sexta-feira, 28 de novembro de 2025

José Dirceu: A esquerda no enfrentamento do crime organizado

Com o abraço das forças de direita, do Centrão e dos bolsonaristas, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (18/11) o projeto de lei Antifacção. Pela forma como o fez – após seis versões modificadas pelo relator, Guilherme Derrite (PP-SP), a desfiguração da proposta original do governo com viés claramente partidarizado, o incentivo à blindagem de organizações criminosas e, sobretudo, a evidente tentativa de esvaziar o papel do governo federal – a maioria da Câmara não derrotou apenas o governo.

Perde o Brasil, e também mais uma oportunidade de qualificar o debate da segurança pública e escapar da sanha punitivista e da abordagem que há pelo menos 30 anos fracassa no país, sustentada na ideia de que basta o endurecimento penal e a política da vingança para superarmos a violência que assusta grande parte da população brasileira.

O efeito imediato é também prosseguir o mito de que a direita é a única força política que tem algo a dizer e mostrar em relação à segurança pública. Não é, e os erros e confusões do processo de aprovação demonstram isso.

O projeto enviado pelo governo do presidente Lula tinha como finalidade modernizar e fortalecer o ordenamento jurídico brasileiro, atualizando normas para um enfrentamento mais eficaz ao crime organizado – hoje a principal chaga geradora de insegurança e violência.

É claro que crimes individualizados preocupam muito, assim como o crescimento da violência contra a mulher e o aumente contínuo da letalidade policial, mas nada se compara à expansão do crime organizado.

Juntamente com a chamada PEC da Segurança Pública, o PL Antifacção era uma resposta firme do governo ao problema, sobretudo ao fortalecer os mecanismos de articulação nacional para enfrentar o crime organizado e sua atuação nacional e transnacional. Também propôs mecanismos acertados para modernizar as formas de descapitalização do crime.

Mas o relator bolsonarista Guilherme Derrite trabalhou justamente para enfraquecer a atuação federal e reduzir o esforço de articulação entre o governo federal e os governos estaduais.

Ora, estes não têm como combater organizações criminosas que atuam em vários estados e fazem parte de redes internacionais de tráfico de armas e drogas. Guilherme Derrite fez mais. Por exemplo, sustentou a divisão dos recursos provenientes de bens apreendidos do crime entre os fundos estaduais de segurança e a Polícia Federal, retirando recursos que deveriam ser concentrados na PF, instituição-chave para investigar as organizações criminosas.

Poderia ser pior, pois em tentativa felizmente neutralizada, o secretário de Segurança de Tarcísio de Freitas queria retirar a competência da PF para a investigação e subordinar sua atuação à provocação dos governadores – um caminho fácil para o uso da instituição para perseguir inimigos, proteger amigos e ajudar aqueles que ganham suborno do crime organizado ou que pretendem cobrá-lo quando puderem vender para o PCC ou para o CV eventual blindagem contra a PF.

<><> Inconstitucionalidades

Ao longo do processo, Guilherme Derrite ainda mostrou desconhecimento da legislação penal e do próprio combate ao crime organizado, inseriu inconstitucionalidades e cometeu erros jurídicos grosseiros. A visão que continua a prevalecer na direita e extrema-direita é o discurso praticamente monotemático – e ultrapassado – sobre o aumento das penas.

Como afirmou o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, o projeto tende a produzir um “caos jurídico” na aplicação das normas sobre organizações criminosas, ao criar novos tipos penais paralelos aos que já existem na legislação, gerando sobreposição de condutas.

É hora de desfazer esse mito duplo, de competência da direita na segurança pública e de que a esquerda está despreparada para enfrentar o crime. Em primeiro lugar, lembremo-nos que a única política de segurança do governo de Jair Bolsonaro foi liberar o uso de armas e munições e deixar que cada cidadão comprasse a sua para se defender do crime por conta própria.

O recente episódio da megaoperação do governador do Rio, o bolsonarista Cláudio Castro, mostrou também um outro veio da visão da direita e da extrema-direita: apostar no espetáculo bélico de operações policiais que apenas saciam a sede de violência do bolsonarismo, inspira o sentimento de vingança em uma parte da população e alimenta a narrativa político-eleitoral de 2026.

