sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Paulo Ferrareze Filho: ‘Um Clube do Bolinha chamado STF’

Lula subindo a rampa do Planalto parecia coisa de cinema. Ao lado dele iam mulheres negras, indígenas, crianças e até um vira-lata adotado. Depois do inferno que foram os anos Bolsonaro, com mais gente preta passando fome, mais indígenas massacrados e mais mulheres nas linhas de tiro e de soco, aquela presença da diversidade no espaço público parecia um alento. Um alento que se estampava ali, se encarnava ali, com todos aqueles corpos subalternizados reconduzindo Lula à Presidência.

A peça de propaganda da estreia, no entanto, foi sendo desmascarada com as indicações de Lula ao STF. Nas três oportunidades que teve, escolheu três homens, priorizando a lealdade como critério subjacente ao texto constitucional. Não é que a Constituição não permita ao presidente entupir o STF de homens brancos. Mas há razões que subjazem à normativa. E, se a lealdade é o critério de Lula, seria o caso de perguntar por que raios Lula não tem relações de lealdade com nenhuma mulher.

Em 134 anos de história, o STF contou com mais de 170 ministros e apenas 3 ministras. Nenhuma negra. A Alta Corte do país nunca teve um rosto que representasse a maioria da população, feita de mulheres e de pessoas negras. Trata-se da manutenção do abismo entre o nosso passado machista e escravocrata e o nosso presente supostamente democrático. Por isso, nosso Judiciário ainda apresenta uma minoria feminina que se reduz ainda mais na medida em que as instâncias de poder judicial aumentam.

Lula já disse que raça e gênero não são critérios para a escolha de ministros. Apesar de parecer neutra e técnica, essa posição é ideológica. A imparcialidade até a página 3 das instituições é o modo mais eficaz de perpetuar o machismo e o racismo. Logo, quando o presidente sustenta que “não vê cor ou gênero” nas indicações, reafirma a supremacia da branquitude, já que, materialmente, quem acaba dispondo do poder, com todo o viés performativo que uma cadeira no STF detém, são, outra vez, homens brancos.

A diversidade racial e de gênero não é perfumaria progressista, mas exigência técnica da democracia. Os protocolos para julgamento em perspectiva de gênero (CNJ, 2023) e de raça (CNJ, 2024) estão aí para confirmar em qual direção a banda democrática toca. Por isso, indicar Zanin, Dino e, agora, Messias é escancarar o teatro político. É colocar em cena essa inquietante contradição entre a propaganda da rampa e a tática política que explicita uma lealdade do tipo “Clube do Bolinha”. O que – convenhamos – sempre pega mal para quem usa a democracia como slogan.

Zanin é a mais estrondosa das obscenidades. Símbolo do compadrio, o mérito solitário dele é ser “amigo do rei”. Das três, é a mais antirrepublicana das indicações. Não apenas por ter sido advogado de Lula, mas, sobretudo, porque ele, diferentemente de Dino ou Messias, sequer cumpre o requisito constitucional de “notório saber jurídico”. Sem aprovação em concurso público, sem percurso acadêmico notável ou carreira institucional prévia, Zanin alcançou o mais alto posto judicial por puro filhotismo. Essa irresponsabilidade tem cobrado seu preço. Até aqui, o homem leal de Lula já votou contra o princípio da insignificância penal, contra a criminalização da LGBTfobia e não conheceu a ação que versava sobre violações dos direitos dos povos Guarani e Kaiowá. Isso sem contar a cara de azia.

Ao se negar a indicar uma mulher negra, Lula sustenta a fantasia da branquitude que vê corpos negros como animalescos e atrasados, em oposição aos brancos, que seriam mais aptos intelectualmente. Érico Andrade lembra, em seu livro Negritude sem identidade, que nunca esteve presente no projeto moderno europeu a ideia de que pessoas negras aspirassem às atividades do espírito. Lula torna-se, assim, um agente propagador do que Cida Bento chamou de pacto narcísico da branquitude, na medida em que promove a preservação de privilégios sociais e simbólicos de homens brancos. Lula ainda não percebeu que representatividade não é um adorno moral, mas a própria infraestrutura da democracia.

Como disse a ministra Cármen Lúcia, no julgamento que condenou o espantalho do fascismo brasileiro: “Nós, mulheres, ficamos 2 mil anos caladas; queremos ter o direito de falar”. A indicação de uma mulher negra ao STF não seria uma cortesia, não seria uma aposta desimplicada, mas uma questão técnica de democracias levadas a sério.

