O
país do improviso e do desperdício de oportunidades
Algumas
situações dos últimos dias confirmaram uma verdade que, embora evidente, é cada
vez mais incômoda: planejamento não é o ponto forte do Brasil. Ou, dito de
outra forma, os fatos demonstram que o Brasil carrega um mapa genético dominado
pelo cromossomo do improviso. Ou, ainda, pela mania de se tirar conclusões sem
procurar conhecer a verdade por trás dos fatos e, a partir daí, escolher
caminhos que levam ao fracasso. A impressão que se tem é a de que, quanto mais
importante e visível é a situação em foco, mais as propostas de solução dos
problemas são marcadas pelo improviso, pela gambiarra e pela busca do atalho
fácil.
Exemplos
dessa realidade sobraram durante a COP30 — a conferência das Nações Unidas
sobre o clima, realizada nas últimas semanas, em Belém. Muitos fatos
desagradáveis (todos evitáveis) aconteceram durante o evento e acabaram
atraindo mais atenção do que os temas debatidos nas plenárias — que, por sinal,
expuseram a falta de acordo dos delegados em relação à pauta ambiental. Há
posições divergentes em relação ao fim do uso de combustíveis fósseis, ao
financiamento das ações ambientais e à falta de avanços nas Contribuições
Nacionalmente Determinadas (NDC, na sigla em inglês), que são os compromissos
de redução das emissões de carbono assumido por cada país.
Se nos
pontos relacionados com a pauta ambiental o clima no final do encontro é de
impasse, a impressão no que diz respeito à realização do evento, imaginado para
contar pontos para melhorar a imagem do Brasil, é do mais retumbante fracasso.
Nenhuma autoridade brasileira, porém, tem o direito de dizer que tenha sido
colhida de surpresa por qualquer situação.
Há mais
de dois anos que já se sabia que a COP30 aconteceria em Belém. Se algo saiu
errado não foi, portanto, por falta de tempo para se evitar o pior. Nem de
dinheiro. Os gastos do governo com a COP, considerando as obras de
infraestrutura realizadas em Belém, superaram R$ 5 bilhões, conforme informação
divulgada pelo minitro do Turismo, Celso Sabino, nos dias da abertura do
evento.
A
certeza de que sediaria uma conferência internacional, que atrairia toda
atenção do mundo, deveria ter sido tratada pela organização com a certeza de
que, se algo desse errado, a culpa recairia sobre o anfitrião. Todos os
problemas capazes de atingir as instalações projetadas e construídas
especialmente para sediar os debates deveriam ter sido previstos. O incêndio
que consumiu parte das instalações, na tarde de quinta-feira passada, foi
apenas a cena final de uma peça mal escrita, mal encenada e mal dirigida.
Não
importa a causa do fogaréu. Um sistema de eletricidade capaz de suportar a
sobrecarga de demanda durante o encontro, a fim de se evitarem os
curtos-circuitos, era o mínimo que se esperava numa obra tão cara. Também era
óbvia a necessidade de telhados e de um sistema de escoamento de águas pluviais
que suportassem as chuvas pesadas que caem nesta época do ano desde que a
Amazônia é a Amazônia.
Um
serviço de coleta que evitasse o acúmulo visível de lixo pela cidade poderia
ter sido pensado. Medidas básicas de segurança para proteção dos participantes
e dos visitantes dentro e fora dos pavilhões eram obrigatórias. A despeito da
obviedade dessas providências, tudo o que poderia falhar, falhou. E, quando
isso aconteceu, as autoridades foram as primeiras a manifestar surpresa diante
dos incidentes.
RIGOR
CONTRA OS FORA DA LEI
Uma
situação de outra natureza, mas que também chamou atenção pela forma
improvisada, quase amadora, com que foi conduzida pelos “articuladores”
políticos do governo envolveu a tramitação do Marco Legal do Combate ao Crime
Organizado. Mesmo sendo tão previsível quanto os temporais que desabam sobre
Belém nesta época do ano, o embate entre governo e oposição em torno de um tema
tão delicado e importante como esse era mais do que provável. E a vantagem da
oposição nesse embate era visível. Mesmo assim, o resultado da votação parece
ter surpreendido os “articuladores” políticos do Planalto.
