A
máquina dos EUA se entrega às big techs
A
impossibilidade do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se candidatar a
um terceiro mandato sem um malabarismo constitucional, e o debate sobre sua
sucessão, começou em 2019 em um encontro discreto em um hotel da cidade de
Rockbridge, Ohio.
Durante
alguns dias de conversas e articulações, foi reunida a nata da oligarquia
tecnológica do país, investidores do Vale do Silício e políticos em ascensão no
Partido Republicano. A rede formada naquele evento, a Rockbridge Network, vem
reconfigurando a forma como a elite econômica conservadora dos EUA liderará a
política nacional nos próximos anos.
No
início de novembro, surgiu um projeto que mapeou essas relações com o governo
federal norte-americano e sua influência estratégica no futuro do Make America
Great Again, o MAGA, movimento em torno do qual se aglutinaram as forças de
extrema direita que levaram Trump ao segundo mandato.
Um
artigo recente no The Washington Post traçou o perfil e o pensamento do líder e
principal articulador da Rockbridge Network. Chris Buskirk, um empresário do
Arizona, é a figura central na reestruturação do MAGA, transformando-o de um
fenômeno centrado na personalidade de Donald Trump para uma força política
duradoura e institucionalizada.
Buskirk
atua como o arquiteto por trás da organização de doadores e estrategistas que
reúne conservadores como o bilionário Peter Thiel, o agora vice-presidente JD
Vance e Donald Trump Jr, filho do presidente. A filosofia de Buskirk, descrita
como “aristopopulismo”, defende a necessidade de uma “elite produtiva”, uma
aristocracia de líderes empresariais e inovadores, para guiar o país.
Essa
nova vanguarda, segundo ele, não está em conflito com a base populista do MAGA,
mas sim a serviço dela, com o objetivo de reindustrializar o país e alinhar os
interesses do capital com os da classe trabalhadora.
Esta
reestruturação do MAGA é fundamentada em uma abordagem estratégica que Buskirk
resume como “cérebros, mais dinheiro, mais base”. A rede que ele fundou opera
como uma máquina sofisticada e completa, com pesquisadores, analistas de dados
e braços de mídia, visando criar um ecossistema político que possa sobreviver e
prosperar para além de Trump.
A
organização tem como um de seus objetivos impulsionar JD Vance como o sucessor
natural do movimento, potencialmente para a candidatura presidencial em 2028. A
estratégia do grupo envolve a criação de uma infraestrutura organizacional que
faltava ao movimento pró-Trump em seus primórdios, utilizando táticas de
engajamento de militantes inspiradas em manuais de agitação e propaganda da
esquerda para construir relacionamentos de confiança com eleitores em
potencial, muito antes das eleições.
Essa
aliança estratégica é marcada por laços estreitos entre a nova direita
política, bilionários do setor de tecnologia e o atual governo. Com
financiamento significativo de líderes de tecnologia como Thiel, e o
envolvimento de outros investidores e gurus do Vale do Silício como Marc
Andreessen e David Sacks, a Rockbridge se tornou um ponto de encontro para a
nova classe de poder em Washington.
A
empresa de capital de risco de Buskirk, a 1789 Capital, que conta com Donald
Trump Jr. como sócio, exemplifica essa fusão, investindo em “capitalismo
patriótico” e empresas “anti-woke”. Essa relação simbiótica é criticada por
alguns como uma forma de “pagar para jogar”, onde políticas favoráveis à
tecnologia e criptomoedas são trocadas por apoio financeiro e estratégico,
levantando questões sobre se o movimento beneficia a classe trabalhadora que
afirma representar ou uma nova oligarquia americana.
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Ideologia, dinheiro e controle: o mapa das redes de poder
Para
decodificar a estratégia e o impacto de redes como a Rockbridge, é preciso ir
além da análise política tradicional e adotar um quadro que revele a
infraestrutura subjacente a este novo tipo de poder. O projeto Authoritarian
Stack, coordenado pela pesquisadora
Francesca Bria e pelo jornalista investigativo José Bautista, oferece essa
lente analítica.
A
iniciativa mapeou como um conjunto de empresas de tecnologia e seus aliados
financeiros estão efetivamente privatizando funções estatais nos EUA por meio
de uma arquitetura integrada de poder, que opera de forma silenciosa e
sistêmica.
O
conceito de “pilha” descreve como camadas de infraestrutura tecnológica e
financeira (nuvem, inteligência artificial, meios de pagamento, redes de drones
e sistemas orbitais) são combinadas para funcionar como um sistema operacional
de controle tecnopolítico.
