sexta-feira, 28 de novembro de 2025

João dos Reis Silva Júnior: Destruição da universidade pública

A Reforma Administrativa serve como um meio de reconfigurar estruturalmente o estado brasileiro sob dependência. E não é tanto uma modernização quanto um projeto regressivo que está redirecionando o fundo público da esfera social para a financeira. Como explica Marini (1973), a dependência é um produto auto-reforçador quando o estado transforma direitos em custos e austeridade em um código moral.

A universidade pública, uma expressão republicana do conhecimento coletivo, também é atingida no coração de sua continuidade – estabilidade, carreira e autonomia. Os cortes nos investimentos e a deterioração das relações estabelecem uma política de desinstitucionalização intencional. Harvey (2005) refere-se a esse processo como acumulação por despossessão, ou seja, apropriação privada de recursos públicos na narrativa do uso eficiente. A retórica governamental faz a Reforma soar razoável ao construir a imagem de um estado inchado e ineficiente. A austeridade é colocada como uma decisão política baseada em necessidade técnica, em vez de uma decisão política. A colonialidade do poder, argumenta Quijano (2000), nos ajuda a ver como o poder e a colonialidade do conhecimento redefinem hierarquias de conhecimento e naturalizam a subordinação.

O neoliberalismo simplesmente perpetua essa condição colonial ao atribuir as consequências fiscais a professores e técnicos. Harvey (2005) mostra que a austeridade não corrige desequilíbrios, apenas realoca recursos para o capital. A universidade foi transformada em uma corporação e seus trabalhadores tornaram-se operadores temporários. É o Estado dependente que fabrica a escassez para manter a subordinação, ele destrói e cria o espaço público.

O ensino público existe de acordo com a lógica da rotatividade. A perda de ordem e a expansão de arranjos de curto prazo esgotam a vitalidade de longo prazo da universidade. Oliveira (1972) chama essa contradição de razão dualista: modernização que avança destruindo a base sobre a qual é construída. A Reforma incorpora a modernização regressiva, recriando ilhas de excelência e oceanos de precariedade. O trabalho docente cessa, os programas de pós-graduação se esgotam, a comunidade científica definha, as ciências degeneram. Bourdieu (1984) já havia alertado que o capital científico depende da duração e da cooperação entre gerações. A Reforma destrói essa temporalidade, substituindo o tempo de criação pelo da urgência.

Técnicos administrativos na educação atuam como uma espécie de memória institucional. Ou seja, eles mantêm a coerência do dia a dia da faculdade ou universidade que a mantém funcionando. Eles possuem conhecimento que não está escrito em manuais e fornecem memória institucional. A Reforma interrompe esse fluxo, substituindo a permanência pela rotatividade. Como coloca Antunes (2009), a precarização desmantela culturas de trabalho e destrói conhecimento ao impedir a transmissão intergeracional. Uma universidade, sem técnicos estáveis, perde seus arquivos vivos. Segundo Oliveira (2003), isso é o que ela chama de autodestruição planejada do estado: ele se enfraquece para que “pareça moderno”. O fim da memória técnica faz a universidade perder sua base e se tornar um arranjo solto de tarefas. Extensão e indissociabilidade A Constituição de 1988 consagrou a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A Reforma a destrói ao retirar aquelas condições de vida que permitem a continuidade das conexões.

Santos (2005) afirma que a universidade está sendo mercantilizada, e que o conhecimento se torna uma mercadoria e o diálogo social se torna uma medida de desempenho. Projetos de extensão precisam de tempo, estabilidade e confiança, mas a lógica empresarial impõe limites, indicadores, metas e pontualidade. O corpo docente e técnico é precarizado, fragmentando o tecido social entre universidade e sociedade. A extensão torna-se episódica, e o compromisso público torna-se formalidade burocrática. Dependência e dualidade uma forma histórica Marini (1973) confirma que o estado dependente precisa reduzir custos internos para manter a competitividade periférica. A universidade está inserida nessa lógica superagressiva de exploração pela Reforma.

Oliveira (1972) argumenta que, para que a modernização brasileira exista, o antigo deve ser preservado. A universidade pública é onde essa duplicação acontece: laboratórios de ponta coexistem com salas de aula em ruínas, excelência encontra escassez. A dualidade deixa de ser uma anomalia e se torna um princípio de comportamento. O neoliberalismo periférico, argumenta Boaventura de Sousa Santos (2005), produz uma epistemologia da separação, onde o conhecimento crítico é marginalizado em favor do conhecimento útil ao mercado. A Reforma reconfirma essa epistemologia, transformando a ciência em insumo, o professor em executor.

