Dez
anos após Mariana, quilombolas do Rio Doce ainda sofrem com água contaminada
Em
frente à casa de Lucimar Dias dos Santos Silva, um rastro amarelo mancha o azul
da caixa d’água. Uma cor de tonalidade similar ou mais intensa às vezes sai de
sua torneira ou do poço d’água do vizinho. Lucimar, conhecida como Preta,
nasceu e cresceu em Povoação, um distrito do município de Linhares (Espírito
Santo), mais precisamente na comunidade de Brejo Grande. Desde que se lembra,
Preta tem visto enchentes em Brejo Grande alagarem a estrada, invadir casas e
isolar moradores. Mas, após o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão,
ocorrida em 2015 em Mariana (MG), um novo problema com a água tem abalado sua
vida e de outros quilombolas ao longo da foz do Rio Doce. Povoação fica a 37 km
da zona urbana de Linhares e o acesso ao distrito é apenas por estrada de
terra. Localizada ao norte da foz do Rio Doce, a região também é banhada por 24
lagoas. O último censo do Instituto Brasileiro de Ciência e Geografia (IBGE)
indicou que em Povoação vivem 3.274 pessoas, e um relatório feito pela
Comunidade Tradicional Quilombola de Povoação diz que, dessas, cerca de 1.800
são quilombolas.
Em
Brejo Grande, a visão de vastos campos é cortada de quando em quando por alguma
casa e, nos dias ensolarados, o sol bate sobre a terra sem obstáculos. Uma
estrada esburacada leva até a casa de Preta, onde de uma ponta se vê um
aglomerado de árvores e, da outra, grama a perder de vista. Algumas árvores no
quintal fornecem uma sombra e, na horta, sobrevive um pé de boldo e outro de
camomila. O restante das plantas já não brota desde a chegada da lama, diz
Lucimar.
A água
do poço artesiano que sai da torneira e do chuveiro é salgada. Por vezes, tem
mau cheiro e deixa uma sensação oleosa sobre a pele. Lucimar associa os banhos
que toma com essa água à coceira e à irritação que costuma sentir logo após.
Para ingestão, a família de Preta prefere pegar água no poço do vizinho, que
pelo menos não tem o mau cheiro ou o gosto salgado, mas pode vir amarelada.
Comprar água mineral não é uma opção viável, pela falta de dinheiro. “Ou a
gente compra água ou a gente passa fome”, explica. Com o desastre de Mariana e
a consequente contaminação nas águas da foz do Rio Doce, ela perdeu seu ofício
de pescadora e passou a depender do dinheiro trazido pelo marido, que trabalha
por um sistema de diárias nas fazendas da região.
Ao se
romper, a barragem de Fundão, de propriedade da Samarco (que tem como
acionistas a Vale S.A. e a BHP Billiton), carregou 50 milhões de metros cúbicos
de rejeitos de mineração, compostos, principalmente, por óxido de ferro e
sílica. Mas um laudo técnico do Ibama sobre o desastre diz que a força e o
volume da lama “provavelmente revolveu e colocou em suspensão os sedimentos de
fundo dos cursos d’água afetados, que pelo histórico de uso e relatos na
literatura já continham metais pesados”. Em 21 de novembro de 2015, duas
semanas após o rompimento da barragem, a lama chegou finalmente à foz do Rio
Doce, em Linhares, a 600 km de distância, afetando os dois remanescentes de
quilombos da região: Degredo e Povoação. O Acordo de Repactuação, assinado pela
Samarco em outubro de 2024, reconheceu ambas as comunidades como atingidas. O
acordo prevê o repasse de R$ 488.533.500,00 para Povoação e de R$ 98.615.670,00
para Degredo, para compensação e reparação dos eventuais danos coletivos
causados pelo desastre em Mariana.
