FHC
– um intelectual comunista nos anos 1950
Não é
segredo que Fernando Henrique Cardoso teve um vínculo com o Partido Comunista
do Brasil (PCB) no começo da década de 1950. Ele mencionou o fato brevemente em
diversos depoimentos, mas só se deteve no tema na entrevista publicada
recentemente pela revista Tempo Social, que está disponível on-line.
A
entrevista, concedida em 2013, fez parte da minha pesquisa sobre a
internacionalização e o financiamento a intelectuais durante a Guerra Fria nos
anos 1950 e 1960, que resultou no livro O segredo das senhoras americanas.
O
ex-presidente mencionou de passagem sua ligação com o PCB num trecho da matéria
para a Folha de S.Paulo, por ocasião do falecimento do economista Paul Singer,
amigo e ex-colega da Universidade de São Paulo (usp), do grupo do seminário d’O
capital e posteriormente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap). Fernando Henrique Cardoso lembrou que Paul Singer havia sido membro
do “Partido Socialista, e eu pertencera ao Partidão de 1949 a 1954” (Cardoso,
2018).
Essa
datação às vezes varia, segundo o próprio Fernando Henrique. Por exemplo, ele
já afirmou que “entre 1949 e 1955 tive um período de aproximação com o Partido
Comunista. Nessa altura eu era muito amigo do Fernando Pedreira, casado com
Renina Katz, na época ambos eram comunistas” (Cardoso, 2015).
Perguntado
a respeito das datas na entrevista que me concedeu, ele disse que se lembra com
precisão apenas de personagens e situações, e conta que sua aproximação com o
Partido se deveu a amizades, sobretudo com Fernando Pedreira (Cardoso, 2013).
Como ambos só se conheceram quando o jornalista se mudou para São Paulo em maio
de 1951, é provável que o início da relação mais próxima com os comunistas
tenha sido naquele ano ou no seguinte.
Além
disso, o sociólogo observou que não fazia política como estudante de graduação,
tendo ingressado no curso de Ciências Sociais da USP em 1949. Nesse ponto, sua
memória confirma a de Fernando Pedreira, um pouco mais velho, que afirmou tê-lo
conhecido quando o sociólogo estaria no último ano de faculdade, aproximando-se
do Partido na época em que já era um jovem professor assistente (Pedreira,
2016, pp. 116-119).
O
jornalista carioca contou que foi redator e secretário da revista mensal
comunista Fundamentos, “um quadro na direção do aparelho intelectual ou
cultural do Partidão na Pauliceia” (Pedreira, 2016, p. 246, 300). É provável
que ele tenha sido responsável por fazer o nome de Fernando Henrique constar no
extenso comitê de redação da revista entre 1952 e 1955, ao lado de intelectuais
comunistas que marcaram época.
Talvez
1955 tenha sido o último ano de Fernando Henrique Cardoso ligado ao Partido,
mas é difícil precisar, já que o envolvimento era fluído; parece que foi mais
um companheiro de viagem do que militante propriamente dito, apesar do
compromisso e de se ver retrospectivamente como membro do PCB. Nos termos dele,
na entrevista que me concedeu, “todos éramos comunistas. Propriamente, do ponto
de vista orgânico, a relação era mais frouxa”.
Não
obstante, o sociólogo disse que chegou a dar carona para dirigentes comunistas
participarem de reunião secreta no contexto de envolvimento com a Campanha da
Paz e a Campanha do Petróleo, numa época em que o Partido estava proscrito e
era perseguido: “Quem tem automóvel nessas horas tem acesso ao comando e é
arriscadíssimo porque [ao dar carona] sabe para onde é que eles vão” (Cardoso,
2013; Ridenti, 2025, p. 7).
Como os
procedimentos de segurança dos dirigentes comunistas eram rígidos, somente
pessoas de estrita confiança eram convocadas para trabalhar como chofer. Ou
seja, a ligação como o PCB era próxima o suficiente para ser escalado para uma
tarefa que demandava plena confiabilidade.
Quando
entrevistei Maurício Segall para a pesquisa que redundaria no livro Em busca do
povo brasileiro (Ridenti, 2000), ele me falou sobre a célula de docentes
comunistas na USP na primeira metade dos anos 1950, de que era o secretário.
Disse que eu ficaria surpreso com o nome de certos integrantes, mas preferia
silenciar para não os comprometer.
