domingo, 30 de novembro de 2025

Manuel Domingos Neto: Ineditismo enganador

O democrata brasileiro alegra-se com a prisão de militares julgados responsáveis pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.

A bem da verdade, deve moderar sua alegria. A condenação tanto pode favorecer a revisão do papel das fileiras quanto pode empaná-la.

Cabe registrar: o julgamento atendeu à ansiedade do quartel em melhorar sua imagem e sua autoestima, condições fundamentais para persistir em seu papel histórico.

O quartel precisava passar à sociedade a ideia de que o golpismo decorreria de vontades individuais transviadas, não de orientação corporativa multifacetada, alongada, orientada para deter reformas socioeconômicas e assegurar o domínio sobre a sociedade e o Estado.

Ao condenar oficiais de alta patente, o Supremo não apenas agradou o democrata. Proclamou também a isenção do quartel relativamente ao golpismo criminoso. Alimentou, de quebra, a falsa percepção de que a fileira agiu como garantidora da democracia.

Não é proeza banal mascarar responsabilidades cristalizadas pelo tempo. Ao longo de sua existência, o quartel formou, inspirou, agasalhou, nutriu, treinou e protegeu golpistas. Ensinou que a ditadura militar fez bem ao Brasil e que a fileira detém padrão moral superior ao paisano indisciplinado.

Ensinou que reformistas sociais são perigosos e que os Estados Unidos encarnam o mundo livre, justo e bonito. Ensinou que a Defesa do Brasil deve ser extensão da coalizão do Atlântico Norte encabeçada pelo Pentágono.

Bolsonaro aprendeu, no quartel, a bater continência para a bandeira estadunidense. Seus filhos e seguidores veem com naturalidade a ingerência da Casa Branca no Brasil.

Bolsonaro é cria do quartel. Seu jeito de pensar e falar foi moldado na fileira. Seu reacionarismo estridente, sua percepção da sociedade e sua misoginia têm cheiro de quartel.

Foi no quartel, discursando para cadetes em dezembro de 2014, que Bolsonaro iniciou sua caminhada rumo ao Planalto. O general Enzo Peri comandava, então, o Exército e o general Tomás Paiva, a AMAN. Não foram repreendidos. Dilma Rousseff era presidente da República e Celso Amorim, seu desatento ministro da Defesa.

A eleição de Bolsonaro foi, antes de tudo, uma decisão militar. O comandante Villas Bôas, em abril de 2018, deu a senha para o Supremo prender Lula e facilitar o caminho do Capitão rumo à Presidência da República.

Em apoio ao candidato Bolsonaro foram mobilizados milhões de integrantes da “família militar”. Aqui, não conjecturo, repasso informação de um general que esteve no comando de sua campanha.

Esse contingente impulsionou a dissonância cognitiva que atingiu grande parte do eleitorado. Contribuiu para naturalizar os apelos do Capitão ao derramamento de sangue. Enfim, operou contra a coesão nacional.

Do quartel saíram figuras-chaves e orientações estratégicas do repulsivo governo Bolsonaro.

Como sua reeleição estava ameaçada, o quartel participou da tentativa de desqualificar a urna eletrônica ao tempo em que recebia hordas de fanáticos em sua porta.

Não há registro de comandantes ofendidos com os pedidos de “intervenção militar”. Há registro de comandantes acoitando golpistas fanatizados. Nenhum deles respondeu por prevaricação.

Ao final de 2022, uma palavra do general Freire Gomes dispersaria os acampados diante do Comando Militar, de onde saíram, dias depois, para o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. Não obstante, o omisso general chegou a ser apontado como herói legalista.

Ao final de investigação tecnicamente apurada e impecável observância do rito judicial, poucos generais foram presos, mas o bastante para a maioria dos brasileiros pensar que a democracia venceu e que, doravante, golpistas pensarão cem vezes antes meter os pés pelas mãos.

Quando a autoridade civil ordena a prisão de altas patentes, não há como deter a alegria do democrata brasileiro. O impacto simbólico é fortíssimo.

Já outro recado importante é menos perceptível: o quartel, tendo feito o que fez, foi eximido de responsabilidade. Não lhe cabe responder por sofrimentos e sobressaltos vividos pelos brasileiros.

Assim legitimado, preserva sua sempiterna autonomia relativamente ao poder político. Ganha, inclusive, moral para barganhar condições prisionais dos seus enquanto não surgem condições para anistiá-los.

A crença de que cumpre ao Tribunal o protagonismo na preservação da democracia desorienta a luta política. Democracia se conquista em confrontos políticos e ideológicos barulhentos. Não é dádiva de tribunal, parlamento, líder carismático ou quartel.

O ineditismo da prisão de altas patentes é admirável. Mas, parafraseando conhecido autor siciliano, há ineditismos que deixam tudo do mesmo jeito.

