José
Dirceu: A esquerda no enfrentamento do crime organizado
Com o
abraço das forças de direita, do Centrão e dos bolsonaristas, a Câmara dos
Deputados aprovou na terça-feira (18/11) o projeto de lei Antifacção. Pela
forma como o fez – após seis versões modificadas pelo relator, Guilherme
Derrite (PP-SP), a desfiguração da proposta original do governo com viés
claramente partidarizado, o incentivo à blindagem de organizações criminosas e,
sobretudo, a evidente tentativa de esvaziar o papel do governo federal – a
maioria da Câmara não derrotou apenas o governo.
Perde o
Brasil, e também mais uma oportunidade de qualificar o debate da segurança
pública e escapar da sanha punitivista e da abordagem que há pelo menos 30 anos
fracassa no país, sustentada na ideia de que basta o endurecimento penal e a
política da vingança para superarmos a violência que assusta grande parte da
população brasileira.
O
efeito imediato é também prosseguir o mito de que a direita é a única força
política que tem algo a dizer e mostrar em relação à segurança pública. Não é,
e os erros e confusões do processo de aprovação demonstram isso.
O
projeto enviado pelo governo do presidente Lula tinha como finalidade
modernizar e fortalecer o ordenamento jurídico brasileiro, atualizando normas
para um enfrentamento mais eficaz ao crime organizado – hoje a principal chaga
geradora de insegurança e violência.
É claro
que crimes individualizados preocupam muito, assim como o crescimento da
violência contra a mulher e o aumente contínuo da letalidade policial, mas nada
se compara à expansão do crime organizado.
Juntamente
com a chamada PEC da Segurança Pública, o PL Antifacção era uma resposta firme
do governo ao problema, sobretudo ao fortalecer os mecanismos de articulação
nacional para enfrentar o crime organizado e sua atuação nacional e
transnacional. Também propôs mecanismos acertados para modernizar as formas de
descapitalização do crime.
Mas o
relator bolsonarista Guilherme Derrite trabalhou justamente para enfraquecer a
atuação federal e reduzir o esforço de articulação entre o governo federal e os
governos estaduais.
Ora,
estes não têm como combater organizações criminosas que atuam em vários estados
e fazem parte de redes internacionais de tráfico de armas e drogas. Guilherme
Derrite fez mais. Por exemplo, sustentou a divisão dos recursos provenientes de
bens apreendidos do crime entre os fundos estaduais de segurança e a Polícia
Federal, retirando recursos que deveriam ser concentrados na PF,
instituição-chave para investigar as organizações criminosas.
Poderia
ser pior, pois em tentativa felizmente neutralizada, o secretário de Segurança
de Tarcísio de Freitas queria retirar a competência da PF para a investigação e
subordinar sua atuação à provocação dos governadores – um caminho fácil para o
uso da instituição para perseguir inimigos, proteger amigos e ajudar aqueles
que ganham suborno do crime organizado ou que pretendem cobrá-lo quando puderem
vender para o PCC ou para o CV eventual blindagem contra a PF.
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Inconstitucionalidades
Ao
longo do processo, Guilherme Derrite ainda mostrou desconhecimento da
legislação penal e do próprio combate ao crime organizado, inseriu
inconstitucionalidades e cometeu erros jurídicos grosseiros. A visão que
continua a prevalecer na direita e extrema-direita é o discurso praticamente
monotemático – e ultrapassado – sobre o aumento das penas.
Como
afirmou o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça,
Marivaldo Pereira, o projeto tende a produzir um “caos jurídico” na aplicação
das normas sobre organizações criminosas, ao criar novos tipos penais paralelos
aos que já existem na legislação, gerando sobreposição de condutas.
É hora
de desfazer esse mito duplo, de competência da direita na segurança pública e
de que a esquerda está despreparada para enfrentar o crime. Em primeiro lugar,
lembremo-nos que a única política de segurança do governo de Jair Bolsonaro foi
liberar o uso de armas e munições e deixar que cada cidadão comprasse a sua
para se defender do crime por conta própria.
O
recente episódio da megaoperação do governador do Rio, o bolsonarista Cláudio
Castro, mostrou também um outro veio da visão da direita e da extrema-direita:
apostar no espetáculo bélico de operações policiais que apenas saciam a sede de
violência do bolsonarismo, inspira o sentimento de vingança em uma parte da
população e alimenta a narrativa político-eleitoral de 2026.