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Transtornos no fornecimento de água
Em
Degredo, a 20 km da foz do Rio Doce, a população também enfrenta problemas de
qualidade da água, mas recebe água mineral da Samarco desde 2018. São 15 litros
por dia por pessoa, conforme decidido pelo Comitê Interfederativo (CIF), que
até o Acordo de Repactuação era responsável por orientar as medidas de
reparação pela Samarco. Mas a quantidade é insuficiente para realizar todas as
atividades do dia, e é necessário recorrer à água da casa, que – assim como no
caso de Povoação – costuma vir de poços artesianos construídos pela própria
população. Uma nota técnica da Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades
(CT-IPCT), que fez parte do CIF, justificou a demanda com base na
“impropriedade da água que sai da torneira de suas casas para consumo humano”.
Na ocasião, a Samarco argumentou que a má qualidade da água em Degredo não
guardava relação com o desastre de Mariana, enquanto os moradores relatavam que
alterações na cor da água, bem como efeitos negativos pelo uso dela na
população, começaram a partir do desastre de Mariana. Apesar de não negar a
determinação do CIF, que em um primeiro momento havia definido o fornecimento
de 5 litros de água por pessoa por dia, a Fundação Renova — responsável por
gerenciar a reparação dos danos causados pelo rompimento — não iniciou o
abastecimento no prazo estabelecido pelo comitê, que, em resposta, instituiu
uma multa de R$ 280 mil à fundação. Pleiteando o fim da multa e o fornecimento
de apenas 5 litros de água por pessoa por dia, ao invés de 15, a Samarco
conseguiu em processo no Tribunal Federal o fim da obrigação de prover água à
comunidade. Até que, em setembro de 2022, uma decisão do Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (TRF-1) estabeleceu o retorno dessa obrigação à Fundação
Renova, justificando que “o princípio da precaução ensina a necessidade de se
fazer frente aos riscos e, mesmo na ausência de certeza científica, exige uma
providência antecipada que coloque em risco a saúde humana pelo consumo de água
imprópria, sendo desnecessária prova contundente quanto ao aspecto”. A
repactuação de 2024 extinguiu o processo e estabeleceu que a Samarco forneça
água para consumo humano até implementar o sistema de abastecimento de água em
Degredo.
Certificada
como remanescente de quilombo apenas em agosto do ano passado, Povoação ficou
de fora de qualquer discussão sobre fornecimento de água mineral aos
quilombolas do distrito. Ao reconhecer a comunidade como atingida pelo desastre
em outubro de 2024, o CIF havia determinado também que a Fundação Renova
iniciasse de forma imediata o fornecimento de água à população para consumo.
Mas o comitê foi extinto pouco tempo depois com a assinatura do Acordo de
Repactuação.
Povoação
conta com atendimento público de serviço de água, porém Walkimar Bispo
Rodrigues, liderança que encabeçou o processo de certificação como remanescente
de quilombo, diz que o abastecimento se restringe à sede de Povoação e não
alcança os outros pontos. Moradores do distrito visitados pela Mongabay
confirmam que utilizam água de poços artesianos ou compram água mineral. Em
Degredo, a solução definitiva consiste em um Sistema de Abastecimento de Água
(SAA) baseado em poços profundos, cuja construção está prevista para começar no
final deste ano e acabar em 2027. Depois que a obra for concluída, o sistema
ficará sob operação do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Linhares.
Em
dezembro de 2018, o CIF determinou que a Fundação Renova apresentasse uma
solução definitiva para a questão da água em Degredo. O processo, porém, foi
marcado pela morosidade, analisa uma nota técnica do CT-IPCT. O prazo para a
entrega do projeto básico, que traria o planejamento da obra, estava previsto
para 14 de junho de 2019 e foi adiado sucessivamente até julho de 2020. Até
que, em abril de 2022, o então prefeito de Linhares, Bruno Marianelli, e o
presidente da Fundação Renova, André de Freitas, assinaram o Acordo de
Cooperação para execução das obras do SAA com um investimento de R$ 10 milhões
da Renova. Uma vez concluída essa etapa, tiveram início as tratativas entre a
Fundação Renova e o SAAE. O tempo levado para o andamento do sistema de abastecimento
resultou em, abril de 2024, em uma deliberação que impunha prazos para que a
Renova mostrasse o andamento do processo. A instalação do sistema em Degredo
também está previsto pelo Acordo de Repactuação. O Ministério Público do
Espírito Santo (MPES) esclarece que, no caso de Povoação, a Samarco deve
concluir a elaboração dos projetos de engenharia necessários para realizar
melhorias na Estação de Tratamento de Água (ETA), construir uma captação
alternativa para a ETA e implantar uma Unidade de Tratamento e Resíduos. Os
recursos para as três obras devem ser repassados ao município.