Diante de uma população que, com razão, se sente amedrontada porque vê territórios ocupados, famílias e trabalhadores submetidos ao terror e à opressão das facções criminosas e milícias (em grande parte ligadas à direita, diga-se), é fácil instrumentalizar o medo e transformar operações em solução. Solução aparentemente fácil, mas sem eficácia.

<><> Pressão

A ideia ficou de fora do PL Antifacção, graças à pressão contrária, mas no fundo a direita deseja mesmo é enquadrar facções criminosas como organizações terroristas. A lógica do “narcoterrorismo” é providencial para os “patriotas” bolsonaristas: trata a segurança pública com a lógica da guerra interna e abre caminho, por exemplo, para que agências de segurança dos EUA tratem o Comando Vermelho e similares como “ameaça à segurança nacional” e utilizem instrumentos de contraterrorismo, como interceptações, ligações com iniciativa militar ou forças especiais.

O governo Lula, a esquerda e o PT têm o que dizer e propor. Concretamente o governo vem fazendo, naquilo que lhe cabe, que é propor nova estrutura de integração entre a União e os estados, trabalhar contra o problema nas fronteiras e nos vínculos transnacionais que sustentam o crime organizado e dar apoio aos governos estaduais, que têm a responsabilidade pela condução da segurança pública.

Ao mesmo tempo, apresentou várias propostas que têm sido engavetadas pelo Congresso ou encontram resistência. São exemplos o projeto que aumenta o controle na cadeia do ouro e combate o garimpo ilegal, espaço ocupado pelas organizações criminosas na Amazônia; outro que aumenta as penas para os crimes ambientais, o projeto do devedor contumaz, que inibe a atuação de “laranjas” e reduz o risco de apropriação do mercado por organizações criminosas), e, claro, a PEC da Segurança Pública e, por fim, o PL Antifacção.

É possível mais e precisamos intensificar esse debate até 2026. A criação do Ministério da Segurança Pública é uma necessidade, para mostrar que essa agenda é uma prioridade nacional.

A isso se soma a reforma do sistema penitenciário, há muito tempo convertido em usina de crime; a reforma das polícias, capaz de garantir a profissionalização das corporações e a qualificação das investigações; a restrição das regras relacionadas aos Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), cuja facilitação excessiva tornou-se um escoador farto de armas e munições para o crime; o endurecimento no combate ao contrabando na fronteira; e a adoção sistemática do modelo adotado na Operação Carbono Oculto, realizada a partir da integração entre Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público, e que descortinou a atuação do crime organizado no mercado financeiro, com foco na inteligência, na cooperação institucional e regulatória, na identificação dos mecanismos de lavagem de dinheiro e na descapitalização do crime.

Outro debate extremamente importante é sobre a adoção do modelo da chamada polícia de proximidade, que prioriza a relação contínua, direta e colaborativa entre policiais e comunidades, atuando tanto na repressão ao crime quanto na prevenção, mediação de conflitos e construção de confiança. Foi um modelo adotado, por exemplo, em Medellín, na Colômbia, cidade que conseguiu reverter a violência dos narcotraficantes.

<><> Estratégia

Esse conceito ganhou força dentro de uma estratégia mais ampla de transformação urbana e social: após décadas de violência, a cidade adotou ações integradas que combinaram presença policial comunitária, participação cidadã, programas sociais e requalificação de espaços públicos. Nesse contexto, a polícia passou a trabalhar lado a lado com líderes locais, escolas e organizações comunitárias, fortalecendo vínculos, entendendo necessidades específicas de cada território e criando respostas ao mesmo tempo humanizadas e eficazes. Essa abordagem ajudou a redefinir a relação entre Estado e população, tornando-se referência internacional em segurança cidadã.

As forças de esquerda, tanto em nível federal quanto nos estados, têm este dever com o país, que já deixou claro ver a violência como uma de suas principais preocupações. Será preciso desmontar a politização dessa agenda pelos governadores da direita e qualificar o debate, sem apelar para o jogo fácil e populista que resume o problema ao endurecimento penal e sem instrumentalizar o medo, como faz o bolsonarismo.

Precisaremos também mostrar a ineficácia do modelo da direita, que há 30 anos segue a mesma visão, sem resultados para a população. Cabe a nós mostrar que há alternativa e ela passa pela coordenação entre o governo federal, os governos estaduais e instituições como Polícia Federal, Ministério Público e Receita Federal; pelo mapeamento do fluxo financeiro, desmontando mecanismos de lavagem de dinheiro; pelo rompimento do fluxo de armas para o crime organizado; e pelo investimento em políticas públicas que apresentem oportunidades de vida como caminho para a juventude.