Qualquer coisa diferente disso e a impressão que fica é a de que Lula nos prega peças e governa para os homens brancos que, definitivamente, não o elegeram.

Mesmo assim, matreiro que é, Lula sabe que nós, progressistas, ainda assim estaremos com ele se, do outro lado, estivermos diante de um fascistoide qualquer.

•        Os clubes do Bolinha seguem firmes — do STF à literatura —  a igualdade de gênero ainda é promessa adiada

Para quem não lembra, o Clube do Bolinha, exclusivamente para meninos, aparece nas histórias em quadrinhos da Luluzinha. Os membros atendem pelos nomes de Bolinha, Carequinha, Alvinho, Zeca e Juca. O lema do clube? “Menina não entra.”

Luluzinha é a personagem que dá nome à história em quadrinhos criada pela cartunista Marjorie Henderson Buell, em 1935, que circulou no Brasil até 1996. Junto com a Turma da Mônica, Luluzinha fez parte da minha infância, mas hoje é o clube do Bolinha que me interessa. Quero falar dos clubes do Bolinha que proliferam e se mantêm, em pleno 2025.

O Supremo Tribunal Federal é um deles. Dos onze ministros, dez são homens. Durante cento e trinta e quatro anos de existência, o STF teve apenas três ministras mulheres. A primeira, Ellen Gracie, foi nomeada no ano 2000 e se aposentou em 2011. Cármen Lúcia, a única indicada por Lula, entrou em 2006 e permanece na Corte. Rosa Weber foi nomeada em 2011 e se aposentou em 2023.

Ao longo de seus três governos, o presidente Lula indicou dez ministros: nove homens e uma mulher. Dois deles, os ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino, no atual mandato. Ainda assim, Lula deve indicar o décimo ministro homem nos próximos dias — e o nome de uma mulher não foi sequer aventado. O critério que justificaria a escolha, “alguém da sua confiança”, me deixa intrigada. Não há, no círculo de relações institucionais e no campo de visão do presidente, mulheres confiáveis com notável saber jurídico?

O assunto foi comentado na imprensa sem a contundência merecida. Não encontrei, em nenhum lugar, uma reação proporcional ao escândalo que representa a candidata à vaga não ser, necessariamente, uma mulher. Até que a composição do tribunal esteja no mínimo equilibrada, as indicadas deveriam ser todas mulheres. Mas no clube do Bolinha menina não entra. Temos uma ministra por lá, está mais do que bom. E caso nenhum ministro antecipe a aposentadoria, ficaremos assim, dez a um, pelo menos até a saída de Luiz Fux, em abril de 2028, quando teremos a oportunidade de mudar o placar para um risível nove a dois.

Os finalistas do Prêmio Jabuti na categoria romance literário este ano, foram cinco homens. Será que é razoável admitir que todos os romances de autoras mulheres, submetidos à avaliação do júri são inferiores? Fica a pergunta.

Ainda no campo literário, na Academia Brasileira de Letras, das quarenta cadeiras, trinta e quatro estão ocupadas por homens. Há apenas seis mulheres. No seu discurso de posse, em 8 de agosto passado, Miriam Leitão disse o seguinte: “Somos tão poucas que quero falar o nome das que não estão mais aqui. Rachel (de Queiroz), Dinah (Silveira de Queiroz), Lygia (Fagundes Telles), Nélida (Piñon), Zélia (Gattai), Cleonice (Berardinelli), Heloísa (Teixeira). (…) A literatura feita por mulheres no Brasil é vasta, competente, sensível, oculta, poética, épica, lúdica”.

Outro dia, ouvi de um amigo querido que “praticamente não há cronistas mulheres”. Fiquei confusa. Mais triste do que confusa, na verdade. Pensei em Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Elsie Lessa e Ana Maria Machado, mas pensei também em Danuza Leão, Tati Bernardi, Fernanda Torres, Ruth de Aquino e Martha Batalha. E em outras menos conhecidas como esta que vos escreve. Nada do que todas nós escrevemos é digno de ser chamado de crônica? Menina também não entra nesse clube?

Venho de uma família repleta de mulheres. Cresci num ambiente dominado pelo feminino e nele aprendi a enxergar o mundo. Talvez por vir desse lugar e me reconhecer nesse universo, dar com um clube do Bolinha a cada esquina, normalizar a sua existência, além de cansaço, me causa espanto e indignação.

Nós, meninas, entramos onde a gente quiser.

