Manuel
Domingos Neto: Ineditismo enganador
O
democrata brasileiro alegra-se com a prisão de militares julgados responsáveis
pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.
A bem
da verdade, deve moderar sua alegria. A condenação tanto pode favorecer a
revisão do papel das fileiras quanto pode empaná-la.
Cabe
registrar: o julgamento atendeu à ansiedade do quartel em melhorar sua imagem e
sua autoestima, condições fundamentais para persistir em seu papel histórico.
O
quartel precisava passar à sociedade a ideia de que o golpismo decorreria de
vontades individuais transviadas, não de orientação corporativa multifacetada,
alongada, orientada para deter reformas socioeconômicas e assegurar o domínio
sobre a sociedade e o Estado.
Ao
condenar oficiais de alta patente, o Supremo não apenas agradou o democrata.
Proclamou também a isenção do quartel relativamente ao golpismo criminoso.
Alimentou, de quebra, a falsa percepção de que a fileira agiu como garantidora
da democracia.
Não é
proeza banal mascarar responsabilidades cristalizadas pelo tempo. Ao longo de
sua existência, o quartel formou, inspirou, agasalhou, nutriu, treinou e
protegeu golpistas. Ensinou que a ditadura militar fez bem ao Brasil e que a
fileira detém padrão moral superior ao paisano indisciplinado.
Ensinou
que reformistas sociais são perigosos e que os Estados Unidos encarnam o mundo
livre, justo e bonito. Ensinou que a Defesa do Brasil deve ser extensão da
coalizão do Atlântico Norte encabeçada pelo Pentágono.
Bolsonaro
aprendeu, no quartel, a bater continência para a bandeira estadunidense. Seus
filhos e seguidores veem com naturalidade a ingerência da Casa Branca no
Brasil.
Bolsonaro
é cria do quartel. Seu jeito de pensar e falar foi moldado na fileira. Seu
reacionarismo estridente, sua percepção da sociedade e sua misoginia têm cheiro
de quartel.
Foi no
quartel, discursando para cadetes em dezembro de 2014, que Bolsonaro iniciou
sua caminhada rumo ao Planalto. O general Enzo Peri comandava, então, o
Exército e o general Tomás Paiva, a AMAN. Não foram repreendidos. Dilma
Rousseff era presidente da República e Celso Amorim, seu desatento ministro da
Defesa.
A
eleição de Bolsonaro foi, antes de tudo, uma decisão militar. O comandante
Villas Bôas, em abril de 2018, deu a senha para o Supremo prender Lula e
facilitar o caminho do Capitão rumo à Presidência da República.
Em
apoio ao candidato Bolsonaro foram mobilizados milhões de integrantes da
“família militar”. Aqui, não conjecturo, repasso informação de um general que
esteve no comando de sua campanha.
Esse
contingente impulsionou a dissonância cognitiva que atingiu grande parte do
eleitorado. Contribuiu para naturalizar os apelos do Capitão ao derramamento de
sangue. Enfim, operou contra a coesão nacional.
Do
quartel saíram figuras-chaves e orientações estratégicas do repulsivo governo
Bolsonaro.
Como
sua reeleição estava ameaçada, o quartel participou da tentativa de
desqualificar a urna eletrônica ao tempo em que recebia hordas de fanáticos em
sua porta.
Não há
registro de comandantes ofendidos com os pedidos de “intervenção militar”. Há
registro de comandantes acoitando golpistas fanatizados. Nenhum deles respondeu
por prevaricação.
Ao
final de 2022, uma palavra do general Freire Gomes dispersaria os acampados
diante do Comando Militar, de onde saíram, dias depois, para o quebra-quebra na
Praça dos Três Poderes. Não obstante, o omisso general chegou a ser apontado
como herói legalista.
Ao
final de investigação tecnicamente apurada e impecável observância do rito
judicial, poucos generais foram presos, mas o bastante para a maioria dos
brasileiros pensar que a democracia venceu e que, doravante, golpistas pensarão
cem vezes antes meter os pés pelas mãos.
Quando
a autoridade civil ordena a prisão de altas patentes, não há como deter a
alegria do democrata brasileiro. O impacto simbólico é fortíssimo.
Já
outro recado importante é menos perceptível: o quartel, tendo feito o que fez,
foi eximido de responsabilidade. Não lhe cabe responder por sofrimentos e
sobressaltos vividos pelos brasileiros.
Assim
legitimado, preserva sua sempiterna autonomia relativamente ao poder político.
Ganha, inclusive, moral para barganhar condições prisionais dos seus enquanto
não surgem condições para anistiá-los.
A
crença de que cumpre ao Tribunal o protagonismo na preservação da democracia
desorienta a luta política. Democracia se conquista em confrontos políticos e
ideológicos barulhentos. Não é dádiva de tribunal, parlamento, líder
carismático ou quartel.
O
ineditismo da prisão de altas patentes é admirável. Mas, parafraseando
conhecido autor siciliano, há ineditismos que deixam tudo do mesmo jeito.
• A feitiçaria digital nas próximas
eleições. Por Eugênio Bucci
As
especulações sobre a corrida eleitoral de 2026 já comparecem aos jornais. São
as interrogações de sempre (só mudam os personagens). Quem será o candidato da
direita? A família Bolsonaro vai apoiar ou vai investir no racha? Do lado do
governo, qual a extensão dos acordos partidários em prol da reeleição de Lula?
