Quando
a tecnologia abandona quem mais precisa de proteção
A
notícia chegou mais uma vez com a brutalidade que já se tornou rotineira: outro
crime de ódio contra a população LGBTI+, mais uma vítima atraída através de
aplicativos de relacionamento. O padrão se repete com uma regularidade
alarmante em São Paulo, Porto Alegre, Brasília e Curitiba. O que poderia
parecer uma série de tragédias isoladas revela, sob análise mais atenta, a face
perversa de um modelo de negócio que lucra com a solidão e a marginalização,
mas se recusa a investir adequadamente na proteção de seus usuários.
O
recente despacho (PR-AC-00020807/2025) do Procurador Lucas Costa Almeida Dias,
do Ministério Público Federal no Acre, sobre a segurança em plataformas de
encontro LGBTI+ expõe uma verdade incômoda sobre a economia digital
contemporânea: as grandes corporações tecnológicas construíram impérios
financeiros sobre comunidades vulnerabilizadas, mas tratam a segurança desses
usuários como um custo opcional, algo a ser considerado apenas quando a má
publicidade ameaça os lucros ou quando as autoridades intervêm após tragédias
já consumadas.
O caso
das “emboscadas do Sacomã” é paradigmático dessa negligência sistemática. Entre
fevereiro e maio de 2024, nove homens gays foram roubados pelo mesmo grupo
criminoso, usando exatamente o mesmo método operacional. Nove vítimas. Meses de
atividade criminosa. Um padrão evidente e repetitivo. E somente quando um
homicídio finalmente ocorreu é que as autoridades conseguiram identificar os
suspeitos. A pergunta que não quer calar é: onde estavam os algoritmos de
detecção? Onde estavam os moderadores humanos? Onde estava a responsabilidade
corporativa?
A
resposta é tão simples quanto perturbadora: não estava em lugar algum, porque
não era economicamente vantajoso estar. As plataformas digitais de
relacionamento operam sob uma lógica de maximização de lucros que trata a
moderação e a segurança como custos a serem minimizados, não como
responsabilidades fundamentais. Enquanto investem fortunas em algoritmos de
engajamento e retenção de usuários, destinam recursos ínfimos para a proteção
efetiva das pessoas que utilizam seus serviços.
O que
torna essa dinâmica ainda mais perversa é que estamos falando de uma população
historicamente marginalizada, que encontra nas plataformas digitais um dos
poucos espaços relativamente seguros para expressar sua identidade e buscar
conexões. Como bem observa o professor Renan Quinalha no documento, esses
aplicativos “facilitam o encontro de jovens LGBTs, que muitas vezes não têm
outros espaços de interação”. São ferramentas importantes de sociabilidade para
quem enfrenta preconceito, rejeição familiar e violência estrutural na
sociedade em geral.
Mas é
precisamente essa vulnerabilidade que deveria exigir das empresas um
compromisso redobrado com a segurança, não uma postura de indiferença
conveniente. A lógica é cruel: quanto mais vulnerável o usuário, mais
dependente ele é da plataforma; quanto mais dependente, menos poder de barganha
ele tem; quanto menos poder de barganha, menos as empresas se sentem compelidas
a investir em sua proteção.
A
recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que estabeleceu um “dever de
cuidado” para as plataformas digitais representa um avanço significativo no
marco regulatório brasileiro. Ao determinar que as empresas devem atuar
proativamente na remoção de conteúdos que incitem discriminação por orientação
sexual ou identidade de gênero, o STF reconheceu que a autorregulação do
mercado é insuficiente quando direitos fundamentais estão em jogo. No entanto,
entre o estabelecimento de um princípio jurídico e sua aplicação efetiva há um
abismo que precisará ser atravessado com pressão constante da sociedade civil e
atuação firme do poder público.
O
exemplo australiano, mencionado no documento do MPF, demonstra que é possível
estabelecer protocolos de segurança sem comprometer a funcionalidade das
plataformas. O código de conduta voluntário adotado pelos aplicativos de
relacionamento na Austrália exige sistemas de detecção de ameaças, canais
eficientes de denúncia e banimento de contas irregulares. Não se trata de
tecnologia impossível ou custos proibitivos, mas de vontade política
corporativa.
