domingo, 30 de novembro de 2025

Bruno Fonseca: Lei Rouanet - obra sobre armas aprovada nos anos Bolsonaro é lançada com dinheiro da Taurus

O ano era 2022. O presidente era Jair Bolsonaro, hoje condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por golpe de Estado e preso por violar a tornozeleira eletrônica que o monitorava na prisão domiciliar. No governo do ex-capitão, o secretário de Incentivo e Fomento à Cultura da época André Porciuncula disparou: “Pela primeira vez vamos colocar dinheiro da Rouanet em eventos de arma de fogo, vai ser super bacana isso”, como a Agência Pública mostrou com exclusividade naquele momento. Pois agora, em 2025, a promessa tornou-se realidade.

Neste mês de novembro, foi lançado um livro sobre a história das armas no Brasil com recursos captados via Lei Rouanet. A obra “Armas – A democracia entre a propaganda e a realidade” captou mais de R$ 420 mil através da Rouanet. O lançamento do livro aconteceu no dia 16 de novembro, no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, com o jornalista que assina o livro, Ricardo Viveiros.

Todo o dinheiro para bancar o livro via Rouanet veio da Taurus, a maior fábrica de armas do Brasil e a maior fabricante de revólveres do mundo. Segundo o painel do Ministério da Cultura que a reportagem consultou, a Taurus patrocinou R$ 336 mil e doou outros R$ 85 mil para o livro.

A Rouanet funciona como um incentivo fiscal: isto é, empresas colocam dinheiro em projetos aprovados pela Lei e, a partir desse “investimento”, podem abater impostos. Em outras palavras, a Taurus pode abater impostos a partir do dinheiro usado para patrocinar o livro sobre armas.

<><> Por que isso importa?

•        A Taurus já vendeu mais de 31 milhões de armas de fogo e chegou a produzir em um ano (2021), 2,25 milhões de unidades.

•        A Lei Rouanet foi criada para estimular e fomentar a produção, preservação e difusão cultural por meio do direcionamento de até 4% do Imposto de Renda devido tanto de pessoas físicas como de pessoas jurídicas.

<><> “Armas e democracia”: o que conta o livro?

O livro, com 130 páginas, faz um resgate histórico sobre o Brasil desde o início da colonização, para mostrar situações que envolveram uso de armas. Nos últimos capítulos, a obra recorda a história do referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, realizado em 2005, durante o primeiro governo Lula (PT), no qual a população foi consultada sobre a proibição da venda de armas de fogo e munição. Na época, a maioria respondeu ao referendo contra a proibição.

Nos capítulos, o livro narra a articulação do “grande time” que não queria a proibição do armamento, e descreve ações do grupo que fazia campanha pela proibição, como “ataques afrontosos da outra frente”, citando ações da rede Globo com artistas e o lançamento da novela Bang Bang. O tom da campanha que pedia a proibição das armas também é descrito como “clima de belicosidade”. Já a outra campanha, a pró-armas, é descrita como uma “ideia ousada”.

A obra também menciona Bolsonaro, na época um deputado federal, que criticava na Comissão de Segurança da Câmara a proibição às armas: “Entreguem suas armas! Os vagabundos agradecem!”, dizia a faixa levada pelo político, hoje preso.

<><> Livro chegou a ser suspenso pelo Ministério da Cultura

A execução do livro sobre armas no Brasil chegou a ser suspensa pelo Ministério da Cultura em 2023. Na época, após uma recomendação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), o livro foi suspenso por falta de comprovação de despesas ou dos resultados alcançados, e, também, por conflito de interesse e vantagem indevida do patrocinador, a Taurus.

Além disso, o ministério apontou outro problema: o projeto tinha a contrapartida de fazer cinco palestras gratuitas presenciais com professores e estudantes de escolas públicas do Brasil. Na época, o Ministério avaliou que a proposta era imprópria, por ser um “estímulo ao armamento direcionado a jovens estudantes e aos professores da rede pública e a iniciativa de fazer divulgação em ambientes educacionais, (…) especialmente em um cenário crescente e alarmante de violência nas escolas brasileiras”.

