O
menino de 140 mil anos que pode ser híbrido mais antigo entre Homo sapiens e
neandertais
Uma
descoberta revolucionária para a compreensão da evolução da nossa espécie e dos
rituais humanos modernos.
É assim
que um grupo de cientistas, em um estudo publicado em julho pela revista
científica L'Anthropologie, define o crânio de uma criança que viveu 140 mil
anos atrás, encontrado há quase um século em uma das cavernas do Monte Carmelo,
no noroeste de Israel. O local é considerado o mais antigo cemitério conhecido.
A
criança tinha três a cinco anos de idade. Ela teria sido enterrada
intencionalmente naquela região do Levante, o corredor biogeográfico onde se
misturaram fluxos genéticos de linhagens nativas e outros grupos provenientes
da África e da Eurásia, durante o Pleistoceno Médio.
O
crânio recebeu o nome de Skhūl 1° porque foi o primeiro fóssil encontrado pela
arqueóloga britânica Dorothy Garrod (1892-1968) e pelo antropólogo físico
americano Theodore McCown (1908-1969), que exploraram a região em 1931.
Segundo
esta nova pesquisa, sua morfologia seria a evidência mais antiga conhecida da
miscigenação entre o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens.
É bem
documentado que as duas espécies se misturaram e que nós, seres humanos
modernos, temos uma herança genética neandertal entre 1% e 5%. Mas a época em
que viveu Skhūl 1° faz toda a diferença.
"O
que dizemos agora, na verdade, é revolucionário", explica à BBC News Mundo
(o serviço em espanhol da BBC) o paleoantropólogo israelense Israël
Hershkovitz, professor do Departamento de Anatomia e Antropologia da
Universidade de Tel Aviv, em Israel, que liderou a pesquisa.
"Nós
demonstramos que o primeiro encontro entre os neandertais e o Homo sapiens não
ocorreu há cerca de 50 mil anos, como se imaginava, mas sim pelo menos cerca de
100 mil anos antes, há 140 mil anos, o que é extremamente significativo."
Mas nem
todos os cientistas estão de acordo com esta conclusão.
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Mosaico inclassificável
Skhūl
1° morreu com pouca idade, de causas naturais.
Não se
sabe muito sobre como ele viveu. Também não é possível determinar ao certo qual
doença pode tê-lo matado com tão pouca idade, nem seu sexo biológico.
O que
se sabe é que ele teria sido enterrado ao lado de outras crianças e adultos no
que se considera um cemitério coletivo, uma das descobertas mais significativas
da paleoantropologia na região do Levante, no princípio do século 20.
A
morfologia do seu crânio e sua mandíbula (que se separou acidentalmente do
esqueleto durante a escavação e foi consolidada com gesso) foi reavaliada em um
novo estudo, por meio de imagens de tomografia computadorizada e reconstruções
virtuais em 3D, para esclarecer sua associação e sua taxonomia.
Ao
compará-lo com os restos de outras crianças, Homo sapiens e neandertais, o
grupo de cientistas liderado por Hershkovitz observou "uma natureza em
mosaico das suas características morfológicas" e uma "dicotomia
morfogenética" entre as duas partes.
Ou
seja, enquanto a estrutura craniana da criança tinha, de forma geral, traços
próprios do Homo sapiens, as características da mandíbula apontavam "forte
afinidade" com o grupo evolutivo dos neandertais.
"A
combinação de traços observada em Skhūl 1° pode indicar que a criança era um
híbrido" entre neandertais e Homo sapiens, detalha o estudo.
Até o
momento, a criança era classificada como ser humano moderno, mas os
pesquisadores sugerem que é "quase impossível" classificá-lo em um ou
outro grupo.
Hershkovitz
explica que o termo "híbrido" não indica que ele fosse filho de um
neandertal e um Homo sapiens, mas sim o resultado da miscigenação progressiva
entre as duas espécies.
"Nós
o chamamos de população com introgressão, o que significa que os genes de uma
população penetraram lenta e gradualmente no outro grupo."
"Por
isso, na realidade, o que observamos em Skhūl é uma população quase sapiens,
mas com maior proporção de genes neandertais", defende ele.
Neste
sentido, os pesquisadores propõem que a criança seja classificada como
pertencente a um "paleodemo", ou seja, uma população caracterizada
por grande diversidade biológica, resultado da miscigenação, que merece ser
reconhecida como um grupo particular dentro da espécie.
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Os antecedentes do menino de Lapedo e de Yunxian 2°
Até o
final dos anos 1990, era consenso científico que os neandertais e os seres
humanos modernos não poderiam ter se cruzado, por serem duas espécies
distintas.
Por
isso, a descoberta, em 1998, do esqueleto quase intacto do menino de Lapedo, em
Portugal, também com características mistas entre sapiens e neandertais, trouxe
uma mudança radical para o nosso conhecimento da evolução.
O
menino de cerca de quatro anos de idade viveu há cerca de 29 mil anos. Ele
evidenciava uma clara hibridização entre os dois grupos.
A
revolução confirmada por essa teoria veio na década de 2010, quando foi
sequenciado o primeiro genoma neandertal. E, ao ser comparado com o de seres
humanos de diferentes regiões do mundo, concluiu-se que 1% a 5% do DNA de
populações não africanas provinham dos neandertais.