Diferente
do autoritarismo clássico, que depende de mobilização de massa e coerção
explícita, esta nova forma de poder atua por meio da criação de dependência
infraestrutural e da coordenação financeira, deslocando o centro da soberania
do estado para conselhos de administração corporativos e seus fundos de
investimento. É a materialização da tecnoligarquia em ação.
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As relações na Rockbridge Network
Segundo
Bria, o projeto nasceu a partir da análise de um contrato assinado em julho
entre o Exército dos EUA e a empresa Palantir, fundada por Thiel, no valor de
US$ 10 bilhões. O negócio foi a reunião de 75 acordos de compras públicas em um
único documento consolidando, nas palavras da pesquisadora, a empresa como o
sistema operacional de fato do governo dos Estados Unidos.
“As
decisões sobre alvos, movimentos de tropas e análises de inteligência passam
cada vez mais por algoritmos governados não por um comando militar, mas por um
conselho corporativo responsável perante os acionistas”, explicou a
pesquisadora. “ O exército não estava apenas comprando software, estava cedendo
soberania operacional a uma plataforma sem a qual não pode mais funcionar”.
Da
análise dos dados do projeto fica perceptível constatar que a simbiose entre o
estado e as grandes corporações de tecnologia é alicerçada por mecanismos
estruturais e organizacionais que comprometem a autonomia governamental.
Através
de consolidações contratuais e da profunda integração técnica, agências
estatais tornam-se cativas de plataformas proprietárias, em uma espécie de
lock-in infraestrutural. Essa dependência não apenas dificulta a substituição
de fornecedores, mas também obstrui a auditoria pública e a soberania
tecnológica do Estado.
Simultaneamente,
a integração organizacional aprofunda esses laços, com a nomeação de executivos
do setor privado para postos estratégicos em estruturas militares, de segurança
e de ciência e tecnologia, além da proliferação de parcerias público-privadas
que dissolvem as barreiras institucionais entre os interesses corporativos e as
funções estatais.
Exemplos
emblemáticos são o ex-chefe de gabinete de Thiel, Michael Kratsios, atuando
como coordenador do escritório para a política de ciência e tecnologia da Casa
Branca, o ex-executivo da Palantir, Gregory Barbaccia, no cargo de Diretor
Federal de Informação, e Michael Obadal, um funcionário da Anduril, nomeado
como sub-secretário do Exército.
Executivos
de empresas como Meta, OpenAI e Palantir foram comissionados na reserva do
Exército (Detachment 201), sinalizando um intercâmbio direto entre liderança
corporativa e comando militar, com potencial influência na definição de
requisitos e prioridades tecnológicas do estado.
Essa
simbiose é reforçada por um poderoso alinhamento político-financeiro, no qual
fundos de investimento e doadores com agendas ideológicas específicas canalizam
capital para empresas estrategicamente posicionadas para assumir funções
críticas de defesa, segurança e gestão de dados.
Um bom
exemplo disso é a ascensão do fundo 1789 Capital, de Buskirk, a mais de US$ 1
bilhão em ativos, conectando financiamento ideológico e expansão de plataformas
críticas do estado. Tal dinâmica cria um circuito fechado onde financiamento,
influência política e contratos governamentais se retroalimentam, consolidando
o poder de um pequeno número de atores.
Para
justificar essa captura de funções estatais, emprega-se uma legitimação
discursiva baseada na retórica da soberania tecnológica e do “patriotismo”.
Esse discurso habilmente desloca o debate público do controle democrático e da
transparência para uma lógica de eficiência e inovação do setor privado,
minimizando os riscos associados à perda de soberania e à erosão da governança
pública.
Investidores
e ideólogos como Thiel, Elon Musk, Marc Andreessen, David Sacks, Palmer Luckey
e Alexander Karp promovem uma agenda que normaliza a externalização da
soberania estatal para infraestrutura privada, justificando-a como modernização
e eficiência em defesa e governança.
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Expansão transnacional
O
sucesso em consolidar-se como espinha dorsal do complexo industrial-militar
norte-americano serviu como vitrine para a expansão global de empresas como a
Palantir.
O
modelo de integração profunda com o aparato estatal foi replicado em outros
países, notadamente na Europa, onde corporações policiais na Alemanha adotaram
seus sistemas de TI e o sistema nacional de saúde do Reino Unido, o NHS, firmou
um controverso contrato de 330 milhões de libras para que a empresa processe
dados sensíveis de cidadãos britânicos.
A mesma
lógica impulsionou a Starlink, de Elon Musk, que, após provar seu valor
estratégico em cenários de conflito, passou a realizar contratos com o
Ministério da Defesa da Itália e diversos órgãos públicos em outras nações.