Para se
ter uma ideia da aceitação da proposta de endurecimento no combate aos crimes
violentos cometidos pelas facções, basta olhar para o resultado da votação
realizada no plenário da Câmara dos Deputados na noite de terça-feira passada.
O relatório do deputado Guilherme Derrite (PP/SP), que modificou o Projeto de
Lei Antifacções, encaminhado pelo governo ao Congresso no dia 31 de outubro,
foi aprovado por 370 votos a 110. Isso significa que a ideia de endurecer o
tratamento dado aos integrantes das facções criminosas teria sido aprovada
ainda que se tratasse de uma Proposta de Emenda Constitucional — e não de um
Projeto de Lei.
O
relatório de Derrite jamais alcançaria uma vitória tão acachapante se a
sociedade brasileira não estivesse cobrando de seus representantes medidas mais
rigorosas contra os fora da lei que têm transformado a vida de muita gente num
inferno. Mesmo assim, os líderes do governo reagiram ao resultado como se
tivessem sido vítimas de manobras sub-reptícias por parte da oposição.
COPA DO
MUNDO
Essas
duas atitudes — ou seja, a reação diante dos problemas apresentados durante a
COP e a resposta dos “articuladores” do Planalto à surra fenomenal que levaram
na votação da lei Antifacções — são frutos da mesma árvore. Quem reparar
direito notará que tanto um quanto o outro são apenas mais um exemplo do
improviso e da falta de planejamento que se tornaram uma rotina cansativa no
Brasil. Há centenas de outros, obviamente.
As
obras que deveriam ter sido entregues antes da Copa do Mundo de Futebol de 2014
são outra prova desagradável dessa verdade. Até hoje, onze anos depois, algumas
delas ainda não ficaram e outras jamais ficarão prontas em cidades como Rio de
Janeiro, São Paulo, Fortaleza e Cuiabá. Se tivessem sido planejadas e
executadas com o necessário rigor técnico e financeiro, não teriam consumido
tanto dinheiro, tempo e paciência da sociedade.
O fato
é que uma série de decisões importantes tomadas no país parece carregar a marca
da improvisação. O caso da COP de Belém e de tudo o que aconteceu do início ao
fim da conferência é exemplar — não só no que diz respeito às falhas na
estrutura montada para a realização do evento. A crítica cabe, também, à
principal proposta apresentada pelo Brasil durante a conferência. Trata-se da
criação do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, da sigla em inglês).
IDEIA
ENGENHOSA
A ideia
foi apresentada pelo governo brasileiro com o objetivo de financiar as
políticas de preservação das florestas tropicais por meio de mecanismos mais
modernos e atrativos do que a doação pura e simples. A proposta, à primeira
vista, é engenhosa e poderia ter apresentado resultados muito mais consistentes
do que apresentou caso tivesse sido elaborada com mais zelo pela delegação
brasileira.
Ao
aderirem ao TFFF, os governos e as empresas que tiverem interesse em destinar
recursos para a causa ambiental não farão uma doação a fundo perdido, como
sempre aconteceu. Ao invés disso, farão um investimento. TFFF, que ficará sob
cuidados do Banco Mundial, remunerará os investidores com juros, o que torna a
ideia de destinar recursos à causa ambiental mais atrativa do que tem sido até
aqui.
Na
teoria, a ideia é excelente. Só que havia tantos pontos imprecisos na proposta
original que muitos países se sentiram desestimulados em colocar dinheiro no
TFFF. Tempo para corrigir as falhas também houve. A ideia foi apresentada pela
delegação brasileira pela primeira vez na COP28, em Dubai, há dois anos. Desde
então, a proposta hibernou como se tivesse sido esquecida.
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou do TFFF logo na sessão de abertura
da COP30 e o ministro da Fazenda Fernando Haddad teve a oportunidade de
explicar o projeto em detalhes para jornalistas do mundo inteiro em uma
entrevista coletiva horas depois. Haddad, no entanto, não deu explicações
convincentes. Apenas se limitou a repetir o argumento de que os países ricos
devem pagar a conta da preservação das florestas que, de um modo geral, se
localizam em países pobres do “Sul Global” — que é a expressão “woke” usada
para se referir ao que antes se chamava de Terceiro Mundo.
