Usuários
acreditam ser ‘viciados’ no Instagram, mas só 2% têm sintomas; entenda por que
percepção exagerada faz mal
A ideia
de estar “viciado” no Instagram se tornou parte do vocabulário cotidiano. A
expressão aparece em memes, conversas de família, rodas de amigos, posts de
influenciadores e até em comunicados oficiais. Mas uma pesquisa publicada no
Scientific Reports, do grupo Nature, mostra que essa sensação é, na maior parte
das vezes, um erro de avaliação —e um erro que tem consequências.
Segundo
o estudo, usuários superestimam o próprio vício. Entre mais de 1.200 adultos
analisados, apenas 2% apresentaram sintomas compatíveis com risco clínico de
dependência, enquanto 18% disseram, pelo menos em parte, sentir-se “viciados”
no aplicativo.
Ou
seja: para cada pessoa clinicamente em risco, há pelo menos oito que acreditam
estar viciadas sem estar.
Essa
distorção não é apenas semântica. Ela afeta a relação que os usuários têm com o
próprio comportamento digital, reduz a sensação de controle e aumenta a
autoculpa —mesmo quando não há nenhum sinal clínico de dependência.
“Vimos
que muitas pessoas adotam para si o rótulo de ‘vício’ sem qualquer evidência
clínica”, afirma ao g1 o pesquisador Ian Anderson, pós-doutor no Instituto de
Tecnologia da Califórnia (Caltech) e autor principal do estudo.
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Achar que é vício x suposto vício
Para
entender esse fenômeno, os autores conduziram dois estudos. O primeiro mediu a
prevalência real de sintomas. O segundo testou um efeito curioso: o que
acontece quando você diz a alguém —ou a pessoa diz a si mesma— que está
viciada?
O
resultado surpreendeu até os pesquisadores. Bastou pedir que uma parte dos
voluntários escrevesse, por dois minutos, sobre “momentos em que se sentiram
viciados em Instagram” para que eles:
• relatassem menos controle sobre o
próprio uso,
• lembrassem de mais tentativas
fracassadas de reduzir o tempo de tela,
• se sentissem mais culpados quando
passavam muito tempo no app,
• acreditassem que precisariam reduzir o
uso no futuro.
O
detalhe: nada tinha mudado no comportamento real deles —só a percepção. O
simples rótulo de “vício” piorou a relação das pessoas com o aplicativo.
“Esse
enquadramento prejudica a sensação de autoeficácia”, explica Anderson. “Apenas
chamar o uso de vício já é suficiente para reduzir a percepção de que a pessoa
pode mudar.”
Ele
acrescenta que, embora o estudo não tenha medido diretamente práticas como
digital detox, o efeito percebido sugere que elas podem até ser prejudicadas:
“O
enquadramento como vício limita a crença na própria capacidade de reduzir o uso
e aumenta a autoculpa.”
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Por que tanta gente acha que é viciada?
O
estudo buscou essa resposta examinando o ambiente de informações no qual os
usuários estão inseridos. Uma análise de 36 meses de notícias e posts em redes
sociais nos Estados Unidos revelou:
• 4.383 matérias mencionavam “vício em
redes sociais”,
• apenas 50 usavam o termo “hábito
digital”,
• conteúdos sobre vício tinham mais de 70
mil interações online.
“Ficamos
surpresos com o tamanho da diferença —quase cem vezes mais textos falando em
vício do que em hábito”, diz Anderson. “Esse excesso ajuda a tornar ‘vício’ o
rótulo normativo, aquele que parece natural para explicar o uso intenso.”
Segundo
ele, esse fluxo constante de manchetes cria um cenário em que as pessoas
internalizam o termo e passam a aplicá-lo a si mesmas, mesmo quando não se
enquadram em critérios clínicos.
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Hábito não é vício, e confundir os dois traz problemas
O
estudo dedica várias páginas a explicar a diferença.
• Hábito é o que acontece quando se usa o
Instagram repetidamente nas mesmas situações: ao acordar, no intervalo do
trabalho, esperando um ônibus. O cérebro cria atalhos automáticos, que fazem o
usuário abrir o aplicativo sem perceber. Quase metade dos usuários se reconhece
nesse padrão.
• Vício, por outro lado, exige um conjunto
de sintomas psiquiátricos: abstinência, perda de controle, prejuízo à rotina,
conflito com trabalho ou estudo. Esses sinais apareceram em apenas 2% dos
participantes.
“Nossos
dados mostram que 35% têm hábitos fortes, enquanto apenas 2% estão em risco de
dependência”, explica Anderson. “Por isso, a maioria das pessoas deveria usar
estratégias baseadas em hábito, não em vício.”
O
pesquisador afirma ainda que, ao chamar um hábito de vício, “cria-se um
problema artificial: a pessoa passa a acreditar que vive uma dependência que
não existe”.
— Foto:
Freepik
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E como mudar o uso, então, se o problema não é vício?
A boa
notícia, segundo os pesquisadores, é que hábitos são muito mais fáceis de
alterar do que vícios. Eles respondem a ajustes no ambiente e à quebra de
gatilhos automáticos, como:
• reduzir notificações,
• tirar o celular de vista em momentos
específicos,
• reorganizar a tela inicial,
• usar o modo cinza,
• substituir o ato de abrir o Instagram
por outra ação quando surge o impulso automático.
“Entender
o comportamento como hábito aumenta a sensação de controle e abre caminho para
mudanças eficazes”, diz Anderson.
Ele
ressalta que estratégias baseadas em vício —como encarar a situação como uma
batalha moral, buscar abstinência total ou adotar medidas extremas– podem ser
contraproducentes para quem não tem dependência real.
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E as diferenças entre grupos?
Os
autores não dividiram a amostra em subgrupos no estudo principal. Mas ao
reanalisar os dados, Anderson encontrou tendências importantes:
• Usuários mais jovens eram um pouco menos
propensos a se perceber como viciados.
• Usuários mais frequentes tinham maior
chance de dizer que eram viciados –e também maior risco clínico real.
• Gênero não influenciou nem a percepção
nem o risco.
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E quanto aos adolescentes?
Os
participantes tinham, em média, 44 anos. Mas Anderson acredita que padrões
semelhantes podem surgir entre os mais jovens.
“Em uma
amostra universitária que analisamos separadamente, vimos uma superpercepção
muito forte de vício no TikTok —59% achavam que tinham vício, mas só 9% estavam
no grupo de risco”, diz. “Não sabemos quanto disso é efeito da faixa etária ou
do aplicativo.”
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O que as plataformas podem fazer?
Segundo
Anderson, empresas poderiam ajudar oferecendo mais ferramentas para interromper
hábitos automáticos, mas isso entra em conflito com o modelo de negócios
baseado em engajamento contínuo.
“As
plataformas exploram princípios de formação de hábito. Natural stopping points,
fricção e ferramentas de gestão de tempo ajudariam, mas não são prioridades
comerciais”, afirma.
“Por
isso, mudanças significativas dependem de políticas públicas que obriguem as
plataformas a oferecer meios reais de gerenciar o uso.”
Fonte:
g1

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