A sala de aula como espaço de resistência
Final
de ano… e a contagem regressiva já começou na escola. Nesta época do ano, o
cansaço se torna mais visível, ao mesmo tempo em que os corredores parecem
respirar com um pouco mais de alívio. Mas o tão esperado sossego é apenas
ilusório — sobretudo para os(as) docentes contratados(as). Não há garantias de
retorno no próximo ano.
Fazer
um bom trabalho não é suficiente quando o mérito é medido apenas por números.
Durante
todo o ano letivo, alunos e alunas são subordinados a variadas avaliações, e
nós, docentes, também. A educação, cada vez mais, parece girar em torno de
índices — e não de pessoas.
Ensinar,
hoje, é caminhar sobre um terreno movediço, onde cada passo parece exigir mais
fé do que certeza.
Sou
professora sob contrato temporário — e, talvez por isso, compreenda mais
intensamente o que é o “provisório”. Mas a verdade é que toda a docência é
provisória: cada aluno que passa, cada aula que se encerra, cada governo que
muda de rumo e reduz ainda mais o espaço das Humanas no currículo escolar.
Ainda
assim, sigo tentando resistir.
Há dias
em que entro na sala e sinto o peso do desalento pairando sobre as carteiras. O
olhar dos estudantes reflete a mesma exaustão que o meu. Tentamos sobreviver
num sistema que valoriza o resultado, não o processo; o número, não o sentido.
Mesmo assim, sigo apostando que cada conversa, cada provocação e cada silêncio
compartilhado ainda podem gerar algum tipo de transformação. Talvez pequena,
quase invisível — mas real.
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1. O chão movediço da docência contemporânea
A
educação brasileira vive uma contradição profunda: é cobrada como salvação
nacional, mas é tratada como despesa. Dessa forma, precariza-se ano a ano o
trabalho docente. E essa constante insegurança à qual estão sujeitos todos e
todas que trabalham na educação, somada à fragmentação das políticas
educacionais, corroem o sentido de missão que antes nos movia. Assim, o que
deveria ser um projeto coletivo de emancipação tornou-se, para muitos, apenas
um emprego de sobrevivência.
Anísio
Teixeira, ainda no século XX, já denunciava que sem uma escola pública forte,
não há democracia verdadeira. Sua defesa da educação integral e laica era, no
fundo, um chamado à dignidade nacional. Hoje, ao ver professores e professoras
lutando por contratos temporários e trabalhando em duas ou até três escolas
para que possam ganhar um salário que lhes proporcione o mínimo de dignidade,
sinto o peso de sua advertência.
Paulo
Freire, por sua vez, nos lembra que a esperança não é cruzar os braços e
esperar, mas se levantar e lutar. E essa esperança — do verbo esperançar — que
ainda me faz permanecer. Sigo nesse caminho onde ensinar se tornou
verdadeiramente um ato de resistência: um gesto ético diante da barbárie e da
indiferença.
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2. O corpo do educador como território de luta
Hoje em
dia, ser professora temporária é viver em constante suspensão: não pertencemos
totalmente à escola, e ela também não parece nos pertencer. Mas,
paradoxalmente, é nesse estado de incerteza que percebi a força do
pertencimento simbólico — o que nasce do vínculo com os alunos e alunas, e não
do contrato com o Estado.
É nesse
espaço, que lanço provocações, mesmo quando o silêncio da sala ecoa o desânimo
que também me atravessa. Pois apesar do meu pouco tempo na área educacional,
meu corpo já carrega cicatrizes invisíveis: a sobrecarga, a instabilidade, o
cansaço de ensinar em tempos de descrença — e, sobretudo, em tempos de ataques
constantes aos profissionais da educação, em especial professores e professoras
de Humanas. Somos acusados(as) de doutrinar, quando, na verdade, o que vejo é
um corpo docente que tem, cada vez mais, se submetido, sem crítica, à lógica
mercadológica que tomou a educação de assalto. Não é para menos que muitas
escolas — públicas! — passaram a chamar alunos e alunas de clientes.
Esse
vocabulário, que tem sido cada vez mais verbalizado pelos(as) docentes tão
acriticamente, revela a vitória simbólica do capital sobre o sentido da escola.
Quando o estudante vira cliente, o conhecimento se transforma em produto, e o
professor em mero prestador de serviço.