A universidade pública é uma instituição de longo prazo. Ela cria gerações, constrói memória, cria continuidade. A Reforma tenta atacar essa dimensão temporal: o estado dependente não tolera o tempo da reflexão. Benjamin (1940) lembra que a modernidade rápida fragmenta o pensamento em pedaços. Essa aceleração gera a universidade fragmentada. Mas a crise também mostra possibilidades. Quijano (2000) e Santos (2005) sustentam que superar a dependência requer descolonização epistemológica ou restauração da autonomia do conhecimento. Contra a Reforma está salvar o tempo da ciência de um tempo de mercado, o pensamento livre do cálculo, o público das mercadorias. A destruição da universidade pública não é destino – é uma escolha. E cada escolha pode ser revertida através da reconstrução do comum.

¨      O debate sobre as emendas parlamentares nas universidades públicas. Por Rubia Cristina Wegner

As universidades têm função primordial de formar, treinar, produzir conhecimento, compartilhar e trocar com a comunidade e contribuir diretamente com o fomento da capacidade científica e tecnológica do país e com a elaboração de políticas públicas e sua avaliação. Possuem, ainda, um papel no desenvolvimento regional do país. Como destaca Xavier (2011), as universidades são espaços que podem concentrar soluções e confiança da sociedade. Anísio Teixeira, em 1968, na discussão sobre a reforma universitária, dirigiu-se à Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, para argumentar sobre a função social da universidade, afirmando: “A educação não é só um bem para o indivíduo, mas uma necessidade para a sociedade” (XAVIER, 2011). Estudos que buscam oferecer caminhos para respostas e análise crítica das emendas parlamentares e seus desdobramentos sobre o orçamento público são cada vez mais comuns – Oliveira (2019); Bomfim e Sandes-Freitas (2019); Guimarães (2020); Damasceno (2023); Souza (2022); Santos e Gasparini (2022). É possível identificar que boa parte deles parte da concepção gerencialista da administração pública e de gestora do déficit público com o apelo para a eficiência (‘saúde’) das contas públicas como alicerce. Uma pequena parte critica as emendas parlamentares como instrumento do orçamento, atribuindo a uma elevada participação do pagamento de juros da dívida o regime fiscal de controle de gastos primários, usado no Brasil – como Silva e Guimarães (2022) e Reis (2021).

Os critérios adotados pelos parlamentares para destinar os recursos das emendas também estão no centro do debate. No caso das universidades, pesam muitos questionamentos. As distorções no tamanho das emendas (em número e valores) são outro fator: quer dizer, algumas universidades são mais atrativas na captação de emendas do que outras. Fernandes e Oliveira (2023) concluem em seu estudo sobre a alocação das emendas parlamentares individuais, que se trata de uma questão de representantes de cada universidade buscarem parlamentares para sensibilizá-los das necessidades das instituições, seguindo-se sua base eleitoral. Araújo, Valente e Oliveira (2024), em sua análise das emendas parlamentares individuais para universidades federais rurais, concluem que não há uma correlação direta entre a destinação de recursos por emendas impositivas e o número de deputados federais por unidade federativa analisada. Assim, o tema “emendas parlamentares” tem ocupado espaço considerável nos últimos anos em agendas públicas – como mídia, parlamento e universidades. Não constituem novidade, sendo parte da Constituição Federal de 1988 (CF 1988), que promulgou o Poder Executivo como a autoridade maior pelo orçamento público (PISCITELLI, 2007; VASSELAI; MIGNOZZETTI, 2014). Ao mesmo tempo, a CF 1988 colocou o orçamento público como mecanismo também favorável para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do país e estabeleceu um conjunto de regras que ordenam seu processo decisório, a saber: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). Dessa forma, as emendas parlamentares funcionariam como instrumentos utilizados por deputados e senadores que indicam recursos orçamentários para atender a demandas específicas da sociedade. Até 2015, com a promulgação do “orçamento impositivo”, o Poder Executivo guardava autoridade para executar ou não a dotação de emendas sem que lhe fosse exigido fornecer uma justificativa ao Poder Legislativo (MENEZES; PEDERIVA, 2015). As emendas podem ser consideradas instrumentos pelos quais o Poder Legislativo pode modificar a alocação do orçamento – suprimindo, acrescentando ou alterando – rubricas do PLOA (FURIATI, 2019).