Aliás,
é revelador que tanto o Grindr quanto o Hornet já tenham em seus próprios
termos de serviço cláusulas que reconhecem a aplicabilidade da legislação
brasileira em matéria de responsabilidade civil. Isso significa que essas
empresas sabem perfeitamente que operam sob uma jurisdição que não aceita
isenções totais de responsabilidade. No entanto, entre o que está escrito nos
contratos e o que é efetivamente implementado em termos de segurança, há uma
distância que se mede em vidas perdidas e traumas permanentes.
A
questão transcende o âmbito puramente jurídico e adentra o terreno da ética
corporativa e da responsabilidade social. Quando o CEO do Grindr afirma
publicamente que a plataforma possui “200 moderadores humanos” e uma “política
de tolerância zero”, mas a realidade demonstra que criminosos conseguem operar
impunemente por meses usando os mesmos perfis e as mesmas táticas, há um
evidente descompasso entre discurso e prática.
É
importante também reconhecer que a tecnologia não é neutra. Os algoritmos que
governam essas plataformas fazem escolhas constantemente sobre o que priorizar:
engajamento, tempo de permanência no aplicativo, conversões para assinaturas
premium. A segurança dos usuários raramente aparece como métrica prioritária
nesses sistemas. Isso não é um acidente técnico, mas uma decisão de design que
reflete prioridades corporativas.
A
solução para esse impasse não pode vir apenas da boa vontade das empresas. É
necessária uma regulação robusta, fiscalização efetiva e, fundamentalmente, a
construção de uma consciência coletiva de que o acesso à tecnologia segura é um
direito, não um privilégio. Especialmente para populações vulnerabilizadas, a
segurança digital é uma questão de direitos humanos.
O
Estado brasileiro, através do Ministério Público Federal e de outras
instituições, tem a obrigação de exigir das plataformas digitais que operam no
país a implementação de medidas concretas de proteção. Isso inclui sistemas
automáticos de detecção de padrões suspeitos, moderação humana adequadamente
dimensionada, transparência nos processos de investigação e banimento, e
colaboração efetiva com as autoridades quando crimes são denunciados.
Mas
além da regulação estatal, é fundamental que a própria comunidade LGBTI+ e seus
aliados exerçam pressão constante sobre essas corporações. O poder de consumo
coletivo, a capacidade de organização e a visibilidade política são ferramentas
importantes nessa luta. Boicotes, campanhas de conscientização e mobilização
social podem ser tão eficazes quanto processos judiciais para forçar mudanças
corporativas.
A
história nos ensina que direitos não são concedidos graciosamente pelo mercado
ou pelo Estado; são conquistados através de luta, resistência e organização. A
segurança digital da população LGBTI+ não será diferente. Cada crime que ocorre
através dessas plataformas é um lembrete doloroso de que a tecnologia, por si
só, não nos liberta. Ela pode ser instrumento de emancipação ou de opressão,
dependendo de como é desenhada, regulada e utilizada.
O
despacho do MPF representa um passo importante no reconhecimento institucional
desse problema. Mas entre o reconhecimento e a solução efetiva há um longo
caminho a percorrer. Um caminho que exigirá não apenas a atuação das
instituições públicas, mas também a mobilização social, a pressão sobre as
corporações e, fundamentalmente, uma mudança de paradigma sobre o que significa
responsabilidade corporativa na era digital.
Enquanto
essa mudança não ocorre, cada notificação de aplicativo, cada perfil criado,
cada encontro marcado carrega consigo não apenas a promessa de conexão e afeto,
mas também o risco calculado de uma violência que poderia ter sido evitada. E
isso, em uma sociedade que se pretende justa e democrática, é absolutamente
inaceitável.
Fonte:
Por Matheus Rojja Fernandes, no Le Monde

Nenhum comentário:
Postar um comentário