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A qualidade da água em Degredo e Povoação
O
Estudo do Componente Quilombola da Comunidade Remanescente do Quilombo de
Degredo (ECQ Degredo), de março de 2018, feito pela consultoria Herkenhoff
& Prates, realizou análise da água do Rio Ipiranga — que está dentro da
comunidade —, da água subterrânea que chega até os poços artesianos e de lagoas
da região. A análise constatou a presença de ferro bem acima do normal, mas
destacou que as causas para isso podem ser várias. A pressão ambiental na
região é anterior ao desastre de Mariana e envolve mineração ao longo do Rio
Doce e fazendas. O documento ressalta que faltam dados anteriores ao rompimento
para comparação e que outros elementos associados a rejeito de mineração, como
manganês e cromo, foram identificados em baixa quantidade. Depois, conclui que
o desastre foi um agravante para a má qualidade da água em Degredo, mas não o
único fator. Uma análise apresentada pela Fundação Renova em uma reunião da
CT-IPCT de janeiro de 2019 indicou que, dos 128 poços em Degredo dos quais
amostras foram coletadas, 34 estavam contaminados com arsênio. Outra análise,
dessa vez do Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana em Localidades
Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão, feita pela Ambios Engenharia e
Processos Ltda, os níveis de chumbo estavam acima dos limites estabelecidos
pelo Ministério da Saúde na água subterrânea para consumo humano. O estudo
também detectou excesso de ferro e manganês na água subterrânea de Degredo, bem
como de Povoação. O ferro e o manganês são fundamentais para o funcionamento do
corpo humano, mas em quantidades excessivas podem trazer malefícios. O ferro
prejudica o estômago e os intestinos e causa vômito, náusea e dor abdominal. Já
o manganês em excesso tende a se acumular no pâncreas, fígado, ossos, rins e,
principalmente, no cérebro. Há casos de excesso de manganês associados a
cirrose hepática e sintomas semelhantes à doença de Parkinson. “As conclusões e
recomendações em relação ao perigo à saúde para as populações expostas podem
parecer extremamente conservadoras, dependendo dos interesses dos diferentes
grupos envolvidos no caso, porque podem superestimar o risco. Porém, deve-se
considerar que essas populações estão expostas a um ou mais poluentes, por
várias vias, durante períodos distintos de tempo”, afirma o estudo. Em
Povoação, a análise indicou presença de antimônio e cádmio na poeira domiciliar
e de cádmio no solo superficial, ambos acima dos valores de referência do
Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
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Metais pesados no rio e no mar
Os
dados de contaminação do Rio Doce e de sua área costeira também tendem a
variar. Um estudo publicado em 2023 concluiu que a região da foz do Rio Doce se
recuperou do desastre pouco menos de dois anos após o rompimento da barragem.
O
trabalho – que contou com apoio de uma das acionistas da Samarco, a BHP
Billiton – utilizou dados do Programa de Monitoramento Quali-quantitativo
Sistemático de Água e Sedimento (PMQQS), um dos programas de realização
obrigatória pela Samarco que monitora de forma sistemática a qualidade da água
ao longo da bacia do Rio Doce. O acompanhamento inclui amostras ao longo do
rio, da zona marinha e estuarina, bem como de lagoas, com análise de 100
parâmetros físicos, químicos e biológicos. Os autores do artigo, na falta de
medições históricas da qualidade do Rio Doce, compararam dados do rio com o de
outros sistemas fluviais costeiros próximos a ele. De acordo com a pesquisa, a
partir de outubro de 2017, a qualidade da água nas áreas impactadas pela lama
de rejeitos já era indistinguível das não impactadas.