Se o
menino de Lapedo nos mostrava um cruzamento recente na história da evolução
humana, Skhūl 1° indica uma época muito anterior.
Em
setembro, a revista Science publicou um estudo sobre Yunxian 2°, um crânio
humano de um milhão de anos, encontrado na China. Ele sugere, segundo os
cientistas, que o Homo sapiens começou a surgir pelo menos meio milhão de anos
antes do que pensávamos.
Mas os
pesquisadores que estudaram Skhūl 1° afirmam que esta descoberta não está
relacionada com as conclusões do seu estudo.
"Ele
não tem relação com o desenvolvimento, nem com a interação entre Homo sapiens e
neandertais no Mediterrâneo oriental", dizem os pesquisadores.
"O
crânio chinês é supostamente muito antigo e, com certeza, não pertence nem ao
Homo sapiens, nem a neandertal. Não surpreende que houvesse outras espécies de
Homo caminhando sobre a Terra durante o Pleistoceno médio e superior."
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'Pouco sentido biológico'
O
professor de pesquisa Antonio Rosas, do Departamento de Paleobiologia do Museu
Nacional de Ciências Naturais da Espanha, coloca em dúvida algumas das
descobertas sobre Skhūl 1°.
Para o
acadêmico, o fato de que os pesquisadores se baseiam em uma conjunção de uma
base do crânio própria do Homo sapiens e uma mandíbula coerente com a anatomia
neandertal é uma "mistura" que, segundo ele, "tem pouco sentido
biológico".
"A
determinação genética da anatomia é complexa e não costuma ser distribuída tão
hermeticamente em elementos ósseos isolados, como o crânio e a mandíbula",
explica ele.
Além
disso, outro exemplo muito mais recente, também proposto como híbrido entre
Homo sapiens e neandertal — o Lagar Velho, em Portugal —, mostra uma mandíbula
inequivocamente de Homo sapiens, ao contrário de Skhūl 1°.
Para
Rosas, a chave está na taxonomia e na interpretação do enterro que, como se
sabe, sofreu alterações posteriores ao próprio sepultamento.
"A
possibilidade de que a mandíbula de Skhūl 1° seja de um indivíduo neandertal
que tenha ido parar no túmulo de um Homo sapiens deve ser considerada",
destaca ele.
É
largamente reconhecido no mundo científico que um dos grandes desafios do
estudo da evolução é a capacidade de recuperar o DNA de fósseis antigos.
"Sem
dúvida, aqui há um problema metodológico", prossegue Rosas. "A
hibridização entre espécies humanas nunca foi declarada de forma incontestável
com dados paleogenômicos."
"Apenas
com dados morfológicos, atualmente é difícil assegurar estes fenômenos.
Desconhecemos, em grande parte, como a combinação das informações genéticas de
neandertais e Homo sapiens se expressa na anatomia."
Outros
cientistas expressaram preocupações similares em diferentes revistas
científicas. Eles solicitam a análise do DNA de Skhūl 1° para verificar as
conclusões deste novo estudo.
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A colaboração e as práticas mortuárias
Além de
chamar a atenção para uma suposta hibridização precoce na evolução humana
recente, Skhūl 1° também fornece informações valiosas sobre dois outros
elementos: a colaboração entre os dois grupos e novas perspectivas sobre
práticas culturais historicamente associadas ao ser humano moderno.
Hershkovitz
destaca que "o mais dramático e mais importante é que, agora, sabemos que
os dois grupos conseguiram viver lado a lado por um período de tempo muito
longo".
Para
ele, esta descoberta continua contrariando o paradigma de que o Homo sapiens
seria uma espécie que se impôs sobre as demais pela "lei do mais
forte".
"Esta
é a verdadeira surpresa, pois, durante muito tempo, os antropólogos pensaram
que os Homo sapiens fossem os únicos responsáveis pela eliminação de todos os
outros grupos de Homo na Terra", destaca Hershkovitz.
"Eles
não desapareceram porque éramos uma espécie agressiva que os expulsou, deslocou
ou pressionou até a extinção. Pelo contrário."
"Basicamente,
o que aconteceu é que fomos assimilando essas pequenas populações nos grupos
maiores de Homo sapiens e, pouco a pouco, eles desapareceram", afirma ele.
O
estudo também destaca que Skhūl 1° foi enterrado no que é interpretado como um
cemitério coletivo, onde os mortos eram sepultados com oferendas. Isso indica
um sentido de pertencimento grupal e respeito com as crianças, além de um
possível comportamento territorial precoce.
"Ao
contrário do paradigma dominante, as práticas mortuárias mais antigas
conhecidas, envolvendo sepultamentos, não podem ser atribuídas exclusivamente
ao Homo sapiens em relação ao Homo neanderthalensis", afirma o estudo.
"Por
muitos anos, consideramos o cemitério uma invenção muito recente da cultura
humana. O cemitério implica estratificação social, crença na vida após a morte,
muitas coisas sobre a cultura humana, sua natureza, suas crenças, sua
psicologia", explica Hershkovitz.
"E,
aqui, precisamos reconhecer: nós já tínhamos isso 140 mil anos atrás."
Fonte:
BBC News Mundo

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