Integração, investigação, inteligência e prevenção dão mais trabalho do que megaoperações destinadas ao falso espetáculo, mas significam caminhos concretos para resolver um problema que se tornou a epidemia do nosso tempo.

•        De narcotraficantes a caciques das facções: a cúpula do crime isolada em Brasília

Válvula de contenção contra o avanço do crime organizado, o Sistema Penitenciário Federal (SPF) é peça central da estratégia governamental adotada desde 2006 no país — e, desde outubro de 2018, em Brasília. O modelo voltou ao centro das atenções com a transferência de sete chefes do Comando Vermelho (CV) após a megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, que resultou em 121 mortos, em 28 de outubro. Eles foram enviados para o Presídio Federal de Catanduvas (PR), um dos cinco em funcionamento no Brasil.

Embora nenhum deles tenha vindo para a unidade instalada em Brasília, a capital permanece como ponto estratégico do tabuleiro federal. O DF abriga — ou já abrigou —, alguns nomes conhecidos do crime organizado no país. Entre eles, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do Primeiro Comando da Capital (PCC) e condenado a mais de 330 anos por formação de quadrilha, tráfico de drogas e homicídio. Ele chegou a Brasília em 2019.

Além de Marcola, 75 presos estão sob rigoroso esquema de segurança na capital, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Jarvis Chimenes Pavão está nessa lista. Processos judiciais obtidos pela reportagem revelam que um relatório da Polícia Federal classificou Jarvis, conhecido como "Pavão", como um "notório narcotraficante brasileiro", que comandou o tráfico de drogas na região fronteiriça de Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero, no Paraguai.

Nos documentos judiciais, ele é citado como "rei da fronteira" e responsável por controlar grande parte do fornecimento de drogas e armas para as grandes organizações e facções criminosas do Brasil, sendo a Europa o principal destino dos entorpecentes.

Desde 2009, o traficante esteva preso na penitenciária Tacumbu, em Assunção, no Paraguai, onde cumpria pena por lavagem de dinheiro e porte ilegal de arma de fogo. A transferência para a Penitenciária Federal de Brasília ocorreu em 2017, quando foi extraditado para o Brasil depois de liderar, de dentro da cadeia paraguaia, um esquema de transporte de cocaína proveniente da Bolívia, do Peru e da Colômbia para a região serrana do Rio Grande do Sul.

<><> Presos

Em outra cela da mesma unidade, numa distância não informada, está o rival de "Pavão": Sérgio de Arruda Quintiliano, vulgo "Minotauro". Em decisão de 2023, que renovou a permanência do criminoso na penitenciária federal de Brasília por mais três anos, a Justiça afirmou que, mesmo preso, ele praticou diversos crimes, "entre os quais o planejamento de cinematográfico plano de fuga do detento Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo 'Marcola' [...], e outros integrantes, podendo-se colher dos elementos de prova o grande poderio financeiro e bélico do grupo".

Também está preso em Brasília Luiz Carlos da Rocha, o "Cabeça Branca", acusado de comandar, por mais de três décadas, um esquema de tráfico internacional de drogas que abastecia, mensalmente, com pelo menos cinco toneladas de cocaína, países da Europa, da África e os Estados Unidos. A operação Sem Saída, da Polícia Federal, deflagrada para desarticular a organização criminosa do narcotraficante, foi considerada a maior da história da corporação contra o tráfico internacional de drogas e lavagem de dinheiro.

A capital recebeu, ainda, Rocco Morabito, líder da máfia calabresa Ndrangheta, do sul da Itália. Rocco foi detido pela PF em 24 de maio de 2021, em um hotel em João Pessoa, e desembarcou na capital federal no dia seguinte. Segundo a polícia, Morabito viveu por cerca de 15 anos em Punta del Este, no Uruguai. Lá, vivia com a identidade de Francisco Capeletto, brasileiro. Em setembro de 2017, foi preso em Montevidéu, onde permaneceu na cadeia até o fim de junho de 2019, quando fugiu com outros três presos. Depois de passar pela Penitenciária Federal de Brasília, foi extraditado para a Itália, em 2022.