Mesmo
nos períodos anteriores a essa data, as amostras que excediam o limite
estabelecido para metais pesados pelo Conama eram a exceção e não tinham grande
diferença dos valores estabelecidos pelo órgão, diz o estudo. Os pesquisadores
concluem que os efeitos considerados efêmeros do rompimento não comprometeram a
qualidade da água marinha. Outro artigo a respeito do Rio Doce indica que a
qualidade da água da bacia tem melhorado desde o rompimento da barragem, mas
que ainda apresenta contaminação prejudicial à vida. Publicado neste ano na
revista Environmental Pollution, a pesquisa não utilizou como indicador a água,
e sim organismos de diferentes posições na cadeia alimentar. Os dados desse
estudo vieram de outra atividade prevista pelo Termo de Transação e Ajustamento
de Conduta (TTAC), o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática
(PMBA), que avalia o impacto do rompimento sobre as espécies do ecossistema.
Na
pesquisa, os autores usaram indicadores do PMBA que partiam da coleta de água e
sedimento em diferentes pontos da bacia do Rio Doce e da observação da resposta
dos organismos de laboratório em contato com essas amostras. A partir disso, se
definiu a toxicidade, dividida entre os níveis: não tóxico, um pouco tóxico,
moderadamente tóxico, tóxico e altamente tóxico. O estudo se baseou em dez
coletas de material que ocorreram entre 2018 e 2023. Nas duas últimas coletas
nas regiões costeiras e próximas à foz do rio, os resultados variam entre um
pouco tóxico e não tóxico. Nas primeiras coletas, as análises haviam indicado
ambientes moderadamente tóxico ou tóxico. Para a primeira autora do artigo,
Camila Martins, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Fisiológicas da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), o trabalho não
aponta para um Rio Doce igual àquele de antes do desastre, e sim que houve uma
redução de toxicidade de uma coleta para outra. Em entrevista à Mongabay, ela
destacou também que, mesmo a toxicidade baixa costuma apresentar efeitos
agressivos nos organismos, com danos no crescimento, reprodução,
desenvolvimento e fertilidade.
No
último relatório do PMBA, programa que contempla apenas a porção capixaba da
bacia do Rio Doce e a faixa marítima que vai de Guarapari (ES) até Abrolhos
(BA), consta que os corpos d’água sofrem pressão da mineração, da urbanização e
da agricultura, o que foi intensificado pelo rompimento da barragem,
“resultando em alterações substanciais nos parâmetros abióticos e bióticos dos
ecossistemas terrestres e aquáticos”. A foz do rio apresentou os maiores níveis
de toxicidade, em especial nos sedimentos. Adalto Bianchini, que também faz
parte do PMBA e é professor da Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas da FURG,
explica que, por viverem um ambiente de transição entre água doce e salgada, os
organismos que habitam a foz já vivem sob estresses naturais. Somado a isso, o
ambiente tende a viver em constante recontaminação. “O rio tenta colocar os
contaminantes no mar, porque obviamente todo rio corre para o mar. Só que o
oceano também tem a tendência de agir sobre a região costeira. Então, ele
também tem essa tendência de devolver esses contaminantes para essa região. É
meio que um fluxo de vai e vem”, explica. Essa mesma água do mar também entra,
em parte, no subterrâneo. Para Bianchini e Martins, se basear apenas na
composição química para avaliar a qualidade da água é insuficiente, já que os
valores podem variar bastante em um curto espaço de tempo e não mostram a
resposta dos organismos a ela. Nos períodos de seca, por exemplo, os
contaminantes, como metais pesados que não se degradam, tendem a se misturar ao
sedimento, mas, quando a chuva cai, eles são suspensos e se diluem na água.
Em
relação ao artigo que usou como base o PMQQS, aquele apoiado pela BHP Billiton,
Bianchini critica a comparação da composição química da bacia do Rio Doce com a
de outros rios. “As propriedades físico-químicas de uma bacia são diferentes da
outra, porque o solo é diferente, o material biológico que cresce é diferente.”