No
entanto, no decorrer da entrevista, citou com desembaraço vários colegas
comunistas de então, como o arquiteto Vilanova Artigas e o físico Mário
Schenberg, entre outros. Na época fiquei intrigado sobre quem seria o nome
misterioso que Maurício Segall preferia não citar. Lembrando dessa conversa,
perguntei a Fernando Henrique Cardoso se ele pertenceu a esse núcleo.
Ele
imediatamente disse que sim, recordando que “Maurício a uma certa altura era o
chefão”. Mas, segundo Fernando Henrique, “a USP não era alcançada pelo Partido
Comunista, era uma coisa marginal. Ao contrário, a USP era mais
udeno-socialista” (Cardoso, 2013).
O fim
do envolvimento com o PCB foi sacramentado pela repercussão negativa da invasão
da Hungria pelas tropas soviéticas em 1956, como Fernando Henrique Cardoso
reiterou no depoimento. As datas de sua aproximação e de afastamento do Partido
são difíceis de precisar até mesmo para ele, pois se deram num processo, de
modo relativamente suave.
Independentemente
dos marcos exatos, o que importa é constatar a inserção do futuro presidente do
Brasil num meio intelectual e artístico fortemente marcado pela presença
comunista, com o qual Fernando Henrique Cardoso se identificava na São Paulo do
começo da década de 1950.
O
sociólogo escreveu apenas um artigo para Fundamentos, publicado em janeiro de
1952, quando ainda era aluno no final da graduação em Ciências Sociais. Nele,
criticava o livro Retrato sincero do Brasil, de Limeira Tejo (1951), um
jornalista a quem faltaria “apoio em métodos científicos de apreensão e
interpretação da realidade”. Justamente os métodos que Cardoso aprendia com a
escola liderada por Florestan Fernandes na USP.
Além
disso, segundo o jovem acadêmico, a obra de Limeira Tejo ignoraria que “o
Estado é apenas um aparelho de dominação e que numa sociedade estratificada em
classes (como a nossa) esta instituição passa a ser dirigida pela classe
dominante, isto é, numa sociedade capitalista são os próprios homens de
negócios que exercem o poder (direta ou indiretamente)”.
Mesclada
com a inspiração evidente desse raciocínio em Marx, que não é mencionado
explicitamente, aparece ainda a influência de Max Weber, reiterada no trecho:
“A formação de uma burocracia corresponde às necessidades de racionalização das
ações humanas no campo da administração, necessidades estas que surgem
juntamente com um tipo de dominação chamada pelos sociólogos de racional-legal,
que se verifica numa certa fase de desenvolvimento das sociedades capitalistas”
(Cardoso, 1952).
Nesse
texto do jovem Fernando Henrique Cardoso, transparece implicitamente a
concordância com a interpretação do Brasil de Caio Prado Jr., historiador
comunista que tinha visão divergente das teses predominantes no Partido e de
quem o sociólogo viria a se aproximar na revista Brasiliense,de propriedade do
historiador, passando a integrar o conselho de redação a partir de janeiro de
1957.
A
influência de Prado Jr. já se revelara quando o sociólogo em formação escrevia
que “no século XIX havia uma economia de base capitalista atuando no Brasil,
basta considerarmos a exploração de nossa agricultura tendo em mente a produção
em grande escala, sua colocação no mercado internacional, e o financiamento em
bases capitalistas desta produção” (Cardoso, 1952).
Esse
raciocínio chocava-se com a interpretação dos comunistas sobre as supostas
sobrevivências de relações feudais ou semifeudais no campo. Isso não foi
empecilho para que o nome de Fernando Henrique Cardoso passasse a constar no
conselho de redação da revista Fundamentos logo depois, em março de 1952.
Na
entrevista que me concedeu em 2013, agora publicada, evidenciam-se aspectos das
ligações embaralhadas dos comunistas com setores das elites brasileiras
(Ridenti, 2025). A conversa ilumina não apenas as conexões intelectuais e
artísticas, mas também as políticas, profissionais, acadêmicas, militares, tudo
mesclado com relações pessoais, envolvendo amizades, parentesco, formação
escolar e vizinhança, em ampla rede de sociabilidade.
