sexta-feira, 28 de novembro de 2025

FHC – um intelectual comunista nos anos 1950

Não é segredo que Fernando Henrique Cardoso teve um vínculo com o Partido Comunista do Brasil (PCB) no começo da década de 1950. Ele mencionou o fato brevemente em diversos depoimentos, mas só se deteve no tema na entrevista publicada recentemente pela revista Tempo Social, que está disponível on-line.

A entrevista, concedida em 2013, fez parte da minha pesquisa sobre a internacionalização e o financiamento a intelectuais durante a Guerra Fria nos anos 1950 e 1960, que resultou no livro O segredo das senhoras americanas.

O ex-presidente mencionou de passagem sua ligação com o PCB num trecho da matéria para a Folha de S.Paulo, por ocasião do falecimento do economista Paul Singer, amigo e ex-colega da Universidade de São Paulo (usp), do grupo do seminário d’O capital e posteriormente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Fernando Henrique Cardoso lembrou que Paul Singer havia sido membro do “Partido Socialista, e eu pertencera ao Partidão de 1949 a 1954” (Cardoso, 2018).

Essa datação às vezes varia, segundo o próprio Fernando Henrique. Por exemplo, ele já afirmou que “entre 1949 e 1955 tive um período de aproximação com o Partido Comunista. Nessa altura eu era muito amigo do Fernando Pedreira, casado com Renina Katz, na época ambos eram comunistas” (Cardoso, 2015).

Perguntado a respeito das datas na entrevista que me concedeu, ele disse que se lembra com precisão apenas de personagens e situações, e conta que sua aproximação com o Partido se deveu a amizades, sobretudo com Fernando Pedreira (Cardoso, 2013). Como ambos só se conheceram quando o jornalista se mudou para São Paulo em maio de 1951, é provável que o início da relação mais próxima com os comunistas tenha sido naquele ano ou no seguinte.

Além disso, o sociólogo observou que não fazia política como estudante de graduação, tendo ingressado no curso de Ciências Sociais da USP em 1949. Nesse ponto, sua memória confirma a de Fernando Pedreira, um pouco mais velho, que afirmou tê-lo conhecido quando o sociólogo estaria no último ano de faculdade, aproximando-se do Partido na época em que já era um jovem professor assistente (Pedreira, 2016, pp. 116-119).

O jornalista carioca contou que foi redator e secretário da revista mensal comunista Fundamentos, “um quadro na direção do aparelho intelectual ou cultural do Partidão na Pauliceia” (Pedreira, 2016, p. 246, 300). É provável que ele tenha sido responsável por fazer o nome de Fernando Henrique constar no extenso comitê de redação da revista entre 1952 e 1955, ao lado de intelectuais comunistas que marcaram época.

Talvez 1955 tenha sido o último ano de Fernando Henrique Cardoso ligado ao Partido, mas é difícil precisar, já que o envolvimento era fluído; parece que foi mais um companheiro de viagem do que militante propriamente dito, apesar do compromisso e de se ver retrospectivamente como membro do PCB. Nos termos dele, na entrevista que me concedeu, “todos éramos comunistas. Propriamente, do ponto de vista orgânico, a relação era mais frouxa”.

Não obstante, o sociólogo disse que chegou a dar carona para dirigentes comunistas participarem de reunião secreta no contexto de envolvimento com a Campanha da Paz e a Campanha do Petróleo, numa época em que o Partido estava proscrito e era perseguido: “Quem tem automóvel nessas horas tem acesso ao comando e é arriscadíssimo porque [ao dar carona] sabe para onde é que eles vão” (Cardoso, 2013; Ridenti, 2025, p. 7).

Como os procedimentos de segurança dos dirigentes comunistas eram rígidos, somente pessoas de estrita confiança eram convocadas para trabalhar como chofer. Ou seja, a ligação como o PCB era próxima o suficiente para ser escalado para uma tarefa que demandava plena confiabilidade.

Quando entrevistei Maurício Segall para a pesquisa que redundaria no livro Em busca do povo brasileiro (Ridenti, 2000), ele me falou sobre a célula de docentes comunistas na USP na primeira metade dos anos 1950, de que era o secretário. Disse que eu ficaria surpreso com o nome de certos integrantes, mas preferia silenciar para não os comprometer.