<><> Repressão

No primeiro semestre de 2025, oito novos presos deram entrada na Penitenciária Federal de Brasília e quatro deixaram a unidade, de acordo com a Senappen. O órgão não detalha nomes nem destinos por questões de segurança.

O rigor no sistema ultrapassa os informes oficiais. Cercados por extensos muros, os presos da penitenciária federal enfrentam procedimentos padronizados, rigidamente seguidos nas cinco unidades do país, a começar pela comunicação com familiares, amigos e advogados. Qualquer contato é via parlatório ou videoconferência. As revistas são constantes: o detento passa por vistoria todas as vezes em que deixa o dormitório, e as celas são fiscalizadas sempre que ele sai.

A Senappen informa que os agentes de inteligência da penitenciária federal monitoram o circuito de câmeras e que as imagens capturadas são transmitidas, ao vivo, para a sede do órgão, onde outra equipe acompanha a rotina das cinco cadeias.

Transferências de presos dependem de autorização judicial, baseada em critérios técnicos, de segurança e de inteligência penitenciária. Portanto, não há prazo fixo de permanência nas unidades federais, e as decisões sobre a manutenção ou deslocamento são de competência do Poder Judiciário, com base em pareceres técnicos.

<><> Estratégia

Esses mecanismos, embora burocráticos, integram as ações de combate ao poder de comando das facções. No artigo científico O impacto das organizações criminosas na sociedade catarinense, a pesquisadora Larissa Melnik menciona, em um dos trechos, que, entre as estratégias mais relevantes, destaca-se, inicialmente, a separação de lideranças. O escritor Medina Osório menciona que o isolamento de líderes de facções criminosas pode ser uma medida eficaz para enfraquecer a capacidade de comando deles dentro das unidades prisionais e dificultar a articulação de crimes do lado de fora.

"Apesar de parecer uma solução simples, essa medida requer aplicação criteriosa, devendo ser considerada apenas como último recurso, diante dos possíveis efeitos colaterais", destaca o estudo acadêmico.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) esclareceu que o combate e o monitoramento rigoroso de facções criminosas são pilares centrais do programa Segurança Integral. A pasta afirmou que a atuação é integrada, planejada e baseada em inteligência e dados estatísticos, além do monitoramento constante de eventuais movimentações de grupos criminosos por parte das forças de segurança.

A SSP-DF listou de que formas essa estratégia de inteligência é alimentada. Uma delas são os relatórios semanais compartilhados com as forças. Eles apontam dias, horários e locais de maior incidência criminal e subsidiam a elaboração de estratégias para o policiamento ostensivo (PMDF) e a identificação e desarticulação de grupos especializados (PCDF). Segundo a pasta, há o investimento contínuo na capacitação especializada dos agentes, na modernização dos equipamentos e na adoção de tecnologias avançadas para otimizar o trabalho policial e fortalecer os processos de gestão.

"O trabalho integrado contempla medidas de policiamento preventivo e ostensivo, atendimento de emergência, controle de tráfego, fiscalização e ordenamento urbano, visando à segurança da população em todas as esferas."

<><> Indicadores positivos

O Distrito Federal criou uma ambiência de segurança que poucas capitais do país têm a chance de vivenciar: o esvaziamento operacional e econômico das organizações criminosas.

São quase 20 anos de sufocamento de grupos que, por conta das estratégias de segurança pública implementadas, não conseguiram crescer economicamente ou ter uma expansão territorial sólida.

Alguns dos elementos que tornaram esses resultados bastante efetivos foram: aprimoramento técnico dos policiais, ações integradas com outros órgãos para melhoria da inteligência policial e ataques estratégicos à estrutura financeira de grupos que tentaram entrar no DF.

Outro ponto importante foram as operações, nos moldes do que existe em outros estados e países, realizadas em conjunto, e de forma direta, entre o Ministério Público do DF e até em apoio à Polícia Federal. Tudo feito com algumas tropas especializadas, como ROTAM, DOE e BOPE.

O Distrito Federal, pela qualidade dos profissionais de segurança e pelo índice quase inexistente de corrupção, favorece cooperações que seriam consideradas como muito complexas ou até inviáveis, comparando-se com outros estados da federação.

Dessa forma, e desde que não resolvam debulhar a efetividade das polícias da capital do Brasil, permanecerá esse posicionamento de confiança e credibilidade da população entre as forças que possuem os melhores indicadores positivos de segurança pública do país.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Correio Braziliense

 

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