Ou
seja, insistiu, durante a COP, no mesmo argumento que defende toda vez que
tenta explicar sua insistência em aumentar impostos no Brasil. A conta, segundo
ele, deve ser paga pelos ocupantes do “andar de cima”, ou seja, pelos países
ricos. É aí que está a questão! A princípio, nenhuma liderança sensata, com
poder de decisão, discorda das ideias de Haddad. A questão é que,
independentemente das razões que motivaram a criação do TFFF, o governo
brasileiro, que é o pai da ideia, deveria ter se cercado de cuidados para que a
iniciativa não fosse prejudicada pela falta de clareza.
O
intervalo de dois anos entre a COP28 e a COP30 representou um tempo mais do que
suficiente para que os especialistas do Ministério da Fazenda esmiuçassem a
estrutura do TFFF e eliminassem toda e qualquer dúvida que, porventura,
dificultasse sua aceitação. Só que não. Tanto assim que, dos US$ 10 bilhões que
eram esperados em aportes dos países ricos durante a COP30, pouco menos de US$
6 bilhões foram prometidos (incluindo-se aí o investimento de US$ 1 bilhão
feito pelo próprio Brasil).
E mais:
um dos países que, por seu histórico, era dado como certo na lista de
investidores do TFFF, mas que não se manifestou a respeito até a tarde de
sexta-feira, foi a Alemanha. Que, por sinal, foi envolvida por políticos e
jornalistas brasileiros num debate estéril, quase infantil, que apenas serviu
apenas para fazer barulho e desviar o debate em torno da conferência ambiental
do ponto que realmente interessa.
Pois
bem. Na segunda-feira passada, o chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, durante
um Congresso Empresarial, em Berlim, ao elogiar seu país, disse palavras que
soaram como ofensa grave a Belém e magoaram as autoridades brasileiras:
“Senhoras
e senhores, nós vivemos em um dos países mais bonitos do mundo”, disse o
chanceler, referindo-se à Alemanha. E prosseguiu: “Perguntei a alguns
jornalistas que estiveram comigo no Brasil na semana passada: ‘quem de vocês
gostaria de ficar aqui?’ Ninguém levantou a mão. Todos ficaram contentes por
termos retornado à Alemanha, na noite de sexta-feira para sábado, especialmente
daquele lugar onde estávamos”.
Nem bem
ele terminou a frase e a turma começou a se queixar — como se essas palavras
tivessem o efeito de uma declaração de guerra. Teve gente que perdeu o prumo e
dirigiu a Merz palavras como nazista, xenófobo e outras ofensas que não
deveriam se aplicar a alguém que se limitou a dizer o que qualquer comparação
superficial entre as condições de Berlim e Belém expõe sem qualquer
dificuldade.
DESPERDÍCIO
DE OPORTUNIDADE
Existe
alguma dúvida em relação à superioridade estrutural da capital da Alemanha em
relação à capital do Pará? Experimente, então, comparar as estatísticas de
saneamento, criminalidade, infraestrutura, saúde pública, mobilidade urbana e
qualquer outro indicador de qualidade de vida. Quem procurar qualquer sinal de
dejetos humanos nas águas do rio Spree, que corta do centro de Berlim,
dificilmente encontrará. Quem fizer o mesmo no igarapé Piraíba, em Belém,
ficará nauseado pelo mau cheiro e pelas imagens desagradáveis de sujeira
boiando nas águas.
Em
qualquer indicador de qualidade de vida, Berlim, sem dúvida e sem demagogia,
muito dá de 7 a 1 na capital paraense — que, ao sediar da COP30, acabou se
expondo ao julgamento geral. Se quisesse ouvir apenas elogios, que se
esforçasse para merecê-los.
A
reação correta diante da crítica seria admitir que há muito a ser feito para
melhorar as condições de vida na cidade. Mas não. No final, a impressão que
fica da COP30 é que o Brasil desperdiçou uma oportunidade e tanto de deixar
claro para o mundo o potencial indiscutível que o setor privado nacional tem
para liderar a corrida pela transição energética e pela descarbonização do
planeta. E de se firmar como o protagonista de um debate que, no final das
contas, acabou contaminado por questões que em nada contribuem para melhorar a
atratividade do país para investidores e líderes mundiais.
PENETRA
NA FESTA
A
propósito, o desperdício de oportunidades é outra situação que o Brasil esbanja
perante o mundo. E que se aplica não só à COP30, mas também ao outro
acontecimento de destaque da semana — a votação do relatório de Derrite. Se o
tema continuar sendo reduzido pelo governo a uma mera queda de braços com
oposição, a lei que endurece o tratamento aos integrantes das facções
criminosas pode acabar perdendo força e se desviando dos objetivos cobrados
pela sociedade. E o país perderá uma oportunidade de estabelecer critérios para
a punição de bandidos com o rigor que a gravidade de seus crimes exige.
Não é
segredo para ninguém que o governo chegou atrasado ao debate sobre a segurança
pública e só entrou na discussão depois que as pesquisas de opinião expuseram o
risco de pagar caro por essa omissão nas eleições de 2026. O problema é que, ao
entrar tarde na pista, o governo quis atrair para si os holofotes de uma festa
em que entrou como penetra.
Isso
mesmo. O projeto de Lei Antifacções elaborado pela equipe do ministro da
Justiça Ricardo Lewandowski e encaminhado à Câmara dos Deputados em caráter de
urgência não passou de uma tentativa de buscar protagonismo num debate que a
oposição domina há anos. A impressão foi a de que, para o governo, mais
importante do que o conteúdo da matéria, era ter reconhecida a paternidade de
um projeto que, mais adiante, renderá muitos dividendos eleitorais. No final,
porém, o pai da criança acabou sendo Derrite.
No
calor da reação à derrota, os articuladores do governo demonstraram que não
deram a batalha por perdida e que ainda contam com o Senado para cravar o nome
de Lewandowski na certidão de nascimento da proposta. Chega a ser uma
contradição. Afinal, o ministro se mostra mais à vontade como defensor de penas
brandas para os criminosos do que no de paladino na luta contra o crime.
SEIS
VERSÕES
Nesse
esforço, os “articuladores” do governo — que conseguiram atrair para seu lado
apenas o PT e os partidos de esquerda e extrema-esquerda que integram a linha
auxiliar de apoio ao governo — adotaram um caminho que mais ajuda a explicar a
derrota do governo na votação do que a ampliar as possibilidades de reverter a
situação quando o projeto, caso venha a ser alterado no Senado, retornar à
Câmara para nova discussão. Eles criticaram, por exemplo, a quantidade de
versões — foram cinco, antes da que viria a ser aprovada — que o relatório teve
antes de ser aprovado pelo placar acachapante de 370 a 110.
É aí
que está o xis da questão. Ao invés de um defeito, a quantidade elevada de
versões refletiu a disposição do relator para consultar juristas, pedir
opiniões, ouvir críticas, acatar sugestões e corrigir as imperfeições que foram
detectadas nos poucos dias que teve para realizar seu trabalho. Derrite
negociou com todos os setores da Câmara. Menos com os líderes do governo que,
apegados à missão de aprovar o texto de Lewandowski, custasse o que custasse,
não quiseram conversa. E que, depois da derrota consumada, saíram dizendo que
foi Derrite que não quis lhes dar ouvidos.
No
final, o líder do PT, Lindbergh Farias (PT/RJ), atribuiu ao texto aprovado a
intenção de blindar políticos contra investigações e frear as ações da Polícia
Federal. Só não explicou como isso poderá acontecer. A ministra das relações
institucionais Gleisi Hoffmann classificou o texto como “lambança jurídica”. E
o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que a lei, caso fique como está,
dificultará o acesso da Justiça “ao andar de cima do crime organizado”.
O
projeto que saiu da Câmara pode, sim, ser aperfeiçoado no Senado. Mas tentar
ressuscitar o texto original de Lewandowski, como o governo vem fazendo, é
jogar no lixo a possibilidade de ter uma lei que não concede regalias aos
condenados por crimes bárbaros. E que aumenta as punições previstas para esses
crimes. Será que não vale a pena deixar de combater o crime com as soluções
improvisadas propostas por Lewandowski e planejar um caminho diferente? É isso
que a sociedade deseja.
Fonte:
Nuno Vasconcellos, em O Dia

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