No entanto, no decorrer da entrevista, citou com desembaraço vários colegas comunistas de então, como o arquiteto Vilanova Artigas e o físico Mário Schenberg, entre outros. Na época fiquei intrigado sobre quem seria o nome misterioso que Maurício Segall preferia não citar. Lembrando dessa conversa, perguntei a Fernando Henrique Cardoso se ele pertenceu a esse núcleo.

Ele imediatamente disse que sim, recordando que “Maurício a uma certa altura era o chefão”. Mas, segundo Fernando Henrique, “a USP não era alcançada pelo Partido Comunista, era uma coisa marginal. Ao contrário, a USP era mais udeno-socialista” (Cardoso, 2013).

O fim do envolvimento com o PCB foi sacramentado pela repercussão negativa da invasão da Hungria pelas tropas soviéticas em 1956, como Fernando Henrique Cardoso reiterou no depoimento. As datas de sua aproximação e de afastamento do Partido são difíceis de precisar até mesmo para ele, pois se deram num processo, de modo relativamente suave.

Independentemente dos marcos exatos, o que importa é constatar a inserção do futuro presidente do Brasil num meio intelectual e artístico fortemente marcado pela presença comunista, com o qual Fernando Henrique Cardoso se identificava na São Paulo do começo da década de 1950.

O sociólogo escreveu apenas um artigo para Fundamentos, publicado em janeiro de 1952, quando ainda era aluno no final da graduação em Ciências Sociais. Nele, criticava o livro Retrato sincero do Brasil, de Limeira Tejo (1951), um jornalista a quem faltaria “apoio em métodos científicos de apreensão e interpretação da realidade”. Justamente os métodos que Cardoso aprendia com a escola liderada por Florestan Fernandes na USP.

Além disso, segundo o jovem acadêmico, a obra de Limeira Tejo ignoraria que “o Estado é apenas um aparelho de dominação e que numa sociedade estratificada em classes (como a nossa) esta instituição passa a ser dirigida pela classe dominante, isto é, numa sociedade capitalista são os próprios homens de negócios que exercem o poder (direta ou indiretamente)”.

Mesclada com a inspiração evidente desse raciocínio em Marx, que não é mencionado explicitamente, aparece ainda a influência de Max Weber, reiterada no trecho: “A formação de uma burocracia corresponde às necessidades de racionalização das ações humanas no campo da administração, necessidades estas que surgem juntamente com um tipo de dominação chamada pelos sociólogos de racional-legal, que se verifica numa certa fase de desenvolvimento das sociedades capitalistas” (Cardoso, 1952).

Nesse texto do jovem Fernando Henrique Cardoso, transparece implicitamente a concordância com a interpretação do Brasil de Caio Prado Jr., historiador comunista que tinha visão divergente das teses predominantes no Partido e de quem o sociólogo viria a se aproximar na revista Brasiliense,de propriedade do historiador, passando a integrar o conselho de redação a partir de janeiro de 1957.

A influência de Prado Jr. já se revelara quando o sociólogo em formação escrevia que “no século XIX havia uma economia de base capitalista atuando no Brasil, basta considerarmos a exploração de nossa agricultura tendo em mente a produção em grande escala, sua colocação no mercado internacional, e o financiamento em bases capitalistas desta produção” (Cardoso, 1952).

Esse raciocínio chocava-se com a interpretação dos comunistas sobre as supostas sobrevivências de relações feudais ou semifeudais no campo. Isso não foi empecilho para que o nome de Fernando Henrique Cardoso passasse a constar no conselho de redação da revista Fundamentos logo depois, em março de 1952.

Na entrevista que me concedeu em 2013, agora publicada, evidenciam-se aspectos das ligações embaralhadas dos comunistas com setores das elites brasileiras (Ridenti, 2025). A conversa ilumina não apenas as conexões intelectuais e artísticas, mas também as políticas, profissionais, acadêmicas, militares, tudo mesclado com relações pessoais, envolvendo amizades, parentesco, formação escolar e vizinhança, em ampla rede de sociabilidade.