Bell
hooks chamaria isso de domesticação do espírito: o momento em que o medo e o
cansaço nos fazem confundir submissão com profissionalismo. E Boaventura de
Sousa Santos diria que vivemos sob uma “epistemologia da cegueira” — uma
aceitação passiva das injustiças e absurdos diários como se fossem naturais.
Mas não
são!
Nada
disso é natural.
A
docência ainda é — e precisa continuar sendo — território de luta, lugar de
conflito, de reinvenção e de sentido.
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3. A sala de aula como microcosmo de resistência
Em
sala, tento criar brechas: rodas de conversa, dramatizações, provocações que
convidem à escuta e à reconstrução de sentido.
São
nesses momentos que sinto o que Vygotsky chamou de Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP): o espaço entre o que os alunos e alunas já sabem e o que podem
vir a saber, se houver diálogo, confiança e mediação. É também o espaço entre o
que eu sou e o que ainda posso me tornar como professora.
Ao ler
James V. Wertsch, percebo que essa ponte se alarga: a Aproximação Sociocultural
que ele propõe nos lembra que o pensamento é sempre mediado pela cultura e que
ensinar é criar contextos onde o aprender se torna uma prática social.
Consequentemente, não se trata apenas de transmitir saberes, mas de habitar
linguagens, narrativas, símbolos e memórias coletivas. O saber não surge de
forma isolada, mas do coletivo, da troca: muitas vezes, um ajuda o outro a
avançar, a lembrar, a interpretar.
A
educadora Nilse Mascellani dizia que o aprender deve ser experiência sensível,
poética, criadora. E José Pacheco, com sua pedagogia das comunidades de
aprendizagem, reafirma que a escola não é prédio, mas encontro.
Quando
misturo teatro com debate, quando provoco os estudantes a reconstruírem o que
foi dito na aula anterior, estou, ainda que de forma bastante limitada ao tempo
dentro da sala de aula, ecoando todos eles: Freire, Vygotsky, Wertsch, Nilse e
Pacheco — e também ecoando a mim mesma, naquilo que ainda acredito ser
possível.
Nesses
momentos, a sala de aula se torna, então, microcosmo de resistência, onde o
humano se reinscreve apesar do caos burocrático e de todas as limitações
impostas. Ali, entre risos, dúvidas e olhares perdidos, a esperança ainda
respira.
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4. Contra a pedagogia tecnocrática: o chamado à rebeldia
Vivemos
sob o império da pedagogia tecnocrática, que transforma a educação em
mercadoria e os professores(as) em meros executores de planilhas. Querem nos
convencer que ensinar é somente cumprir metas. Mas não há algoritmo capaz de
substituir o brilho de um olhar quando alguém finalmente compreende o que
parecia impossível.
Dermeval
Saviani já alertava que a pedagogia do capital reduz a formação humana à
capacitação técnica. E Anísio Teixeira sonhava com uma escola pública que
libertasse, não que domesticasse.
Essa
domesticação é o que o neoliberalismo faz conosco: tenta arrancar da escola o
que ela tem de mais humano — o encontro, o diálogo, o erro, o tempo do pensar.
Por
isso, reafirmo: ensinar é um ato de desobediência amorosa. É dizer “não” ao
automatismo, “sim” à dúvida, “sim” à criação.
A
educação não cabe nas metas de desempenho porque o pensamento não se mede — ele
floresce.
E
quando tudo parece ruir —quando as humanas são reduzidas, quando colegas se
acomodam e se calam —, procuro lembrar que a resistência começa na palavra, na
arte, na conversa, no gesto de não desistir.
Isso
não significa que eu não tenha dúvidas… muitas dúvidas. Mas talvez sejam elas
que ainda me mantêm em movimento, “esperançando”. Porque esperançar: é verbo, é
ação, como apontava Freire.
A
escola não é ruína: é trincheira! E cada aula que insisto em dar é, em si, um
ato político.
Sigo,
dessa forma, com a certeza de que a docência é resistência, e resistir é a
forma mais bela de ensinar.
“Vem,
vamos embora, que esperar não é saber.
Quem
sabe faz a hora, não espera acontecer.” — Geraldo Vandré
Fonte:
Por Janethe Fontes, em Outras Palavras

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