Terra
e Liberdade: 42 anos do Exército Zapatista de Libertação Nacional
Há 42
anos, em 17 de novembro de 1983, era fundado no México o Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZLN).
Integrado
por indígenas e camponeses de Chiapas, o EZLN se destaca como uma das mais
importantes organizações revolucionárias em atividade no mundo. Sua atuação é
norteada pelo neozapatismo e inspirada em princípios do anarquismo e do
socialismo libertário.
O EZLN
ganhou projeção internacional em janeiro de 1994, quando realizou um levante
armado contra o governo mexicano, coincidindo com a entrada em vigor do Tratado
de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).
Desde
então, o movimento consolidou sua atuação junto às comunidades camponesas de
Chiapas, estabelecendo zonas autônomas que funcionam sob princípios de
autogestão e controlam seus próprios serviços e estruturas produtivas.
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O PRI e as guerrilhas
Durante
a maior parte do século 20, o México foi governado pelo Partido Revolucionário
Institucional (PRI) — agremiação fundada por lideranças egressas da Revolução
Mexicana, que tentavam impedir a fragmentação política do país após o
assassinato do presidente Álvaro Obregón.
Embora
se apresentasse como herdeiro dos princípios da Revolução Mexicana, o PRI se
tornou cada vez mais distante das lutas sociais e das reivindicações camponesas
do início do século 20, operando um giro gradual rumo ao conservadorismo e
encampando a defesa dos interesses das elites mexicanas como a prioridade de
sua ação política.
Visando
consolidar sua hegemonia, o PRI instituiu um modelo de gestão centralizador e
autoritário, impondo o controle sobre os movimentos sociais e sindicatos e
restringindo as liberdades civis, ao mesmo tempo em que reprimia violentamente
as dissidências que escapavam do domínio institucional do partido.
O
modelo de governança autoritária do PRI alimentou um crescente descontentamento
popular, levando à intensificação das lutas sociais. Esse processo se
intensificou ao longo das décadas de 1950 e 1960 — a fase do chamado “milagre
econômico”, marcada ao mesmo tempo pelo crescimento econômico acelerado e pelo
aumento das desigualdades sociais, sobretudo no meio rural.
A
situação era particularmente grave em Chiapas, o estado mais pobre e
negligenciado do México, onde se concentra parte substancial da população
indígena do país. As comunidades camponesas e indígenas sofriam com a crescente
concentração fundiária e eram submetidas massacres derivados da disputa por
terras.
Reagindo
ao ambiente de opressão e inércia governamental, grupos de esquerda inspirados
pela Revolução Cubana e pelas guerrilhas latino-americanas iniciaram a criação
de organizações revolucionárias devotadas à luta armada. É o caso do Exército
Insurgente Mexicano (EIM), que operou por um curto período na região da Selva
Lacandona, em Chiapas.
Em
1969, um grupo de guerrilheiros provenientes do EIM fundou as Forças de
Libertação Nacional (FLN). A organização estabeleceu seu quartel general em
Ocosingo, também em Chiapas, e expandiu suas operações por outros estados nos
anos seguintes.
Traídas
por um membro do grupo, as FLN foram dizimadas pelo Exército Mexicano durante
Massacre de El Chilar, em 1974. O massacre desarticulou a guerrilha, mas um
pequeno de grupo sobreviventes seguiu atuando clandestinamente e tentou
recompor a luta no campo.
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O EZLN
Em
paralelo às criação de organizações guerrilheiras, o estado de Chiapas também
abrigava outras iniciativas de articulação política das comunidades indígenas e
camponesas.
Na
Diocese de San Cristóbal de Las Casas, o bispo Samuel Ruiz García iniciou um
importante trabalho social inspirado pela teologia da libertação, que
culminaria na criação da Associação Rural de Interesse Coletivo — União de
Sindicatos (ARIC-UU), uma organização combativa da luta camponesa.