Segundo o professor, elementos como a redução de toxicidade apresentada pelo
artigo de Martins e a redução do impacto à medida que se afasta da foz – onde
há concentração dos contaminantes – evidenciam o nexo causal entre o desastre
de Mariana e a contaminação da água. Questionada a respeito da qualidade da
água do Rio Doce, a Agência Estadual de Recursos Hídricos do Espírito Santo
(AGERH) disse que o governo do estado tem acompanhado os dados do PMQQS, “que
demonstram que a qualidade da água do rio Doce varia de acordo com os períodos
secos ou chuvosos, ao longo dos anos, não sendo possível afirmar que os
parâmetros se equiparam aos valores encontrados no período anterior ao
rompimento da barragem de Fundão”. A agência também destacou que o Rio Doce,
por ser de domínio federal, está sob competência da Agência Nacional de Águas
(ANA), que não respondeu aos questionamentos da Mongabay.
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Sem peixe
Desde
fevereiro de 2018, após decisão judicial, a pesca está proibida até, pelo
menos, 25 metros de profundidade na faixa que vai de Aracruz, também na região
da foz do Rio Doce, até a costa de Degredo. A atividade poderá retornar no mar
dois anos após o Acordo de Repactuação. Segundo o ECQ de Degredo, das 147
unidades de renda — parâmetro utilizado pelo estudo e que leva em consideração
diferentes provedores de renda em uma mesma casa — na comunidade, 95,2% (o
equivalente a 140) tinham alguém que pescava antes do rompimento da barragem.Em
132 unidades de renda, a pesca servia para consumo próprio e, em 117, para
vendas. O ECQ avalia que, em relação à água, o maior impacto do desastre foi a
impossibilidade de pescar. Mesmo os peixes capturados antes da chegada da lama
sofreram desvalorização e tiveram de ser vendidos a preços mais baixos. Para
compensar a perda financeira em Degredo e Povoação, os pescadores têm direito
ao AFE (Auxílio Financeiro Emergencial). Destinado àqueles que tiveram a renda
impactada em função do desastre, o auxílio corresponde a um salário mínimo por
mês acrescido de 20% por dependente. Os quilombolas, porém, afirmam que o
auxílio é insuficiente para compensar os ganhos que vinham da pesca antes da
lama. Apesar de ainda não haver uma pesquisa similar para Povoação, a
comunidade também se baseava fortemente na pesca.
Em
Degredo, na casa de Pedro Costa, mestre cultural da Associação dos Pescadores e
Extrativistas e Remanescentes do Quilombo de Degredo (Asperqd), as redes e
utensílios de pesca permanecem penduradas nas paredes e árvores. O homem, de
óculos retangulares, bigode escuro e mãos calejadas, não poupa palavras ao
narrar histórias da comunidade. Ele é neto de Atalino Leite, patriarca de
Degredo. Segundo o ECQ, que se baseou no relato de moradores, Atalino chegou
até a atual comunidade em uma jangada em cerca de 1800 após fugir de uma
fazenda em São Mateus. A cidade, que por décadas fora o polo econômico do norte
do Espírito Santo, na primeira metade do século 19 tinha uma população
constituída 50% por negros escravizados.
Para
Pedro, a chegada da lama foi “a coisa mais triste que já aconteceu na nossa
vida”. Ele aprendeu a fazer as redes com a mãe e a pescar com os irmãos mais
velhos aos 13 anos. Depois, passou a seus filhos o que sabia. A proibição de
pesca, porém, tem dificultado que esses conhecimentos sejam transmitidos às
novas gerações. O mestre cultural explica que, para ele, que utiliza um bote
motorizado, pescar só a partir de 25 metros de profundidade é impraticável.
“[Essa profundidade] está mais ou menos 3 km de mar aberto. Aí você sai numa
altura dessa, chega lá, vai que dá um problema no motor e é mar aberto?”, diz.
O consumo do peixe também diminuiu. O alimento passou a ser consumido de meses
em meses. O questionário do ECQ de Degredo indica que, antes, 47% das unidades
de renda consumiam peixes com frequência, toda semana. Após a lama, não houve
resposta de consumo frequente.