O chamado orçamento impositivo, ao permitir remanejamento de recursos públicos, alterou a relação entre os poderes da República, ao exigir que o Poder Executivo deve executar a programação orçamentária aprovada pelo Poder Legislativo via emendas parlamentares individuais ou impositivas (ARAÚJO; VALENTE; OLIVEIRA, 2024). Esses instrumentos estão sob um regramento considerável: CF 1988, Lei de Responsabilidade Fiscal 101/2000, Lei Complementar (LC 101/2000), Lei n. 4320/1964, Resolução n. 1/2006 do Congresso Nacional, além da LDO e LOA, portaria conjunta do Ministério da Economia e Secretaria do Governo da Presidência da República. Com as alterações na CF e legislações específicas, desde 2015 se tornou obrigatória a execução orçamentária das emendas, bem como seu valor mínimo (MENEZES; PEDERIVA, 2015; CAVALCANTI; TONELLI; CAETANO, 2022). Dados compilados por Cordeiro (2024) sobre a proporção do orçamento da União destinada a emendas parlamentares para o intervalo de 2015 a 2024, permitem afirmar que seus valores (corrigidos) saltaram de R$ 3,9 bilhões para R$ 48,3 bilhões. Essas alterações, de acordo com Faria (2023), induziram a uma mudança contundente no orçamento público federal: passagem de um regime de “dominância orçamentária do Poder Executivo” para o de “dominância orçamentária do Poder Legislativo”. O montante previsto no regramento para as emendas parlamentares tem comprometido o montante do orçamento para despesa discricionária (TOLLINI; BIJOS, 2022). Além disso, as emendas de comissão viriam sendo mais identificadas com emendas para as quais a transparência e a rastreabilidade estariam mais comprometidas.

Em 2024, o ministro Flávio Dino, do Superior Tribunal Federal (STF), após observar nos relatórios apresentados pela Controladoria Geral da União (CGU) o descumprimento de requisitos de transparência e rastreabilidade nas execuções de emendas parlamentares, deu início a medidas objetivas voltadas para execução orçamentária e transparência de emendas parlamentares – em 2014, é criada uma classificação orçamentária própria para as emendas, com primeiro identificador RP6, podendo ser ainda de relator, de comissão e individuais (“pix”) –, como a exigência, para as emendas individuais, de apresentação de um plano de trabalho prévio (CORDEIRO; VELOSO, 2024). Em dezembro de 2024, de um universo de 33 instituições do setor (ONGs e fundações de apoio), 13 foram listadas como impossibilitadas de receber repasses de emendas parlamentares por não atenderem exigências de transparência. Dentre essas instituições, estavam fundações de apoio da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Em abril de 2025, o ministro Flavio Dino suspendeu o repasse de emendas parlamentares para universidades estaduais e fundações de apoio de oito estados – a saber: Acre, Alagoas, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rondônia e Sergipe. Os efeitos das suspensões na liberação das dotações de todos os tipos de emendas parlamentares somados à não aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025 colocaram as universidades federais em situação de vulnerabilidade. E aquelas modificações do orçamento contribuíram para que mais emendas parlamentares individuais passassem a ser direcionadas para universidades.

A governança do orçamento se dá pelos formatos da interação entre Estado e sociedade, porém, no caso das emendas parlamentares, a governança se estabelece a partir da decisão de parlamentares em indicá-las para determinadas instituições (CAVALCANTI; TONELLI; CAETANO, 2024). O Ministério da Educação (MEC) tem buscado guardar sua posição de responsável pela regulação das emendas parlamentares para educação. Anualmente, o MEC lança uma cartilha orientativa para os parlamentares, em que são indicadas ações como: expansão, reestruturação, modernização das instituições federais de ensino superior; funcionamento das universidades federais; assistência aos estudantes de universidades federais; fomento às ações de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão (BRASIL, 2024). É fato que o financiamento público de universidades pode ser tomado como um dilema no mundo todo, que é acirrado em meio a orientações de austeridade fiscal. Lepori; Wagner-Schuster e Breitfuss-Loidl (2019) investigam o impacto das medidas de austeridade fiscal no financiamento do ensino superior na União Europeia (UE) para propor um modelo que combine atores privados e públicos. No Brasil, os desafios em torno do financiamento de universidades sempre existiram. Desde a CF (Constituição Federal) de 1988, a autonomia universitária esbarra na dotação orçamentária, mesmo que tenha sido nela definido (art. 212) que são destinados 18% da arrecadação da União para as universidades. Esse cenário piora a partir de 2016, quando as universidades passam a enfrentar uma “tesoura orçamentária” sob os regimes fiscais adversos, que agem centralmente nas despesas discricionárias, limitando ainda mais seus graus de autonomia universitária (prerrogativa constitucional) e, mais ainda, seu funcionamento e sua expansão. Dessa forma, buscar receitas próprias e complementar os recursos da Lei Orçamentária Anual (LOA) com emendas parlamentares tem sido quase que exigência da gestão de planejamento e execução orçamentária das universidades brasileiras com maior intensidade nos últimos anos.