Diante
de uma população que, com razão, se sente amedrontada porque vê territórios
ocupados, famílias e trabalhadores submetidos ao terror e à opressão das
facções criminosas e milícias (em grande parte ligadas à direita, diga-se), é
fácil instrumentalizar o medo e transformar operações em solução. Solução
aparentemente fácil, mas sem eficácia.
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Pressão
A ideia
ficou de fora do PL Antifacção, graças à pressão contrária, mas no fundo a
direita deseja mesmo é enquadrar facções criminosas como organizações
terroristas. A lógica do “narcoterrorismo” é providencial para os “patriotas”
bolsonaristas: trata a segurança pública com a lógica da guerra interna e abre
caminho, por exemplo, para que agências de segurança dos EUA tratem o Comando
Vermelho e similares como “ameaça à segurança nacional” e utilizem instrumentos
de contraterrorismo, como interceptações, ligações com iniciativa militar ou
forças especiais.
O
governo Lula, a esquerda e o PT têm o que dizer e propor. Concretamente o
governo vem fazendo, naquilo que lhe cabe, que é propor nova estrutura de
integração entre a União e os estados, trabalhar contra o problema nas
fronteiras e nos vínculos transnacionais que sustentam o crime organizado e dar
apoio aos governos estaduais, que têm a responsabilidade pela condução da
segurança pública.
Ao
mesmo tempo, apresentou várias propostas que têm sido engavetadas pelo
Congresso ou encontram resistência. São exemplos o projeto que aumenta o
controle na cadeia do ouro e combate o garimpo ilegal, espaço ocupado pelas
organizações criminosas na Amazônia; outro que aumenta as penas para os crimes
ambientais, o projeto do devedor contumaz, que inibe a atuação de “laranjas” e
reduz o risco de apropriação do mercado por organizações criminosas), e, claro,
a PEC da Segurança Pública e, por fim, o PL Antifacção.
É
possível mais e precisamos intensificar esse debate até 2026. A criação do
Ministério da Segurança Pública é uma necessidade, para mostrar que essa agenda
é uma prioridade nacional.
A isso
se soma a reforma do sistema penitenciário, há muito tempo convertido em usina
de crime; a reforma das polícias, capaz de garantir a profissionalização das
corporações e a qualificação das investigações; a restrição das regras
relacionadas aos Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs),
cuja facilitação excessiva tornou-se um escoador farto de armas e munições para
o crime; o endurecimento no combate ao contrabando na fronteira; e a adoção
sistemática do modelo adotado na Operação Carbono Oculto, realizada a partir da
integração entre Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público, e que
descortinou a atuação do crime organizado no mercado financeiro, com foco na
inteligência, na cooperação institucional e regulatória, na identificação dos
mecanismos de lavagem de dinheiro e na descapitalização do crime.
Outro
debate extremamente importante é sobre a adoção do modelo da chamada polícia de
proximidade, que prioriza a relação contínua, direta e colaborativa entre
policiais e comunidades, atuando tanto na repressão ao crime quanto na
prevenção, mediação de conflitos e construção de confiança. Foi um modelo
adotado, por exemplo, em Medellín, na Colômbia, cidade que conseguiu reverter a
violência dos narcotraficantes.
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Estratégia
Esse
conceito ganhou força dentro de uma estratégia mais ampla de transformação
urbana e social: após décadas de violência, a cidade adotou ações integradas
que combinaram presença policial comunitária, participação cidadã, programas
sociais e requalificação de espaços públicos. Nesse contexto, a polícia passou
a trabalhar lado a lado com líderes locais, escolas e organizações
comunitárias, fortalecendo vínculos, entendendo necessidades específicas de
cada território e criando respostas ao mesmo tempo humanizadas e eficazes. Essa
abordagem ajudou a redefinir a relação entre Estado e população, tornando-se
referência internacional em segurança cidadã.
As
forças de esquerda, tanto em nível federal quanto nos estados, têm este dever
com o país, que já deixou claro ver a violência como uma de suas principais
preocupações. Será preciso desmontar a politização dessa agenda pelos
governadores da direita e qualificar o debate, sem apelar para o jogo fácil e
populista que resume o problema ao endurecimento penal e sem instrumentalizar o
medo, como faz o bolsonarismo.
Precisaremos
também mostrar a ineficácia do modelo da direita, que há 30 anos segue a mesma
visão, sem resultados para a população. Cabe a nós mostrar que há alternativa e
ela passa pela coordenação entre o governo federal, os governos estaduais e
instituições como Polícia Federal, Ministério Público e Receita Federal; pelo
mapeamento do fluxo financeiro, desmontando mecanismos de lavagem de dinheiro;
pelo rompimento do fluxo de armas para o crime organizado; e pelo investimento
em políticas públicas que apresentem oportunidades de vida como caminho para a
juventude.