Essa aliança terá forças de centro ou vai se restringir ao campo da esquerda?
Por
certo, essas perguntas importam e devem ser consideradas. Contudo, o fator que
tem mais potencial de impacto não vem merecendo a atenção devida: a tecnologia
das plataformas sociais. Como as ferramentas digitais atuarão? E a Inteligência
Artificial? Teremos boas normas para regular a batalha nas redes? Teremos
fiscalização eficiente ou o jogo sujo vai grassar?
Ainda
não há respostas, é claro, mas uma certeza já podemos assumir: a feitiçaria
digital terá um peso gigantesco e, sem regramentos, poderá conturbar todo o
processo. Poderá mesmo viciá-lo de modo irreversível.
Vejamos
o que aconteceu nas eleições da Índia no ano passado. Lá, os eleitores recebiam
telefonemas de uma espécie de robô de telemarketing que falava com a voz do
candidato, num expediente que se mostrou bastante eficaz. No Brasil vai ser
igual? Se vierem vozes das nuvens, elas dirão apenas amenidades? Ou vão
distribuir calúnias? E as deepfakes?
Se a
inércia prevalecer e não houver prevenção, o cenário vai se complicar – o
Brasil poderá se converter num laboratório avançado para o que há de pior.
Tempos atrás, circulou por aqui, amplamente e muito à vontade, a falsa notícia
de que o governo federal mandara distribuir uma mamadeira cujo bico teria o
formato do órgão sexual masculino. Não, não foi piada de mau gosto. Aquilo foi
um tsunami que varreu boa parte da confiabilidade do debate eleitoral, com
prejuízos cívicos incalculáveis.
Desta
vez, o que vem pela frente poderá não ter aparência de piada, mas de
devastação, e não será surpresa. Desde 2016, quando a Cambridge Analytica usou
dados pessoais de clientes do Facebook para assediar votantes no Reino Unido e
nos Estados Unidos, sabemos que, na era digital, a manipulação prima pela
perversidade mais torpe. E hoje as ferramentas são mais poderosas, mais
temíveis.
Para
complicar as coisas, as chamadas big techs mudaram de atitude. Para pior.
Antes, elas mantinham uma certa pose de imparcialidade. Agora, chafurdam no
partidarismo mais furibundo. Não que Apple, Goggle, Meta ou Amazon vão sair por
aí subindo em palanques. Elas não precisam. Basta que façam vista grossa para o
malfeito.
Há três
precedentes que confirmam o risco. Primeiro precedente: há dois anos, em maio
de 2023, a seção brasileira do Google deixou de lado a boa educação e disparou
ataques frontais, em sua página oficial, contra a aprovação do Projeto de Lei
2630 (o PL das fake news), que seria votado por aqueles dias na Câmara Federal.
De repente, uma empresa estrangeira de comunicação passou a interferir
abertamente numa decisão do parlamento brasileiro, e levou a melhor – o PL 2630
foi engavetado.
É
verdade que, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, um relatório acusando o
Google de “abuso de poder econômico”, mas, passados mais de seis meses da
agressão, o mal já tinha sido perpetrado.
Segundo
precedente: em janeiro deste ano, após a eleição de Donald Trump, Mark
Zuckerberg, dono da Meta – a proprietária do Facebook, o Instagram e o WhatsApp
–, vestiu uma camiseta preta, como a dos fascistas da década de 1920, e gravou
um pronunciamento prometendo combater no mundo inteiro qualquer tentativa de
regulação das plataformas (ele chama a regulação de “censura”).
Mark
Zuckerberg abandonou de vez o discurso de que o Facebook seria uma cândida
“praça pública”, sem preferências por um lado ou outro, e assumiu o lado das
bandeiras de Donald Trump. Falou como um agente internacional do autoritarismo
trumpista.
Terceiro
precedente: em 2024, Elon Musk, o ser humano mais rico do planeta, dono do X
(ex-Twitter), virou cabo eleitoral do obscurantismo. Durante a campanha
presidencial nos Estados Unidos, subia no palanque para sortear dinheiro entre
eleitores do candidato republicano. Depois, na festa de posse de Donald Trump,
foi ao púlpito e fez duas vezes a saudação nazista, na frente das câmeras do
mundo inteiro. Para ele, o gesto que simboliza holocausto e totalitarismo é
signo de celebração.
As tais
big techs, que não escondem mais sua preferência por líderes identificados com
o trumpismo, são hoje o maior aparelho de propaganda da extrema-direita
mundial. Não duvide por um segundo. A depender delas, as feitiçarias virão e,
se encontrarem espaço, promoverão danos impensáveis. Os bajuladores digitais de
Donald Trump vão tentar presenteá-lo com avanços da extrema-direita no Brasil,
mesmo sabendo que estrangeiros não podem se intrometer em eleições gerais de um
país soberano.
As
chances de que tentem fazer do Brasil um laboratório da feitiçaria digital é
grande. Que a democracia brasileira siga se cuidando.
Fonte:
Outras Palavras/A Terra é Redonda

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