Em 17
de novembro de 1983, um grupo de militantes das FLN e lideranças indígenas e
camponesas ligada à ARIC-UU se uniram para fundar o Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZLN). O nome do grupo evocava como inspiração a luta de
Emiliano Zapata, cujas tropas ajudaram a derrubar o governo autocrático de
Porfírio Díaz durante a Revolução Mexicana.
Brandindo
o lema “Terra e Liberdade”, Zapata mobilizou as massas na luta pela reforma
agrária e defendeu o direitos das comunidades rurais se autogovernarem e
controlarem seus próprios recursos. Sua resistência implacável aos desmandos do
autocratas o converteram em um dos heróis nacionais do México.
Inicialmente
diminuto, o EZLN se expandiu organicamente por Chiapas, congregando milhares de
membros e instalando acampamentos e núcleos por toda Selva Lacandona. A maior
parte de seus militantes são indígenas, oriundos sobretudo povos do tronco Maia
— etnias como os Tzotzil, Tzeltal, Tojolabal, Chol, Mam e Zoque.
O ELZN
não proclamou adesão aos princípios de uma doutrina específica, congregando
diversas correntes de pensamento político de esquerda. As ações do movimento
têm como base o neozapatismo, uma filosofia fortemente influenciada pelo
anarquismo e pelo socialismo libertário, voltada à construção de alternativas
aos modelos econômicos dominantes.
O
movimento defende a insurreição revolucionária e a superação do atual sistema
político por um modelo de gestão autônoma e democrática do território mexicano.
Assim, nas comunidades onde atua, o ELZN tem como prioridade a construção de
seus próprios sistemas de saúde e educação e de modelos comunais de organização
econômica.
A
gestão interna do movimento é horizontal e descentralizada, com a participação
ativa dos membros através de assembleias comunitárias. As decisões militares e
assuntos estratégicos ficam a cargo do Comitê Indígena Revolucionário
Clandestino – Comandância Geral, composto por 23 comandantes e um
subcomandante, que também atua como porta-voz da organização.
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O Levante Zapatista
O EZLN
permaneceu secreto durante sua primeira década de existência, ampliando suas
bases junto às comunidades indígenas, adquirindo armamentos e desenvolvendo
suas estruturas militares para uma futura insurreição armada.
A
revelação pública do movimento ocorreu da forma mais enfática possível. No dia
1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista publicou a Primeira Declaração da
Selva Lacandona. O documento era uma declaração de guerra ao governo mexicano,
então presidido por Carlos Salinas de Gortari, em que o grupo afirmava não
reconhecer a legitimidade dos poderes institucionais mexicanos e conclamava o
povo a se sublevar e se juntar aos rebeldes para “restaurar a legalidade e
estabilidade da Nação”.
A data
coincidia com a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do
Norte (NAFTA) — um acordo comercial extremamente impopular, que determinava a
abolição das barreiras comerciais entre Estados Unidos, México e Canadá,
consolidando o avanço de uma agenda neoliberal nociva aos interesses dos
trabalhadores locais. Porta-voz dos zapatistas, o Subcomandante Marcos se
referiu ao NAFTA como “a sentença de morte para os pobres mexicanos”.
Ainda
no dia 1º de janeiro, o Exército Zapatista iniciou um levante armado em
Chiapas. A revolta se iniciou com a tomada do município de San Cristóbal de Las
Casas pelos revolucionários, seguida pela ocupação de várias outras cidades,
tais como Ocosingo, Las Margaritas, Altamirano, Comitan, etc. O general Absalón
Castellanos Domínguez, ex-governador de Chiapas, foi capturado pelos
guerrilheiros como prisioneiro de guerra.
A
revolta foi violentamente reprimida pelas forças armadas. Após duas semanas de
combates intensos, com centenas de mortes, o governo mexicano conseguiu
reestabelecer o controle sobre as cidades ocupadas pelos insurgentes. Os
guerrilheiros recuaram para a selva, mas seguiram realizando ataques,
ocupações, sabotagens e ações de resistência ao longo dos meses subsequentes.