Integração,
investigação, inteligência e prevenção dão mais trabalho do que megaoperações
destinadas ao falso espetáculo, mas significam caminhos concretos para resolver
um problema que se tornou a epidemia do nosso tempo.
• De narcotraficantes a caciques das
facções: a cúpula do crime isolada em Brasília
Válvula
de contenção contra o avanço do crime organizado, o Sistema Penitenciário
Federal (SPF) é peça central da estratégia governamental adotada desde 2006 no
país — e, desde outubro de 2018, em Brasília. O modelo voltou ao centro das
atenções com a transferência de sete chefes do Comando Vermelho (CV) após a
megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro,
que resultou em 121 mortos, em 28 de outubro. Eles foram enviados para o
Presídio Federal de Catanduvas (PR), um dos cinco em funcionamento no Brasil.
Embora
nenhum deles tenha vindo para a unidade instalada em Brasília, a capital
permanece como ponto estratégico do tabuleiro federal. O DF abriga — ou já
abrigou —, alguns nomes conhecidos do crime organizado no país. Entre eles,
Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do Primeiro Comando da
Capital (PCC) e condenado a mais de 330 anos por formação de quadrilha, tráfico
de drogas e homicídio. Ele chegou a Brasília em 2019.
Além de
Marcola, 75 presos estão sob rigoroso esquema de segurança na capital, segundo
dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Jarvis Chimenes
Pavão está nessa lista. Processos judiciais obtidos pela reportagem revelam que
um relatório da Polícia Federal classificou Jarvis, conhecido como
"Pavão", como um "notório narcotraficante brasileiro", que
comandou o tráfico de drogas na região fronteiriça de Ponta Porã (MS) e Pedro
Juan Caballero, no Paraguai.
Nos
documentos judiciais, ele é citado como "rei da fronteira" e
responsável por controlar grande parte do fornecimento de drogas e armas para
as grandes organizações e facções criminosas do Brasil, sendo a Europa o
principal destino dos entorpecentes.
Desde
2009, o traficante esteva preso na penitenciária Tacumbu, em Assunção, no
Paraguai, onde cumpria pena por lavagem de dinheiro e porte ilegal de arma de
fogo. A transferência para a Penitenciária Federal de Brasília ocorreu em 2017,
quando foi extraditado para o Brasil depois de liderar, de dentro da cadeia
paraguaia, um esquema de transporte de cocaína proveniente da Bolívia, do Peru
e da Colômbia para a região serrana do Rio Grande do Sul.
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Presos
Em
outra cela da mesma unidade, numa distância não informada, está o rival de
"Pavão": Sérgio de Arruda Quintiliano, vulgo "Minotauro".
Em decisão de 2023, que renovou a permanência do criminoso na penitenciária
federal de Brasília por mais três anos, a Justiça afirmou que, mesmo preso, ele
praticou diversos crimes, "entre os quais o planejamento de
cinematográfico plano de fuga do detento Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo
'Marcola' [...], e outros integrantes, podendo-se colher dos elementos de prova
o grande poderio financeiro e bélico do grupo".
Também
está preso em Brasília Luiz Carlos da Rocha, o "Cabeça Branca",
acusado de comandar, por mais de três décadas, um esquema de tráfico
internacional de drogas que abastecia, mensalmente, com pelo menos cinco
toneladas de cocaína, países da Europa, da África e os Estados Unidos. A
operação Sem Saída, da Polícia Federal, deflagrada para desarticular a
organização criminosa do narcotraficante, foi considerada a maior da história
da corporação contra o tráfico internacional de drogas e lavagem de dinheiro.
A
capital recebeu, ainda, Rocco Morabito, líder da máfia calabresa Ndrangheta, do
sul da Itália. Rocco foi detido pela PF em 24 de maio de 2021, em um hotel em
João Pessoa, e desembarcou na capital federal no dia seguinte. Segundo a
polícia, Morabito viveu por cerca de 15 anos em Punta del Este, no Uruguai. Lá,
vivia com a identidade de Francisco Capeletto, brasileiro. Em setembro de 2017,
foi preso em Montevidéu, onde permaneceu na cadeia até o fim de junho de 2019,
quando fugiu com outros três presos. Depois de passar pela Penitenciária
Federal de Brasília, foi extraditado para a Itália, em 2022.