Esses aspectos se destacam no depoimento, que oferece um breve e rico painel da vida nos círculos intelectuais e artísticos paulistanos no início dos anos 1950, especialmente os considerados de esquerda, a circular em ambientes como a USP, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), a Bienal, o Instituto dos Arquitetos, a redação de algumas revistas e jornais, as livrarias Francesa, Brasiliense, Parthenon e outras. Tudo localizado no centro histórico e nos bairros nobres da cidade de São Paulo.

A entrevista de Fernando Henrique Cardoso vai na mesma direção de declarações de outros intelectuais e artistas que pertenceram àquele ambiente paulistano no início dos anos 1950. Por exemplo, segundo o cineasta comunista Alex Viany, todo o pessoal jovem do cinema em São Paulo “ou era do Partido ou era próximo do Partido” (Viany, 1986).

No contexto de início da Guerra Fria, a vitória da revolução chinesa de 1949 reforçava a convicção de que o mundo caminhava na direção comunista, a corrente política principal que derrotara o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

A necessidade de escolher um lado impunha-se para muitos artistas e intelectuais. Os soviéticos conduziam um bloco que parecia indicar as vias para o futuro, apesar dos problemas, contradições e debilidades teóricas e políticas, os quais – esperava-se – seriam corrigidos ao construir o caminho do desenvolvimento.

A universidade brasileira era incipiente no começo dos anos 1950, com destaque sobretudo para a usp, onde as Ciências Sociais apenas começavam a se firmar e institucionalizar, tendo Fernando Henrique Cardoso como um dos principais articuladores. Ele fez parte de um ambiente cultural efervescente de jovens intelectuais e artistas que buscavam um lugar na sociedade brasileira em momento de modernização acelerada. Construía-se um campo intelectual, cujo devir era incerto para quem começava a vida profissional; várias possibilidades se abriam, algumas envolvendo convergência com os comunistas.

A aproximação de Fernando Henrique Cardoso com o Partido, a exemplo de outros intelectuais e artistas de sua geração, ligava-se ainda ao questionamento das desigualdades e do subdesenvolvimento, temas indissociáveis que marcariam o conjunto de sua obra, construída depois que se afastou do Partido, conforme comenta na entrevista.

Ele revisitou sua relação com os comunistas, depois com a revista Brasiliense, o seminário d’O capital, até sua contribuição para a teoria da dependência já nos anos 1960, que lhe deu projeção internacional. Reivindicou coerência em sua trajetória intelectual, a partir da preocupação sempre presente com a questão do desenvolvimento como possibilidade para diminuir as desigualdades, lançando mão da análise dialética, daquilo que denominou “método histórico-estrutural”, em grande parte inspirado em Marx.

Entretanto, afirmou rejeitar a “filosofia política, histórica do marxismo, uma dialética com uma finalidade definida, a superação pela revolução”, bem como refutou o chamado marxismo vulgar (Cardoso, 2013).

Fernando Henrique Cardoso falou também da ligação pessoal com vários personagens, caso do mentor Florestan Fernandes – que na época não via com bons olhos a militância partidária –, do citado Fernando Pedreira e outros amigos comunistas, como os admirados Caio Prado Jr. e Elias Chaves Neto, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, os pintores Luiz Ventura, Mário Gruber e Otávio Araújo, e muitos mais, a exemplo de seus vizinhos, Mário Schenberg e Vilanova Artigas.

Contou sobre o pai Leônidas Cardoso, militar nacionalista e amigo de Luiz Carlos Prestes, referiu-se ao parentesco com o comunista histórico Octávio Brandão, primo de sua mãe, Nayde Silva Cardoso. Mencionou ainda uma infinidade de outros artistas e intelectuais do círculo comunista – e fora dele, caso dos socialistas Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes, além de personagens que não eram propriamente de esquerda, como Roberto Gusmão, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (une), de 1947 a 1948. Foram pessoas com quem teve contato ou amizade, numa reconstituição viva de seu meio na época, conforme suas lembranças por ocasião da entrevista (Cardoso, 2013; Ridenti, 2025).

 

Fonte: Por Marcelo Ridenti, em A Terra é Redonda

 

Nenhum comentário: