Jorge
Almeida: De qual soberania fala Lula?
Abordamos
aqui o discurso em “defesa da soberania nacional” no atual contexto das
agressões da vertente trumpista do imperialismo dos EUA. Uma conjuntura
nacional do Brasil muito ligada imediatamente à situação internacional. Mas, é
mesmo soberania nacional? Ou uma subsoberania neoliberal? No final, falaremos
também sobre a política externa na campanha de 2026.
O pano
de fundo do que acontece nacionalmente no Brasil, desde o período colonial,
sempre esteve ligada às relações internacionais e aos interesses mercantis
europeus, particularmente de Portugal e, depois, aos EUA. Desde a invasão,
conquista e colonização portuguesa, o Brasil esteve voltado para o mercado
internacional e, portanto, vinculado à ordem internacional.
Nos
anos mais recentes isso foi se tornando mais ligado à crise estrutural do
capitalismo (que é uma crise múltipla) e, com a emergência chinesa, à
bipolarização interimperialista entre as grandes potências
capitalistas-imperialistas atuais.
Sempre
que há uma crise na economia mundial isso repercute nacionalmente, como nós já
vimos em diversos momentos a exemplo da simbiose entre crise econômica e
pandemia em 2020/2021. Entretanto, há muito tempo o contexto internacional não
interferia de modo tão imediato na nossa vida nacional e nas decisões que vêm
sendo tomadas pelo governo, pela oposição e pelos movimentos na sociedade
civil. Tanto aqueles tendencialmente à esquerda quanto à direita.
Por
outro lado, recentemente tivemos um certo “renascimento” do discurso da luta de
classes e da questão do imperialismo. Luta de classes e imperialismo que não
haviam deixado de existir, é claro, mas estavam ausentes nos discursos da
esquerda social liberal.
Recentemente,
o presidente Lula da Silva mudou o seu discurso sobre algumas questões. Com seu
instinto de sobrevivência e com a necessidade de sair das cordas, diante da
ofensiva do centrão para tomar as rédeas do governo de uma vez (e não somente
dividir o poder como já estava acontecendo), fez uma contraofensiva relativa.
Num
primeiro momento, passou a fazer o discurso da “luta de classe”, com aquele
conjunto de peças de comunicação colocando a contradição entre a riqueza de uns
e a pobreza da maioria. E sobre os ricos que buscavam preservar e ampliar
privilégios — evitando impostos como do IOF e também uma diminuição do imposto
de renda para quem ganha até R$ 5.000 por mês.
Mesmo
com diversos erros de conteúdo e abordagem, isso demonstrou uma mudança no
comportamento do governo e teve resultados positivos na sua imagem, diante da
situação negativa em que estava. E, em seguida, vieram as respostas sobre a
questão da soberania nacional diante dos ataques de Donald Trump.
Melhora
na correlação de forças e estimulo à luta popular
O
discurso da “soberania” também ajudou a criar uma melhora no quadro político em
geral, além de uma animação para a luta popular.
Por
outro lado, comprovou que o problema do governo não estava apenas na sua
comunicação, como dizia o governo e seus partidos de sustentação. Tampouco era
verdade que não havia outra saída, além de recuar sempre, abrindo espaço para a
direita chamada Centrão, no suposto sentido de evitar um avanço da extrema
direita neofascista. Aquela tática ultra defensiva ficou comprovadamente
derrotada. Enfim, houve uma melhora no contexto da disputa contra a extrema
direita. Contudo, é uma situação ainda não está consolidada.
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Mas a extrema direita e a direita em geral continuam fortes
Como
mostram os resultados nas pesquisas, apesar da redução de sua capacidade de
mobilização, o bolsonarismo e suas candidaturas continuam fortemente presentes
na sociedade. E a rejeição ao governo Lula da Silva diminuiu, mas continua
forte.
Portanto,
Bolsonaro continua tendo um ativo apoio da maioria das lideranças da extrema
direita e uma parte da direita tradicional, seja os mais ostensivos e claros,
seja aqueles mais moderados ou discretos.
Mesmo
quando fazem a defesa do indefensável (os ataques de Trump/EUA contra o
Brasil), continuam fortes nas intenções de voto.
Ou
seja, isso volta a ressaltar um padrão histórico de comportamento político dos
brasileiros que combina um voto ou uma opção política com base numa
racionalidade pragmática (que considera os elementos concretos da vida
material), com uma forte presença do voto que tem como base um perfil de
valores ideológicos.
Portanto,
um tipo de apoio ou rejeição que extrapola uma avaliação de custo-benefício em
relação à situação econômica e social e às respostas que o governo dá às
questões mais imediatas da vida material.
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Soberania nacional real e subsoberania
Por
tudo isso, é preciso avaliar de uma maneira mais aprofundada o significado
dessa chamada política “soberana” e o discurso de soberania que vem sendo feito
pelo governo Lula e grande parte da “esquerda”.
Inclusive,
está havendo uma certa mistificação em torno da figura de Lula da Silva, que
vem sendo apresentado como uma espécie de super-homem anti-imperialista. E não
é isso que está acontecendo.
Na
verdade, a disputa que está sendo feita não é uma luta “anti-imperialista”, de
plena “soberania”. Trata-se, na real, apenas de uma luta para manter uma
subsoberania crônica do Brasil. Evitando uma genuflexão completa em relação a
Trump, mas continuando a manter uma posição de submissão ao neoliberalismo e ao
grande capital imperialista em geral, inclusive dos EUA.
O
Brasil continua dependente e subordinado e o que as políticas do governo e das
classes dominantes no Brasil em geral estão procurando fazer é manter uma certa
diversificação da dependência. Uma diversificação dessa subsoberania.
Procurando manter alguma margem de manobra política e negociação econômica com
vistas a uma melhor lucratividade das frações principais do grande capital no
Brasil.
Digamos
assim: a defesa de uma certa multilateralidade da dependência e da subordinação
não é efetivamente um rompimento com a posição de subordinação em relação ao
grande capital internacional em geral.
E isso
acontece porque as frações principais, tanto das classes como das elites
hegemônicas brasileiras, querem escolher quais são as relações que permitem um
melhor custo-benefício econômico e lucratividade para elas. Preferem um
imperialismo na vertente Biden.
Já
tínhamos visto algo parecido durante o governo Bolsonaro. Naquele caso, no que
diz respeito às relações do Brasil com a China. O discurso inicial de Bolsonaro
e do seu núcleo ideológico mais delirante era anti-China. Ao ponto de dizer que
a vacina chinesa da Covid inoculava um chip comunista etc.
Mas
isso acabou saindo da pauta daquele governo justamente porque as frações mais
importantes do grande capital dentro do Brasil não queriam conflito, queriam a
manutenção de boas relações com a China.
Portanto,
precisamos ter consciência do que está acontecendo. Que o discurso predominante
do governo e da grande maioria da “esquerda” e das lideranças em movimentos
sociais não está sendo uma linha política efetivamente anti-imperialista. No
conteúdo concreto, não se difere significativamente das lideranças liberais e
da mídia liberal burguesa. É apenas um discurso de defesa da subsoberania. Em
outras palavras, é pela continuidade da chamada globalização liberal
imperialista do período anterior (vertente Biden). É isso que estão procurando
preservar, diante das políticas protecionistas de Trump e dos ataques que ele
vem perpetrando.
A
situação também vem facilitando uma maior proximidade com a China, porque isso
é a necessidade da própria classe dominante brasileira, das suas frações
principais, que querem continuar garantindo a sua parte na reprodução do
capital — aquela parte do valor que não é transferida às potências
capitalistas.
Mas, no
fundamental, o que vem sendo defendido é o livre-mercado capitalista, de tipo
neoliberal, com todas as letras. Ou seja, o livre mercado da globalização
imperialista. Que também é a política que interessa à China, que hoje é a
potência capitalista-imperialista com melhores condições de capitalizar numa
ordem mundial gerida pelas regras liberais da OMC.
Vejam
bem. Isso é uma contradição bastante peculiar. Trava-se uma luta pela
“soberania”, porém no sentido do direito soberano de um país manter relações de
dependência neoliberal com as diversas potências imperialistas. De escolher com
quem manter relações de dependência e subsoberania.
Porém,
na verdade, isso não é um problema somente no Brasil ou da chamada esquerda
brasileira. Basta olhar o que está sendo escrito e expressado por meio de
lives, vídeos, artigos etc. pela “esquerda” em diversos países da América
Latina e do mundo.
Contraditoriamente,
aqueles que tanto falavam e combatiam o chamado “globalismo” estão, de fato,
agora, defendendo a “soberania” para manter o “globalismo” e o livre-mercado.
E, do
ponto de vista concreto, Trump é aquele que está aplicando políticas que tentam
limitar, parcialmente, aquelas relações chamadas de globalismo, patrocinadas
pelos próprios Estados Unidos! Ele toma uma série de medidas de protecionismo
econômico, que tenta bloquear, ao menos parcialmente, essas relações da
globalização imperialista, no interesse dos EUA. E não vai além de ser
parcialmente, devido ao ponto de integração alcançado pelo capitalismo mundial.