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Repressão
No
primeiro semestre de 2025, oito novos presos deram entrada na Penitenciária
Federal de Brasília e quatro deixaram a unidade, de acordo com a Senappen. O
órgão não detalha nomes nem destinos por questões de segurança.
O rigor
no sistema ultrapassa os informes oficiais. Cercados por extensos muros, os
presos da penitenciária federal enfrentam procedimentos padronizados,
rigidamente seguidos nas cinco unidades do país, a começar pela comunicação com
familiares, amigos e advogados. Qualquer contato é via parlatório ou
videoconferência. As revistas são constantes: o detento passa por vistoria
todas as vezes em que deixa o dormitório, e as celas são fiscalizadas sempre
que ele sai.
A
Senappen informa que os agentes de inteligência da penitenciária federal
monitoram o circuito de câmeras e que as imagens capturadas são transmitidas,
ao vivo, para a sede do órgão, onde outra equipe acompanha a rotina das cinco
cadeias.
Transferências
de presos dependem de autorização judicial, baseada em critérios técnicos, de
segurança e de inteligência penitenciária. Portanto, não há prazo fixo de
permanência nas unidades federais, e as decisões sobre a manutenção ou
deslocamento são de competência do Poder Judiciário, com base em pareceres
técnicos.
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Estratégia
Esses
mecanismos, embora burocráticos, integram as ações de combate ao poder de
comando das facções. No artigo científico O impacto das organizações criminosas
na sociedade catarinense, a pesquisadora Larissa Melnik menciona, em um dos
trechos, que, entre as estratégias mais relevantes, destaca-se, inicialmente, a
separação de lideranças. O escritor Medina Osório menciona que o isolamento de
líderes de facções criminosas pode ser uma medida eficaz para enfraquecer a
capacidade de comando deles dentro das unidades prisionais e dificultar a
articulação de crimes do lado de fora.
"Apesar
de parecer uma solução simples, essa medida requer aplicação criteriosa,
devendo ser considerada apenas como último recurso, diante dos possíveis
efeitos colaterais", destaca o estudo acadêmico.
Em
nota, a Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) esclareceu que o combate e o
monitoramento rigoroso de facções criminosas são pilares centrais do programa
Segurança Integral. A pasta afirmou que a atuação é integrada, planejada e
baseada em inteligência e dados estatísticos, além do monitoramento constante
de eventuais movimentações de grupos criminosos por parte das forças de
segurança.
A
SSP-DF listou de que formas essa estratégia de inteligência é alimentada. Uma
delas são os relatórios semanais compartilhados com as forças. Eles apontam
dias, horários e locais de maior incidência criminal e subsidiam a elaboração
de estratégias para o policiamento ostensivo (PMDF) e a identificação e
desarticulação de grupos especializados (PCDF). Segundo a pasta, há o
investimento contínuo na capacitação especializada dos agentes, na modernização
dos equipamentos e na adoção de tecnologias avançadas para otimizar o trabalho
policial e fortalecer os processos de gestão.
"O
trabalho integrado contempla medidas de policiamento preventivo e ostensivo,
atendimento de emergência, controle de tráfego, fiscalização e ordenamento
urbano, visando à segurança da população em todas as esferas."
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Indicadores positivos
O
Distrito Federal criou uma ambiência de segurança que poucas capitais do país
têm a chance de vivenciar: o esvaziamento operacional e econômico das
organizações criminosas.
São
quase 20 anos de sufocamento de grupos que, por conta das estratégias de
segurança pública implementadas, não conseguiram crescer economicamente ou ter
uma expansão territorial sólida.
Alguns
dos elementos que tornaram esses resultados bastante efetivos foram:
aprimoramento técnico dos policiais, ações integradas com outros órgãos para
melhoria da inteligência policial e ataques estratégicos à estrutura financeira
de grupos que tentaram entrar no DF.
Outro
ponto importante foram as operações, nos moldes do que existe em outros estados
e países, realizadas em conjunto, e de forma direta, entre o Ministério Público
do DF e até em apoio à Polícia Federal. Tudo feito com algumas tropas
especializadas, como ROTAM, DOE e BOPE.
O
Distrito Federal, pela qualidade dos profissionais de segurança e pelo índice
quase inexistente de corrupção, favorece cooperações que seriam consideradas
como muito complexas ou até inviáveis, comparando-se com outros estados da
federação.
Dessa
forma, e desde que não resolvam debulhar a efetividade das polícias da capital
do Brasil, permanecerá esse posicionamento de confiança e credibilidade da
população entre as forças que possuem os melhores indicadores positivos de
segurança pública do país.
Fonte:
A Terra é Redonda/Correio Braziliense

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