O
levante dos zapatistas atraiu atenção internacional e angariou expressivo apoio
doméstico às suas demandas — fenômeno visível, por exemplo, na grande passeata
que reuniu mais de 100 mil pessoas na Cidade do México, exigindo que o governo
federal interrompesse as hostilidades contra os revolucionários.
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A luta pelas Zonas Autônomas
Pressionado,
o governo mexicano decretou um cessar-fogo unilateral. Em março de 1994, o
bispo Samuel Ruiz, mediador respeitado pelas comunidades indígenas, mediou as
negociações entre os zapatistas e as autoridades mexicanas.
Em
fevereiro de 1996, após uma série de interrupções e novas revoltas,
representantes dos insurgentes e do governo federal (já sob gestão de Ernesto
Zedillo) firmaram os Acordos de San Andrés, estabelecendo a criação de zonas
autônomas controladas pelo Exército Zapatista em Chiapas.
Os
acordos, entretanto, não foram cumpridos, levando à estagnação do processo de
paz. As tensões sociais entre grupos favoráveis e contrários às demandas dos
zapatistas se intensificaram nos meses seguinte. Grupos paramilitares apoiados
por latifundiários iniciaram uma onda de ataques contra as comunidades
zapatistas.
A
violência atingiu novos patamares em dezembro de 1997, quando ocorreu o
Massacre de Acteal. Quarenta e cinco indígenas tzotziles, apoiadores do EZLN,
foram chacinados por grupos paramilitares, com anuência do Exército Mexicano.
Entre as vítimas, havia 20 mulheres e 16 crianças.
Novos
ataques ocorreram 1998. Nesse mesmo ano, o governo de Chiapas começou a
realizar ofensivas sobre os territórios controlados por zapatistas. Em
resposta, o EZLN retomou a resistência armada e articulou ações de mobilização
da sociedade civil.
Em
1999, os zapatistas realizaram uma ampla consulta nacional, angariando milhões
de votos a favor do cumprimento dos Acordos de San Andrés. Dois anos depois, em
2001, uma marcha de zapatistas levou uma multidão às ruas da Cidade do México e
os líderes do movimento realizaram um discurso histórico no Congresso. Apesar
da pressão, os parlamentares aprovaram uma versão atenuada dos Acordos de San
Andrés, rejeitando várias das reivindicações dos insurgentes.
Os
conflitos seguiram inalterados até a eleição de Vicente Fox. Em sua campanha,
Fox havia se comprometido a retomar os acordos de paz com o Exército Zapatista.
Em 2004, o mandatário mexicano ordenou o fim a ocupação militar da comunidade
de Cuxujal, em Ocosingo, um dos territórios autônomos que foram cedidos à
gestão do EZLN.
Em
contrapartida, os zapatistas publicaram a Sexta Declaração da Selva Lacandona,
onde anunciavam o compromisso de “lutar pacificamente” em prol de seus
objetivos e ampliar sua atuação na política institucional — uma resolução que
dividiu suas bases.
Durante
a fase de diálogos, o EZLN deu início à criação dos “Aguascalientes”, espaços
de encontro, diálogo e articulação com a sociedade civil. Esses centros
sediavam debates políticos, encontros internacionais, reuniões e mobilizações
com os movimentos sociais. Foram criados cinco “Aguascalientes”, cobrindo todo
o território zapatista: La Realidad, Oventic, La Garrucha, Morelia e Roberto
Barrios.
A
partir dos anos 2000, diante dos reveses nas negociações com o governo
mexicano, o EZLN se convenceu sobre a necessidade de consolidar seus
territórios. Assim, os “Aguascalientes” passaram a ser substituídos pelos
“Caracoles” — comunidades autônomas com estruturas internas de autogestão
(Juntas de Bom Governo), que coordenam a saúde, a educação, a justiça, a
produção cooperativa e as relações entre as comunidades indígenas.
Fonte:
Por Estevam Slva, em Opera Mundi

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