações e contações de histórias desempenham na construção do
conhecimento, na preservação do patrimônio e na criação de oportunidades para
gerações futuras.” Termina afirmando que “os livros continuam sendo a pedra
angular da expressão cultural. Eles registram nosso passado, iluminam nosso
presente e despertam visões para o futuro.”
Nessa
conjuntura que vivemos, onde os genocídios são transmitidos via satélite, como
a barbárie impetrada em Gaza, me soou muito forte a informação de que em Ruanda
o livro e a leitura estejam sendo considerados impulsionadores do
desenvolvimento e acolhidos como instrumentos de transformação.
Afinal,
há 31 anos e sob o olhar covarde da comunidade internacional, Ruanda foi
protagonista de uma guerra civil genocida que ceifou a vida de cerca de 1
milhão de pessoas em 60 dias de matança. Nada mais distante, ou contraditório,
do que se mostrou neste evento de setembro último que festejou livros e artes.
Tudo
leva a crer que o movimento da história nesses 31 anos seguiu contando com
coragem essa tragédia que para mim chegou pelos jornais quando ocorria e
depois, com força literária ímpar e inesquecível, na escrita da ruandesa
Scholastique Mukasonga em seu magistral A mulher de pés descalços (Editora
Nós).
A
personagem central de Scholastique Mukasonga é sua mãe, uma das vítimas
trucidadas pelo genocídio. Sempre pedira às filhas de que quando morresse
queria que seu corpo fosse coberto. Sem ter quem a cobrisse após o massacre, a
mulher de pés descalços foi postumamente coberta pela força das palavras de sua
filha escritora: “Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho
apenas palavras – palavras de uma língua que você não entendia – para realizar
aquilo que você me pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com
minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha de seu
corpo ausente.” Dor crua em palavras que nos tocam fundo e passam a fazer parte
da nossa sensibilidade resiliente.
O
depoimento de outra escritora ruandesa no Festival, Yolande Mukagasana, que
também escreve sobre o genocídio, transmitindo sua experiência pessoal, vai ao
encontro do que parece ser uma comunidade que, ao se recusar a esquecer, se
fortalece. Yolande Mukagasana afirma ao jornal a necessidade de se estabelecer
a verdade que não pode ser apagada: “Meu propósito fundamental é educar a
geração mais jovem sobre essa história, garantindo a transferência deste
conhecimento para todas as gerações futuras”.
Transmitir,
educar, difundir as histórias das iniquidades, das violências, dos esmagamentos
de corpos e almas acompanham muitas gerações de escritores, ensaístas,
professores, chegando aos pais e irmãos que, como Scholastique Mukasonga, não
conseguiram cobrir o corpo dos seus entes queridos devorados pelo ódio das
ditaduras, dos genocídios e dos arbítrios autocráticos que parecem nunca ter
fim.
E
fazemos tudo isso por intermédio das palavras, das oralidades, dos teatros da
vida, das literaturas, das escritas que escapam das censuras dos que odeiam a
verdade e a história.
Para
muitos de minha geração é impossível escrever sobre isso e não voltar a buscar
na estante um livro que também está impregnado em mim. Me refiro a Retrato
Calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes (Cosac Naify), de quem fui aluno nos
barracos da FFLCH-USP nos anos 1970. Morto por um infarto aos 50 anos, Luiz
Roberto Salinas foi preso e torturado pelos militares de 1964 e escreveu sobre
essa odiosa experiência nesse livro em que prenuncia que o mal que lhe
infligiram seria provavelmente a causa de sua morte.
E, como
assinala Marilena Chauí no prefácio, e Antonio Candido no posfácio, ele se
sentiu no “dever de expor o aconteceu a tantos, transbordando a sua
singularidade para exprimir o destino de outros. O que sofreu, muitos sofreram,
e quem sabe sofrerão…”.
Nas
palavras de Luiz Roberto Salinas: “Daí a necessidade do registro rigoroso da
experiência, […] da sua transcrição literária. Contra a ficção do Gênio Maligno
oficial se impõe o minucioso relato histórico e é da boa mira neste alvo que
depende o rigor do discurso”.
Os que
me acompanham nessas leituras compartilhadas sabem de minha defesa
intransigente pela formação de leitores e leitoras. Da leitura e da escrita
como direito humano às boas consequências de uma formação desde a primeira
infância para todos, já escrevi aqui várias argumentações e histórias. A elas,
acrescento também esse olhar de que o acesso à leitura e à literatura, em
políticas públicas inclusivas, é uma ferramenta de reparação histórica e de
empoderamento.
Ao ter
acesso à educação e à cultura, os indivíduos ou os grupos sociais podem narrar
suas próprias histórias e ter suas vozes ouvidas. A literatura, ao dar
visibilidade a essas experiências, contribui para desconstruir preconceitos e
promover uma sociedade mais equitativa.
Pensar
a leitura como política é, portanto, uma reflexão estratégica e prioritária. As
políticas de leitura não devem ser vistas como programas isolados, mas como um
pilar fundamental para enfrentar os desafios de uma sociedade em crise.
Em uma
era de conflitos sociais, desinformação e discursos de ódio, elas são um
antídoto poderoso porque capacitam o cidadão a exercer sua cidadania de forma
plena, a se engajar no debate público de forma qualificada e a lutar pela
inclusão e pelo respeito à diversidade.
A
leitura e a escrita são ferramentas de resistência e de esperança, como está
ocorrendo em Ruanda, em nosso país e pelo mundo afora, nos escritos e obras
artísticas nas suas diversas modalidades. Para cada tentativa de esquecimento
sempre haverá a palavra contraditória em movimento dos Salinas, das
Scholastiques, das Yolandes, das Chauis e dos Candidos. Que assim seja!
Fonte:
Por José Castilho Marques Neto, em A Terra é Redonda

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