domingo, 30 de novembro de 2025

Quando a tecnologia abandona quem mais precisa de proteção

A notícia chegou mais uma vez com a brutalidade que já se tornou rotineira: outro crime de ódio contra a população LGBTI+, mais uma vítima atraída através de aplicativos de relacionamento. O padrão se repete com uma regularidade alarmante em São Paulo, Porto Alegre, Brasília e Curitiba. O que poderia parecer uma série de tragédias isoladas revela, sob análise mais atenta, a face perversa de um modelo de negócio que lucra com a solidão e a marginalização, mas se recusa a investir adequadamente na proteção de seus usuários.

O recente despacho (PR-AC-00020807/2025) do Procurador Lucas Costa Almeida Dias, do Ministério Público Federal no Acre, sobre a segurança em plataformas de encontro LGBTI+ expõe uma verdade incômoda sobre a economia digital contemporânea: as grandes corporações tecnológicas construíram impérios financeiros sobre comunidades vulnerabilizadas, mas tratam a segurança desses usuários como um custo opcional, algo a ser considerado apenas quando a má publicidade ameaça os lucros ou quando as autoridades intervêm após tragédias já consumadas.

O caso das “emboscadas do Sacomã” é paradigmático dessa negligência sistemática. Entre fevereiro e maio de 2024, nove homens gays foram roubados pelo mesmo grupo criminoso, usando exatamente o mesmo método operacional. Nove vítimas. Meses de atividade criminosa. Um padrão evidente e repetitivo. E somente quando um homicídio finalmente ocorreu é que as autoridades conseguiram identificar os suspeitos. A pergunta que não quer calar é: onde estavam os algoritmos de detecção? Onde estavam os moderadores humanos? Onde estava a responsabilidade corporativa?

A resposta é tão simples quanto perturbadora: não estava em lugar algum, porque não era economicamente vantajoso estar. As plataformas digitais de relacionamento operam sob uma lógica de maximização de lucros que trata a moderação e a segurança como custos a serem minimizados, não como responsabilidades fundamentais. Enquanto investem fortunas em algoritmos de engajamento e retenção de usuários, destinam recursos ínfimos para a proteção efetiva das pessoas que utilizam seus serviços.

O que torna essa dinâmica ainda mais perversa é que estamos falando de uma população historicamente marginalizada, que encontra nas plataformas digitais um dos poucos espaços relativamente seguros para expressar sua identidade e buscar conexões. Como bem observa o professor Renan Quinalha no documento, esses aplicativos “facilitam o encontro de jovens LGBTs, que muitas vezes não têm outros espaços de interação”. São ferramentas importantes de sociabilidade para quem enfrenta preconceito, rejeição familiar e violência estrutural na sociedade em geral.

Mas é precisamente essa vulnerabilidade que deveria exigir das empresas um compromisso redobrado com a segurança, não uma postura de indiferença conveniente. A lógica é cruel: quanto mais vulnerável o usuário, mais dependente ele é da plataforma; quanto mais dependente, menos poder de barganha ele tem; quanto menos poder de barganha, menos as empresas se sentem compelidas a investir em sua proteção.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que estabeleceu um “dever de cuidado” para as plataformas digitais representa um avanço significativo no marco regulatório brasileiro. Ao determinar que as empresas devem atuar proativamente na remoção de conteúdos que incitem discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, o STF reconheceu que a autorregulação do mercado é insuficiente quando direitos fundamentais estão em jogo. No entanto, entre o estabelecimento de um princípio jurídico e sua aplicação efetiva há um abismo que precisará ser atravessado com pressão constante da sociedade civil e atuação firme do poder público.

O exemplo australiano, mencionado no documento do MPF, demonstra que é possível estabelecer protocolos de segurança sem comprometer a funcionalidade das plataformas. O código de conduta voluntário adotado pelos aplicativos de relacionamento na Austrália exige sistemas de detecção de ameaças, canais eficientes de denúncia e banimento de contas irregulares. Não se trata de tecnologia impossível ou custos proibitivos, mas de vontade política corporativa.

Aliás, é revelador que tanto o Grindr quanto o Hornet já tenham em seus próprios termos de serviço cláusulas que reconhecem a aplicabilidade da legislação brasileira em matéria de responsabilidade civil. Isso significa que essas empresas sabem perfeitamente que operam sob uma jurisdição que não aceita isenções totais de responsabilidade. No entanto, entre o que está escrito nos contratos e o que é efetivamente implementado em termos de segurança, há uma distância que se mede em vidas perdidas e traumas permanentes.

A questão transcende o âmbito puramente jurídico e adentra o terreno da ética corporativa e da responsabilidade social. Quando o CEO do Grindr afirma publicamente que a plataforma possui “200 moderadores humanos” e uma “política de tolerância zero”, mas a realidade demonstra que criminosos conseguem operar impunemente por meses usando os mesmos perfis e as mesmas táticas, há um evidente descompasso entre discurso e prática.

É importante também reconhecer que a tecnologia não é neutra. Os algoritmos que governam essas plataformas fazem escolhas constantemente sobre o que priorizar: engajamento, tempo de permanência no aplicativo, conversões para assinaturas premium. A segurança dos usuários raramente aparece como métrica prioritária nesses sistemas. Isso não é um acidente técnico, mas uma decisão de design que reflete prioridades corporativas.

A solução para esse impasse não pode vir apenas da boa vontade das empresas. É necessária uma regulação robusta, fiscalização efetiva e, fundamentalmente, a construção de uma consciência coletiva de que o acesso à tecnologia segura é um direito, não um privilégio. Especialmente para populações vulnerabilizadas, a segurança digital é uma questão de direitos humanos.

O Estado brasileiro, através do Ministério Público Federal e de outras instituições, tem a obrigação de exigir das plataformas digitais que operam no país a implementação de medidas concretas de proteção. Isso inclui sistemas automáticos de detecção de padrões suspeitos, moderação humana adequadamente dimensionada, transparência nos processos de investigação e banimento, e colaboração efetiva com as autoridades quando crimes são denunciados.

Mas além da regulação estatal, é fundamental que a própria comunidade LGBTI+ e seus aliados exerçam pressão constante sobre essas corporações. O poder de consumo coletivo, a capacidade de organização e a visibilidade política são ferramentas importantes nessa luta. Boicotes, campanhas de conscientização e mobilização social podem ser tão eficazes quanto processos judiciais para forçar mudanças corporativas.

A história nos ensina que direitos não são concedidos graciosamente pelo mercado ou pelo Estado; são conquistados através de luta, resistência e organização. A segurança digital da população LGBTI+ não será diferente. Cada crime que ocorre através dessas plataformas é um lembrete doloroso de que a tecnologia, por si só, não nos liberta. Ela pode ser instrumento de emancipação ou de opressão, dependendo de como é desenhada, regulada e utilizada.

O despacho do MPF representa um passo importante no reconhecimento institucional desse problema. Mas entre o reconhecimento e a solução efetiva há um longo caminho a percorrer. Um caminho que exigirá não apenas a atuação das instituições públicas, mas também a mobilização social, a pressão sobre as corporações e, fundamentalmente, uma mudança de paradigma sobre o que significa responsabilidade corporativa na era digital.

Enquanto essa mudança não ocorre, cada notificação de aplicativo, cada perfil criado, cada encontro marcado carrega consigo não apenas a promessa de conexão e afeto, mas também o risco calculado de uma violência que poderia ter sido evitada. E isso, em uma sociedade que se pretende justa e democrática, é absolutamente inaceitável.

 

Fonte: Por Matheus Rojja Fernandes, no Le Monde

 

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