Esses
aspectos se destacam no depoimento, que oferece um breve e rico painel da vida
nos círculos intelectuais e artísticos paulistanos no início dos anos 1950,
especialmente os considerados de esquerda, a circular em ambientes como a USP,
o Museu de Arte de São Paulo (Masp), a Bienal, o Instituto dos Arquitetos, a
redação de algumas revistas e jornais, as livrarias Francesa, Brasiliense,
Parthenon e outras. Tudo localizado no centro histórico e nos bairros nobres da
cidade de São Paulo.
A
entrevista de Fernando Henrique Cardoso vai na mesma direção de declarações de
outros intelectuais e artistas que pertenceram àquele ambiente paulistano no
início dos anos 1950. Por exemplo, segundo o cineasta comunista Alex Viany,
todo o pessoal jovem do cinema em São Paulo “ou era do Partido ou era próximo
do Partido” (Viany, 1986).
No
contexto de início da Guerra Fria, a vitória da revolução chinesa de 1949
reforçava a convicção de que o mundo caminhava na direção comunista, a corrente
política principal que derrotara o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
A
necessidade de escolher um lado impunha-se para muitos artistas e intelectuais.
Os soviéticos conduziam um bloco que parecia indicar as vias para o futuro,
apesar dos problemas, contradições e debilidades teóricas e políticas, os quais
– esperava-se – seriam corrigidos ao construir o caminho do desenvolvimento.
A
universidade brasileira era incipiente no começo dos anos 1950, com destaque
sobretudo para a usp, onde as Ciências Sociais apenas começavam a se firmar e
institucionalizar, tendo Fernando Henrique Cardoso como um dos principais
articuladores. Ele fez parte de um ambiente cultural efervescente de jovens
intelectuais e artistas que buscavam um lugar na sociedade brasileira em
momento de modernização acelerada. Construía-se um campo intelectual, cujo
devir era incerto para quem começava a vida profissional; várias possibilidades
se abriam, algumas envolvendo convergência com os comunistas.
A
aproximação de Fernando Henrique Cardoso com o Partido, a exemplo de outros
intelectuais e artistas de sua geração, ligava-se ainda ao questionamento das
desigualdades e do subdesenvolvimento, temas indissociáveis que marcariam o
conjunto de sua obra, construída depois que se afastou do Partido, conforme
comenta na entrevista.
Ele
revisitou sua relação com os comunistas, depois com a revista Brasiliense, o
seminário d’O capital, até sua contribuição para a teoria da dependência já nos
anos 1960, que lhe deu projeção internacional. Reivindicou coerência em sua
trajetória intelectual, a partir da preocupação sempre presente com a questão
do desenvolvimento como possibilidade para diminuir as desigualdades, lançando
mão da análise dialética, daquilo que denominou “método histórico-estrutural”,
em grande parte inspirado em Marx.
Entretanto,
afirmou rejeitar a “filosofia política, histórica do marxismo, uma dialética
com uma finalidade definida, a superação pela revolução”, bem como refutou o
chamado marxismo vulgar (Cardoso, 2013).
Fernando
Henrique Cardoso falou também da ligação pessoal com vários personagens, caso
do mentor Florestan Fernandes – que na época não via com bons olhos a
militância partidária –, do citado Fernando Pedreira e outros amigos
comunistas, como os admirados Caio Prado Jr. e Elias Chaves Neto, o cineasta
Nelson Pereira dos Santos, os pintores Luiz Ventura, Mário Gruber e Otávio
Araújo, e muitos mais, a exemplo de seus vizinhos, Mário Schenberg e Vilanova
Artigas.
Contou
sobre o pai Leônidas Cardoso, militar nacionalista e amigo de Luiz Carlos
Prestes, referiu-se ao parentesco com o comunista histórico Octávio Brandão,
primo de sua mãe, Nayde Silva Cardoso. Mencionou ainda uma infinidade de outros
artistas e intelectuais do círculo comunista – e fora dele, caso dos
socialistas Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes, além de personagens
que não eram propriamente de esquerda, como Roberto Gusmão, ex-presidente da
União Nacional dos Estudantes (une), de 1947 a 1948. Foram pessoas com quem
teve contato ou amizade, numa reconstituição viva de seu meio na época,
conforme suas lembranças por ocasião da entrevista (Cardoso, 2013; Ridenti,
2025).
Fonte:
Por Marcelo Ridenti, em A Terra é Redonda

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