Procurado pela Pública, o Ministério da Cultura informou que a suspensão do livro foi revogada em 2024, e que o projeto está agora em fase de execução até 31 de dezembro de 2025, que é também o prazo para envio de comprovação dos valores arrecadados. O governo também afirmou que o conflito de interesse apontado anteriormente foi avaliado em outubro de 2024, quando a comissão aprovou, por unanimidade, a continuidade do projeto.

<><> “Rouanet das armas”: a estratégia de guerra cultural

Em 2022, quando Porciuncula anunciou dinheiro da Rouanet para armas, a proposta era ainda mais ousada. Segundo ele mesmo declarou, o governo Bolsonaro teria R$ 1,2 bilhão para dois “megaeventos” do Bicentenário da Independência, em setembro de 2022, e o dinheiro poderia ser usado por criadores de conteúdos pró-armas.

“Estamos lançando agora, de linha audiovisual, que vocês podem usar para fazer documentários, filmes, webséries, podcasts, para quê? Para trazer a pauta do armamento dentro de um discurso de imaginário. Trazer filmes sobre o armamento, da importância do armamento para a civilização, a importância do armamento para garantir a liberdade humana”, afirmou durante a Convenção Nacional Pró-armas. Ele estava ao lado do presidente da Associação Nacional Pró-armas e hoje deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, Marcos Pollon (PL).

A Rouanet é uma ferramenta rotineiramente criticada por Bolsonaro e seus apoiadores. Ele já a chamou de desgraça. Durante a gestão do secretário de cultura do governo Bolsonaro, Mário Frias, a lei havia reduzido o teto de projetos apoiados de R$ 1 milhão para R$ 500 mil, o de artistas para R$ 3 mil por projeto aprovado e o aluguel de teatro para R$ 10 mil.

Apesar das críticas, a estratégia de Frias e Porciuncula, segundo eles mesmos declararam, era usar a Rouanet para a guerra cultural: agir dentro do imaginário coletivo para que a população mude a percepção e apoie a pauta do armamento. Para isso, o secretário afirmou ter colocado a equipe e os recursos da Secretaria da Cultura à disposição de armamentistas.

“Então é muito importante, que a gente faça, que a gente trabalhe o audiovisual. Se a gente acredita em armas, a gente precisa criar os heróis. A gente precisa entender que as narrativas, principalmente para população mais jovem, não são a partir de estatística, coronel, não são a partir de números que a gente vai convencer essa garotada de que nós queremos um Brasil melhor, e sim a partir da cultura”, disse Frias.

•        Partido de Tarcísio encara investigações por vínculos de membros com crime organizado e corrupção. Por Paulo Montoryn

A edição de Cartas Marcadas desta semana não é uma nova investigação nem a revelação de um furo inédito. É um esforço de reconstrução: reunir histórias já conhecidas, casos que surgiram de maneira fragmentada nos últimos meses, mas que só fazem sentido quando observados em conjunto.

É verdade que o jornalismo factual registrou cada episódio — um aqui, outro ali. Mas sempre como acontecimentos episódicos, quase acidentais. O que falta é enxergar o desenho maior: a linha que conecta figuras centrais da república, como Tarcísio de Freitas e Hugo Motta, ao ambiente político que torna esses episódios possíveis.

Existe, na imprensa tradicional, uma obsessão em buscar vínculos entre a esquerda, o tráfico de drogas e as facções criminosas. O caso da Dama do Tráfico e a obsessão com o MC Oruam não me deixam mentir. Mas essa mesma imprensa lava as mãos diante de situações muito mais explícitas envolvendo agentes da direita.

Sim, os mesmos jornais que tratam histórias frágeis como grandes escândalos ignoram, minimizam ou relativizam casos sólidos, documentados e reiterados. Esta edição, portanto, não apresenta novidades — ela apenas coloca lado a lado aquilo que deveria ter sido analisado dessa forma desde o início. Vamos aos fatos.