O
Brasil emerge como um estudo de caso emblemático dessa dinâmica de expansão. O
contrato do NHS britânico com a Palantir, por exemplo, teve uma extensão no
país durante o governo Bolsonaro por meio do Better Health Programme, como
documentado pelo Lapin e pelo Cebes.
De
forma notável, a parceria foi renovada em outubro de 2025 pela nova gestão,
sinalizando como a dependência infraestrutural e a lógica da eficiência técnica
podem transcender alinhamentos ideológicos de governos. Da mesma forma, a
Starlink firmou múltiplos contratos com órgãos públicos brasileiros, da defesa
à educação, consolidando sua presença em áreas estratégicas.
Tais
exemplos demonstram que a “pilha autoritária” não é um fenômeno restrito aos
EUA, mas um modelo de governança exportável que opera de forma eficaz em
diferentes contextos políticos, muitas vezes sob o verniz da modernização e da
Se a
Palantir constitui a camada de dados dessa nova arquitetura de poder, a Anduril,
de Palmer Luckey, representa seu sistema de comando e guerra autônoma.
Segundo
a pesquisadora Francesca Bria, a plataforma Lattice conecta transmissões de
satélite, dados de radar e imagens do campo de batalha em uma única rede
operacional, permitindo que missões militares sejam planejadas e executadas com
mínima intervenção humana.
A
empresa alega que seus sistemas podem atingir o nível 5 de autonomia, ou seja,
identificar, atacar e retornar de missões sem qualquer comando humano direto,
representando o ápice da delegação de funções soberanas a algoritmos privados.
As
implicações da crescente integração entre o estado e as corporações de
tecnologia culminam em uma efetiva privatização da soberania, um fenômeno que
redefine as fronteiras do poder público. Funções historicamente centrais ao
Estado, como defesa, vigilância e logística estratégica, passam a operar sob a
lógica da governança corporativa, deslocando o eixo da responsabilidade
(accountability) das instituições democráticas, como parlamentos e tribunais,
para os conselhos de administração de empresas privadas.
Esse
processo acarreta um profundo risco regulatório e democrático, pois a opacidade
dos contratos e a dependência de tecnologias proprietárias criam barreiras
quase intransponíveis para a auditoria independente e o controle legislativo.
A
proteção de liberdades civis torna-se precarizada, e os efeitos negativos são
amplificados em escala global, uma vez que a infraestrutura tecnológica que
sustenta essas operações é, em grande parte, transnacional e controlada por um
número reduzido de atores.
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Opacidade versus escrutínio
Diante
desse cenário, torna-se imperativa a construção de uma agenda para políticas
públicas que vise reafirmar o controle democrático e a soberania estatal. Tal
agenda deve começar pelo fortalecimento de mecanismos de compras públicas que
exijam transparência, interoperabilidade e o uso de padrões abertos e
auditáveis, reduzindo o aprisionamento tecnológico.
É
igualmente crucial implementar um escrutínio rigoroso sobre conflitos de
interesse e o fenômeno das “portas giratórias” entre o setor público e o
privado.
Adicionalmente,
deve-se exigir total transparência sobre os algoritmos e os dados empregados em
funções soberanas, garantindo que decisões críticas não sejam delegadas a
“caixas-pretas” corporativas. Em última análise, a estratégia mais robusta
consiste em investir na criação de alternativas públicas e infraestruturas
digitais soberanas, capazes de competir com as soluções privadas e assegurar
que o estado mantenha o controle sobre suas funções essenciais.
Contudo,
como implementar uma agenda de soberania digital em um cenário onde o movimento
MAGA se encontra anabolizado pelo capital e pela infraestrutura do Vale do
Silício? Este primeiro ano da nova administração Trump já sinaliza que medidas
reativas de outros países serão enquadradas no pacote ideológico do Estado
norte-americano como ameaças a serem combatidas. Com a provável ascensão de um
membro notório da rede Rockbridge ao Salão Oval no futuro, a consolidação desse
modelo parece inevitável.
Nesse
contexto, a capacidade de outros estados nacionais em antecipar e regular
proativamente acordos com as empresas da “pilha autoritária” torna-se a medida
definidora para evitar a importação de um modelo que subordina a soberania
nacional à lógica de uma tecnoligarquia estrangeira. Antecipar o desastre
anunciado barrando acordos com estas empresas é o que pode impedir que se faça
a América grande novamente além das suas fronteiras.
Fonte:
Por James Gorgen, em The Intercept

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