•        A feitiçaria digital nas próximas eleições. Por Eugênio Bucci

As especulações sobre a corrida eleitoral de 2026 já comparecem aos jornais. São as interrogações de sempre (só mudam os personagens). Quem será o candidato da direita? A família Bolsonaro vai apoiar ou vai investir no racha? Do lado do governo, qual a extensão dos acordos partidários em prol da reeleição de Lula? Essa aliança terá forças de centro ou vai se restringir ao campo da esquerda?

Por certo, essas perguntas importam e devem ser consideradas. Contudo, o fator que tem mais potencial de impacto não vem merecendo a atenção devida: a tecnologia das plataformas sociais. Como as ferramentas digitais atuarão? E a Inteligência Artificial? Teremos boas normas para regular a batalha nas redes? Teremos fiscalização eficiente ou o jogo sujo vai grassar?

Ainda não há respostas, é claro, mas uma certeza já podemos assumir: a feitiçaria digital terá um peso gigantesco e, sem regramentos, poderá conturbar todo o processo. Poderá mesmo viciá-lo de modo irreversível.

Vejamos o que aconteceu nas eleições da Índia no ano passado. Lá, os eleitores recebiam telefonemas de uma espécie de robô de telemarketing que falava com a voz do candidato, num expediente que se mostrou bastante eficaz. No Brasil vai ser igual? Se vierem vozes das nuvens, elas dirão apenas amenidades? Ou vão distribuir calúnias? E as deepfakes?

Se a inércia prevalecer e não houver prevenção, o cenário vai se complicar – o Brasil poderá se converter num laboratório avançado para o que há de pior. Tempos atrás, circulou por aqui, amplamente e muito à vontade, a falsa notícia de que o governo federal mandara distribuir uma mamadeira cujo bico teria o formato do órgão sexual masculino. Não, não foi piada de mau gosto. Aquilo foi um tsunami que varreu boa parte da confiabilidade do debate eleitoral, com prejuízos cívicos incalculáveis.

Desta vez, o que vem pela frente poderá não ter aparência de piada, mas de devastação, e não será surpresa. Desde 2016, quando a Cambridge Analytica usou dados pessoais de clientes do Facebook para assediar votantes no Reino Unido e nos Estados Unidos, sabemos que, na era digital, a manipulação prima pela perversidade mais torpe. E hoje as ferramentas são mais poderosas, mais temíveis.

Para complicar as coisas, as chamadas big techs mudaram de atitude. Para pior. Antes, elas mantinham uma certa pose de imparcialidade. Agora, chafurdam no partidarismo mais furibundo. Não que Apple, Goggle, Meta ou Amazon vão sair por aí subindo em palanques. Elas não precisam. Basta que façam vista grossa para o malfeito.

Há três precedentes que confirmam o risco. Primeiro precedente: há dois anos, em maio de 2023, a seção brasileira do Google deixou de lado a boa educação e disparou ataques frontais, em sua página oficial, contra a aprovação do Projeto de Lei 2630 (o PL das fake news), que seria votado por aqueles dias na Câmara Federal. De repente, uma empresa estrangeira de comunicação passou a interferir abertamente numa decisão do parlamento brasileiro, e levou a melhor – o PL 2630 foi engavetado.

É verdade que, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, um relatório acusando o Google de “abuso de poder econômico”, mas, passados mais de seis meses da agressão, o mal já tinha sido perpetrado.

Segundo precedente: em janeiro deste ano, após a eleição de Donald Trump, Mark Zuckerberg, dono da Meta – a proprietária do Facebook, o Instagram e o WhatsApp –, vestiu uma camiseta preta, como a dos fascistas da década de 1920, e gravou um pronunciamento prometendo combater no mundo inteiro qualquer tentativa de regulação das plataformas (ele chama a regulação de “censura”).

Mark Zuckerberg abandonou de vez o discurso de que o Facebook seria uma cândida “praça pública”, sem preferências por um lado ou outro, e assumiu o lado das bandeiras de Donald Trump. Falou como um agente internacional do autoritarismo trumpista.

Terceiro precedente: em 2024, Elon Musk, o ser humano mais rico do planeta, dono do X (ex-Twitter), virou cabo eleitoral do obscurantismo. Durante a campanha presidencial nos Estados Unidos, subia no palanque para sortear dinheiro entre eleitores do candidato republicano. Depois, na festa de posse de Donald Trump, foi ao púlpito e fez duas vezes a saudação nazista, na frente das câmeras do mundo inteiro. Para ele, o gesto que simboliza holocausto e totalitarismo é signo de celebração.

As tais big techs, que não escondem mais sua preferência por líderes identificados com o trumpismo, são hoje o maior aparelho de propaganda da extrema-direita mundial. Não duvide por um segundo. A depender delas, as feitiçarias virão e, se encontrarem espaço, promoverão danos impensáveis. Os bajuladores digitais de Donald Trump vão tentar presenteá-lo com avanços da extrema-direita no Brasil, mesmo sabendo que estrangeiros não podem se intrometer em eleições gerais de um país soberano.

As chances de que tentem fazer do Brasil um laboratório da feitiçaria digital é grande. Que a democracia brasileira siga se cuidando.

 

Fonte: Outras Palavras/A Terra é Redonda

 

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