Marcilene
Penha de Jesus, uma das lideranças locais que participou da criação da
Assessoria Técnica Independente da Asperqd, e nora de Pedro, diz que a
comunidade sabe dos riscos da ingestão do pescado, mas que banir esse hábito
por completo é inviável. Logo após a lama, ela, que não seguia o ofício da
pesca, “não queria saber de um peixe dentro de casa”, mas com o tempo foi
entendendo a dor dos pescadores. “Trabalhando na área, ouvindo as pessoas, a
gente vai entendendo que a cultura de você comer um peixe é tão forte que é
muito difícil [parar]”, conta.
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Um óleo que fica na terra
Para
Elizabete Leite Monteiro, moradora de Brejo Grande, em Povoação, a agricultura
costumava ser uma forma de complementar a renda que obtinha enquanto
seringueira. De seu sítio, ela tirava da terra para comercializar farinha,
feijão, polpa de frutas, abóbora e quiabo, e vendia os produtos de porta em
porta na comunidade.
Ela
deixou o trabalho de carteira assinada na seringa em setembro de 2023, com a
esperança de poder se dedicar apenas ao seu sítio, mas acabou dependendo da
renda do AFE. Atualmente, vende de vez em quando cacau. “Hoje em dia, [quando]
você vai molhar a sua plantação, a água tem tipo um óleo e fica na terra”,
relata. O solo já não é o mesmo. Os pés de graviola que seu pai plantara
morreram, e os esforços de Elizabete para fazer com que outros nascessem foi
infrutífero. As bananeiras enfraqueceram e os pés de maracujá têm sido mantidos
vivos com muita dificuldade. A impressão é de que mesmo as plantas que
sobrevivem costumam produzir de forma muito mais lenta. “[Você] planta um
feijão, fica a coisa mais linda, quando começa a florar, começa a murchar, Você
puxa o pé de feijão, o pé de feijão simplesmente está morrendo debaixo da
terra. É de baixo para cima”, relata. O
problema parece ser a água da torneira, ela diz ao se lembrar de um chuchu que
crescia enquanto recebia apenas água da chuva. Quando o período chuvoso acabou,
porém, Elizabete precisou irrigá-lo com a água de casa e a planta acabou
morrendo.
A perda
financeira se traduz na necessidade de comprar frutas e vegetais que antes ela
obtinha em seu próprio quintal, em meio a um cenário já de redução da renda.
Elizabete agora tem que comprar o feijão, a abóbora e o quiabo.
As
dificuldades com a terra também têm prejudicado a manifestação da cultura e do
saber popular, dado que algumas ervas medicinais, cujo uso já havia sido
reduzido pela ampliação do consumo de remédios industrializados, já não crescem
como antes da chegada da lama. A efetividade dessas plantas contra doenças
detêm a confiança das comunidades de Degredo e Povoação, onde alguns moradores
são capazes de listar para que cada uma delas serve: joão-brandim para dor de dente, folha de
maracujá para dor de cabeça e chá de cipó-cravo para homens e mulheres com
problemas sexuais. Em Degredo, 56% das unidades de renda cultivam essas plantas
para preparar chás, garrafadas e banhos. Desde a lama, a criação de abelhas
também não tem sido a mesma. Pedro Costa, de Degredo, era conhecido por Pedro
do Mel, em função do produto que vendia. A apicultura é desenvolvida por 14,2%
das unidades de renda de Degredo, mas Pedro diz que a água também trouxe danos
às abelhas. Ele trabalha há 23 anos como apicultura. Antes da lama, tinha 85
colmeias; hoje, são 16. Parte das abelhas morreu e parte emigrou, “porque os
animais também têm noção de alguma coisa que vai prejudicar eles”. Pedro lembra
de quando, após ficar desempregado ainda antes do desastre de Mariana ocorrer,
conseguiu se manter apenas com as vendas do mel. A notícia da qualidade do mel
se espalhou, e o mestre cultural não precisava sair de casa para vender os
produtos; os fregueses vinham de fora da comunidade. Em Degredo, as famílias
também costumam criar animais geralmente para consumo próprio. O ECQ indica que
60,8% delas mantêm criação de aves; 30,4%; de porco e 23,7% de bovinos. Pedro
também costumava ter algumas galinhas, porém os ovos começaram a vir estragados
e as vacas em seu quintal começaram a abortar as crias.