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Então, é preciso mudar não só o discurso, mas a própria linha política
Precisamos
ter bastante clareza de que todo esse discurso de defesa das exportações
brasileiras significa, no fundamental, a defesa da dependência da exportação de
bens primários, por exemplo. Da manutenção de nossa posição de dependência
primário-exportadora. O que está sendo negociado é mercado para o agronegócio,
para mineração, para o extrativismo e para um conjunto de setores que sugam
nossas riquezas e provocam a destruição ambiental. É “atração de capitais”
imperialistas para superexplorar nossa força de trabalho. É mercado para
mercadorias produzidas com base nessa superexploração e para a transferência de
valor para os capitalistas estrangeiros. É “livre mercado” para aquilo que
reproduz a nossa dependência e nossa subsoberania.
É
preciso alterar esse tipo de política e discurso. Não podemos continuar apenas
repetindo o que vem sendo feito. Portanto, é fundamental que a esquerda e os
movimentos populares de modo geral incorporem um conjunto de outras bandeiras
que são efetivamente da soberania nacional.
Por
exemplo, a nacionalização e estatização das minas de terras raras e outros
minerais estratégicos. Vamos aceitar a entrega de nossas terras raras para
facilitar os negócios do Agro? E como fica a questão da dívida pública, que
continua nos impondo ajustes fiscais e corte de verbas para a educação, saúde
etc? Soberania, por exemplo, é reestatizar as empresas privatizadas, ou que
empresas e recursos naturais que continuam sendo privatizados e
desnacionalizados.
Como
vamos nos posicionar diante de uma produção do agronegócio, que é predatória do
meio ambiente brasileiro e das nossas condições de vida? Para atender
interesses de empresas imperialistas, independente de suas origens nacionais?
Por
isso, é importante dar ênfase na atual conjuntura, mais do que nunca, à luta
anti-imperialista no seu sentido mais abrangente e profundo.
É
também uma chance de resgatar os símbolos nacionais do Brasil, no sentido amplo
do termo, das mãos do neofascismo e da extrema-direita. Mas, é preciso fazer
isso indo além da defesa de uma subsoberania a serviço do “livre mercado” do
grande capital em geral.
Pois,
não é suficiente a linha de defesa da soberania que vem sendo desenvolvida pelo
governo e pela maioria da chamada “esquerda”. Apesar do combate a Trump ser
necessário e estar tendo algum efeito político contra a extrema-direita
neofascista.
É
preciso enfatizar as outras bandeiras que estão presentes em um programa
popular, democrático e ecossocialista, especialmente aquelas vinculadas ao
anti-imperialismo, contra os monopólios privados, o latifúndio do agronegócio
moderno, as opressões em geral e em defesa do meio ambiente etc.
Evidentemente,
é fundamental toda a unidade para combater as intervenções de um presidente de
um país estrangeiro, como Donald Trump dos EUA, na nossa vida política
concreta. Inclusive nos julgamentos do STF e em ações específicas do governo
brasileiro, como as medidas tomadas por Trump contra o programa “Mais Médicos”
e assim por diante.
Porque,
no final das contas, a continuidade das coisas como estavam antes de Trump é a
continuidade e o reforço da dependência, da desigualdade social em nosso país e
da destruição ambiental. E, portanto, um tipo de política que acaba
contribuindo, em termos de médio prazo, para reforçar a direita e a extrema
direita e a hegemonia burguesa de modo geral dentro do nosso país e ao nível
internacional.
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As eleições de 2026, a política externa e a soberania nacional
Finalmente,
essa é uma luta que vai continuar até 2026 e depois. Pois a extrema direita
veio para demorar (porque se sustenta em valores ideológicos) e o seu
enfrentamento será prolongado.
Porém,
a questão da soberania pode ser um importante eixo de campanha para a esquerda
em geral (não somente presidencial) em 2026. A tradição das disputas eleitorais
no Brasil, especialmente presidenciais, é não dar importância à Política
Externa do Brasil.
Na
campanha de 2022, fizemos uma pesquisa bem abrangente dos programas de Política
Externa defendidos por Lula da Silva e Jair Bolsonaro. O resultado, que pode
ser visto no artigo que está no link a seguir, foi que na campanha pública
(Horário Eleitoral Gratuito, debates e entrevistas nas TVs), o tema foi
praticamente ausente nas duas candidaturas.
No
momento em que direita e extrema direita tentam pautar a questão da violência e
do crime organizado como eixo fundamental da disputa, uma defesa consistente da
soberania nacional pode se tornar um tema central para a disputa política e
ideológica e para desmoralizar o patriotismo de fachada do neofascismo. Mas,
isso fica para um próximo artigo.
Fonte:
Outras Palavras

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