•        Cármen Lúcia: a mulher séria no clube do bolinha. Por Nina Lemos

Quando o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros sete réus (incluindo ex-ministros e militares) começou, minhas expectativas eram altas. Afinal, não é todo dia que a gente vê quem tramou contra a democracia ser julgado e muito provavelmente condenado. Mas, confesso, algo ali tem me deixado com um gosto amargo na boca. E talvez o que me incomode seja o clima de "vestiário" e de "brodagem" entre homens e as piadinhas que soam tão deslocadas em um momento tão importante da nossa história.

Talvez isso aconteça porque estamos, de fato, diante de um "clube do bolinha", acostumado a privilégios e confraternizações com seus pares. Não sei se vocês repararam, já que isso é tão naturalizado que achamos normal, mas quase todos ali são homens e brancos: os acusados, os advogados e os ministros. Quase todos. Com exceção dela, a ministra Cármen Lúcia.

A magistrada é a ÚNICA mulher com posição de protagonismo no julgamento. E, coincidência ou não, ela tem sido a voz mais sensata dentro desse "clube do bolinha" que é o julgamento mais importante da nossa história recente. E, sem risos ou piadas, tem agido com a seriedade que a gente espera em um momento importante desses.

Até agora, Cármen já se destacou em dois momentos: no primeiro dia de julgamento, ela rebateu uma fala do advogado de Alexandre Ramagem, Paulo Cintra. A magistrada, que também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), corrigiu o advogado quando ele usou "processo eleitoral auditável" e "voto impresso" como sinônimos.

"Você repetiu como se fossem sinônimos, e não é. O processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil e passamos por uma auditoria – para que não fique a ideia para quem assiste de que ele não é auditável", afirmou a ministra.

No segundo dia do julgamento, o advogado Andrew Fernandes, que representa o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, enquanto fazia seu pronunciamento, afirmou várias vezes que seu cliente não tinha culpa na tentativa de golpe de Estado e que uma das razões disso seria o fato dele "ter tentado demover" Bolsonaro.

"Mas demover de quê?", perguntou Cármen. A resposta: "De qualquer medida de exceção." A pergunta simples fez com que o advogado dissesse em alto e bom som que Bolsonaro planejava, sim, "tomar medidas de exceção", um eufemismo para golpe de Estado ou outros ataques à democracia e ao Estado de Direito.

<><> Mansplaining

A explicação didática de Cármem Lúcia sobre o voto impresso fez com que ela fosse criticada e levasse "puxões de orelha" de juristas colunistas de jornal, que afirmaram, entre outras coisas, que a ministra teria "desrespeitado o advogado" por não ter falado no "momento adequado".

Não, não é coincidência que esse tipo de "mansplaining" (quando um homem explica o óbvio para uma mulher) caia em cima justamente da única mulher ministra do STF. Mulheres, mesmo em posição de grande poder como Cármen, sempre acabam criticadas por "mau comportamento".

<><> Piada de sogra

É curioso e sintomático, mas, logo depois de Cármen Lúcia fazer a pergunta inteligente e rápida que fez um advogado admitir que Bolsonaro pensava em "medidas extremas", o ministro Flávio Dino fez a seguinte observação para o advogado: "o seu telefone tocou, deve ser a sua sogra". E todos riram.

É inacreditável, mas durante o julgamento mais importante dos últimos tempos, ministros e advogados faziam as velhas e machistas piadas de sogras.

Dino se referia a uma fala do advogado, que citou a sogra durante a apresentação da defesa de seu cliente no julgamento. Após a citação, Alexandre de Moraes participou, divertido, do diálogo: "A sua sogra fala isso ou as palavras dela são um punhal?", ao que Andrew respondeu: "Não, não, não. Minha querida dona Zilda, tenho um amor profundo por ela."

É vergonhoso, mas esse diálogo aconteceu no meio desse julgamento tão importante, e não vi nenhum jurista homem e branco reclamando de "falta de decoro" ou "inadequação".

A própria Cármen Lúcia já comentou antes sobre esse machismo presente nas cortes brasileiras: "O Judiciário continua sendo muito preconceituoso, muito machista, que distingue, sim, homens e mulheres", disse em 2023. Na época, houve uma campanha para que a ministra Rosa Weber, que se aposentou, fosse substituída por uma mulher negra. Não aconteceu.

E estamos aqui, assistindo a um julgamento histórico e que pode, sim, ser um exemplo para o mundo inteiro. Mas que é feito, ainda, por um "clube do bolinha". Quantas piadas de sogra vamos ter que ouvir até o final do processo?

 

Fonte: Le Monde/Rascunho/DW Brasil

 

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