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Na segunda edição de Cartas Marcadas, publicada em julho deste ano, eu contei como o Republicanos, o partido de Hugo Motta e Tarcísio de Freitas, costuma pregar austeridade no uso do dinheiro público enquanto circula em jatinhos pagos com fundo partidário e ostenta jantares com bifes folheados a ouro em Nova York.

A resposta deles àquela reportagem foi a de sempre: exagero, perseguição, casos isolados. Mas os meses seguintes mostraram que “isolado” talvez seja a última palavra para descrever o que aconteceu. Desde então, uma sequência de episódios desmonta a narrativa de excepcionalidade.

Um mês depois, em agosto, o Republicanos veiculou uma propaganda em TV aberta em que exibia o ex-prefeito de Embu das Artes, Ney Santos, como porta-voz do partido, felicitando a sigla pelo seu aniversário de 20 anos.

Aos desavisados: Ney Santos e o sócio Ricardo Luciano Andrade dos Santos foram investigados durante quase 11 anos por suspeita de lavar dinheiro para o Primeiro Comando da Capital, uma das  maiores facções criminosas do país, por meio de uma rede de postos de combustíveis.

Em setembro, a CPI do INSS revelou que uma das principais associações envolvidas no esquema de descontos ilegais a aposentados comprou, por meio de uma ONG parceira, uma aeronave do deputado federal Euclydes Pettersen, do Republicanos de Minas Gerais.

O caso não foi grande surpresa para quem lê o Intercept Brasil. Em abril deste ano, o repórter Thalys Alcântara já havia tratado de graves suspeitas envolvendo Pettersen, ao revelar que o deputado empregava em seu gabinete um piloto acusado de atuar para o tráfico de drogas ligado ao Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Na semana passada, Petterson foi um dos alvos de mandados de busca e apreensão cumpridos pela Polícia Federal em uma nova fase da Operação Sem Desconto, e foi apontado como o parlamentar mais bem remunerado num esquema de propina de R$ 14,7 milhões no INSS.

No dia seguinte, na Baixada Fluminense, outro integrante do Republicanos, Marcos Henrique Matos de Aquino, vereador mais votado de São João de Meriti, foi detido dirigindo um carro oficial durante uma operação que investigava o avanço do Comando Vermelho.

Aquino foi preso portando uma arma irregular e remédios controlados. O vereador pagou fiança, falou em perseguição política e saiu — mas a polícia agora investiga a relação dele e do irmão com o CV.

O mês de novembro também reservou outra notícia bombástica no Republicanos. O prefeito que o partido tratava como potencial candidato ao governo paulista em 2026 (caso Tarcísio se lance à Presidência) foi afastado por chefiar uma organização criminosa em Sorocaba.

Rodrigo Manga foi acusado pela PF de liderar uma organização criminosa com dois núcleos: um financeiro, que lavava dinheiro por meio da empresa da primeira-dama e de contratos com uma igreja; e um político, responsável por negociar contratos e propinas na saúde municipal.

A sucessão de casos impressiona pelo número e pelo contraste com a imagem que o partido tenta projetar. O Republicanos se vende como guardião da ordem, da moralidade e, segundo o que diz Ney Santos na propaganda na TV, é “o maior partido conservador no Brasil”.

Mas as histórias se repetem: Baixada, Minas, Amazônia e Sorocaba. Uma sequência de investigações por corrupção, lavagem de dinheiro e relações com PCC e Comando Vermelho convivendo em absoluta harmonia com o tal discurso conservador.

Esse panorama ganha ainda mais peso porque Tarcísio de Freitas é, hoje, virtual candidato à Presidência da República em 2026, enquanto Hugo Motta comanda a Câmara dos Deputados. O Republicanos não é um coadjuvante: é o partido que controla o principal governo da direita.

Por isso, entender o entorno político que esses líderes constroem é fundamental para compreender o perigo do projeto que quer comandar o país.

 

Fonte: Agencia Pública/Cartas Marcadas

 

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