É necessário pontuar que o arranjo institucional sobre as emendas parlamentares responde às restrições de gasto discricionário advindas do atual regime fiscal brasileiro. O Novo Arcabouço Fiscal (NAF) flexibilizou, em parte, o Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional n. 95/2016) – permitiu variações no crescimento das despesas seguindo o desempenho da arrecadação, retirando o congelamento absoluto do NRF (Brasil, 2023) –, mas mantém uma estrutura engessada para o gasto. Durante a pandemia da Covid-19, as regras do Teto (NRF) foram sistematicamente burladas, visto que o governo federal elevou muito o gasto federal, postergou o recebimento de impostos e somente com o auxílio emergencial gastou mais de R$ 230 bilhões em 2020 (PIMENTEL; CONCEIÇÃO, 2023), evidenciando que o Teto seria insustentável de ser mantido, pondo em dúvida os pressupostos teóricos que o embasaram (ANDRADE; RIBEIRO; CARDOZO, 2025).

Atividades de pesquisa e extensão têm cada vez mais sido dependentes desses recursos, assim como a assistência estudantil em volume maior do que despesas classificadas como de investimento (OLIVEIRA, 2019; FERNANDES; OLIVEIRA, 2016; ARAÚJO; VALENTE; OLIVEIRA, 2024). Algumas universidades – como a UnB (Universidade de Brasília) com o ‘Simplifica’, que é considerado uma inovação (D’ALESSANDRO, 2023) –, lançaram programas para aprofundar a captação de emendas parlamentares como parte das suas necessidades de funcionamento, ampliação, expansão e atuação. Muitos projetos de políticas públicas passam pelas universidades. Por exemplo, o Marco Legal da Inovação (Lei n. 10.973/2016) confere destaque também às universidades como atores estratégicos na consolidação do sistema nacional de inovação do país, ainda que sob uma perspectiva de que as universidades cumpram um papel de ofertista de infraestrutura e conhecimento especializado (RAUEN, 2016). O programa Nova Indústria Brasil, lançado no início de 2024, traça metas e objetivos que têm nas universidades elos essenciais. É necessário aprofundar o entendimento da destinação dos recursos de emendas parlamentares e seus efeitos na política de longo prazo da ciência, tecnologia e formação de quadros técnicos e críticos para que as universidades possam cumprir sua missão de transformação humana e social. No entanto, ao estarem cada vez mais com um orçamento de custeio e capital declinante – com base nos dados do Painel da ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) –, a execução de emendas parlamentares em universidades indica um caminho ambíguo sobre o seu papel na sua expansão e aprofundamento de ações de pesquisa voltadas para Ciência e Tecnologia (C&T). E as despesas discricionárias – como investimento público e gastos em C&T – são fundamentais para o processo de desenvolvimento econômico do país.

É fundamental estabelecer critérios, elementos ou eixos de comparação, evitando-se, assim, reduzi-la a mera descrição e sistematização de dados (Sartori, 1994 apud Gonzales, 2007). Mendes (2024) empregou o método comparativo para, a partir do levantamento da governança orçamentária em onze países da OCDE, traçar uma rota de compreensão das alternativas para o Brasil sob critérios como papel do Executivo e Legislativo no planejamento e execução orçamentária, papel da fiscalização e regulação, tetos definidos na alocação das despesas discricionárias e regramentos existentes para liberação de emendas parlamentares. Tollini e Bijos (2021) também empregam o método comparativo em estudo que buscou subsidiar uma estratégia de reformulação das emendas parlamentares no orçamento. Os dados divulgados em relatório pelo Observatório do Conhecimento apontaram que, em 2024, as emendas parlamentares somaram cerca de R$ 993 milhões em 2024 e as universidades, de modo geral, utilizam esses recursos para cobrir despesas básicas de custeio. O observatório avalia que o uso das emendas parlamentares para complementar o orçamento contribui para acentuar a fragilidade do financiamento da educação superior pública no país. Além disso, a distribuição desse recurso se baseia na articulação política de cada universidade com os parlamentares e a maior parte dessas emendas possui caráter obrigatório (impositivo). O papel das universidades públicas brasileiras não é e não pode se limitar aos dramas orçamentários. Seu potencial de influenciar e transformar a realidade não pode ficar dependente ou moldado por interesses eleitoreiros. É urgente retomar um projeto para o sistema público superior que seja consistente com um projeto de desenvolvimento para o Brasil.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Le Monde

 

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