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A relação entre arsênio e coceira
Em
comum entre quase todos os relatos é a sensação de coceira após o banho com a
água encanada, ao que os moradores atribuem a contaminação da água após a lama.
Há também problemas de estômago e mal-estar. Marcilene conta que crianças e
idosos são mais vulneráveis aos problemas de pele. Ela utiliza a água recebida
da Samarco para dar banho em seu filho de dois anos. Mas nos momentos em que se
distrai, e a criança entra em contato com a água da torneira, costumam aparecer
na alguns caroços. A coordenadora interina da Assessoria Técnica Independente
Asperqd, em Degredo, Luciana Andrade Jorge Oliveira diz que faltam estudos para
analisar a relação entre o desastre e as condições de saúde da população e que
o assunto tem sido negligenciado. Um dos poucos trabalhos nesse sentido foi
realizado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Ribeirão
Preto (FCFRP) da USP, cujos pesquisadores coletaram em 2017 amostras de cabelo,
sangue e urina de moradores da foz do Rio Doce e de uma região na cidade de São
Mateus, no Espírito Santo. Eles também analisaram a água, os alimentos e os
pecados consumidos nas regiões. Degredo não entrou na coleta, mas o distrito de
Povoação, sim. Segundo a tese de doutorado de Ana Carolina Paulelli, realizada
com dados dessa coleta, 99% das 300 amostras de sangue apresentaram arsênio
quando comparadas a biomonitoramentos em outras regiões brasileiras. Na urina,
essa porcentagem foi de 19% e, nos casos mais extremos, chegou a valores 93
vezes maiores do que os de referência. Além disso, 47% das amostras de urina
tinham níquel acima dos valores obtidos por demais monitoramentos. As altas
concentrações de arsênio e níquel são conhecidas por causar problemas de pele,
diz o trabalho, que registrou, ao realizar 315 questionários, uma incidência de
36% de problemas cutâneos. O arsênio é potencialmente tóxico e não cumpre
função no organismo. Em longo prazo, a substância está associada a câncer de
pele, alterações no pigmento da pele, problemas na gravidez e mortalidade
infantil.
As
amostras de alimentos indicaram uma concentração de arsênio em peixes,
crustáceos e moluscos ingeridos pela população acima do preconizado pela
Anvisa. Esses produtos também
apresentaram mercúrio perto do limite. Os crustáceos tiveram média elevada de
ferro e manganês. A coleta da urina indicou uma alta de bário em 20% das
amostras e de chumbo em 6% delas. O bário prejudica principalmente os rins,
enquanto o chumbo é neurotóxico e afeta a memória, a capacidade cognitiva e
está associado a transtornos mentais e ao comportamento antissocial. As mechas
de cabelo foram utilizadas para reconstruir a retrospectiva de uma possível
contaminação da população a partir do comprimento dos fios, sendo que os mais
compridos davam pistas do passado mais distante. Com isso, foi possível
observar um pico de contaminação logo após o desastre. Na faixa de novembro e
dezembro de 2015, as amostras apontaram que houve um aumento, seguido de queda
repentina, de arsênio, alumínio, mercúrio, níquel, chumbo, manganês e cromo. Houve
impacto também na saúde mental, como no caso de Lucimar, que liga seu
diagnóstico de ansiedade e depressão ao rompimento da barragem. Há um ano, toma
remédio para os transtornos sem interrupções. No doutorado de Paulelli,
sintomas psicológicos foram os mais citados e, em Povoação, foram assinalados
em 63% dos questionários.
Lucimar
relata se afligir com a questão financeira, os problemas psicológicos — que
também atingem outros membros da família — e a contaminação da água. “Acabou
nossa vida. Você quer ver você estar morando em um lugar que você não tem água
para beber?”, diz. Povoação tem um posto de saúde em sua sede, mas, por ficar
distante, quando precisa ir ao médico, Lucimar prefere ir ao ponto de apoio
instalado em Brejo Grande de 15 em 15 dias e aonde chega com 30 minutos de
carro. Em Degredo, o posto de saúde mais próximo fica a 13 km de distância.
Fonte:
Mongabay

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