Os
novos (e antigos) desafios do câncer no SUS
Entre
os dias 27 e 28, a Fiocruz recebeu o seminário Controle do Câncer no Século
XXI: desafios locais e globais. Promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos
(CEE) da instituição do Rio de Janeiro, o evento reúne importantes
especialistas brasileiros e estrangeiros e visa jogar luz sobre uma das
principais causas de morte do mundo contemporâneo.
Para
analisar esse quadro epidemiológico, cuja alta incidência já faz parte do
cotidiano dos países desenvolvidos e se ampliará nos chamados em
desenvolvimento, Outra Saúde entrevistou Luiz Santini, ex-diretor do Instituto
Nacional do Câncer (Inca) e um dos principais palestrantes do evento.
“Os
países do chamado Sul Global atuam muito em função da demanda, isto é, na
medida em que aumenta o número de casos. E, isso também é importante, atuam de
acordo com uma pressão da indústria e de lobbies para incorporação de
medicamentos, o que custa muito dinheiro. Mas o acesso da população à política
de saúde pública é muito ruim, muito precário”, contextualizou.
Nesse
sentido, Santini, autor do livro SUS: uma biografia – lutas e conquistas da
sociedade brasileira (2024), elogia o atual estágio brasileiro na formulação de
estratégias de controle e oferta de tratamento da doença, o que se condensou
mais recentemente na Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer
(PNPCC), promulgada em 2023.
Em sua
visão, apesar das limitações orçamentárias, o SUS aparece como uma vantagem
imensa do país no controle das variadas neoplasias, uma vez que seu caráter
universal e integrado entre os diversos níveis de atenção apresenta melhores
condições de enfrentamento da doença.
“A
política vem sendo construída há mais de 20 anos. O câncer se explica pelos
componentes genéticos em menos de 10% dos casos. A maior parte dos casos tem
fatores ambientais envolvidos, não só ecológicos como também alimentação
adequada, falta de atividade física, enfim, o modo como as pessoas vivem”,
pontuou.
Dessa
forma, o entendimento da saúde como socialmente determinada, conforme
princípios da Reforma Sanitária Brasileira, é um aliado importante para a
organização de ações que visem atacar a doença antes mesmo de sua possível
manifestação.
E,
diante da crônica limitação de investimentos públicos no SUS, sua estrutura de
acompanhamento do paciente desde a atenção básica é fundamental para o sucesso
da prevenção do câncer, que tende a aumentar não só pelo envelhecimento
progressivo da população como também pela crise climática que já incide na vida
social.
“A cada
dia, fica mais evidente que a saúde não é simplesmente a ausência de doença.
Ela depende de condições sociais e econômicas de vida das populações. Para não
ir muito além de exemplos objetivos, os desastres climáticos que têm acontecido
no Brasil recentemente têm uma repercussão na saúde que muitas vezes é
ignorada”, explicou.
Na
entrevista, Santini também aborda questões como educação dos profissionais de
saúde, que devem ser preparados para entender a relação de sua especialidade
com os fatores externos, e da própria comunicação, em tempos onde a má fé e a
falta de critérios na definição de temas relevantes influenciam no entendimento
do público de uma política pública relevante.
“Há um
longo caminho de possibilidades e oportunidades que o Brasil tem para fazer
frente a esse grande problema de saúde pública da atualidade. Mais de 700
municípios brasileiros já têm câncer como primeira causa de morte. É uma coisa
muito significativa”, sintetizou.
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Leia a entrevista completa com Luiz Santini.
• Qual sua expectativa para o Seminário
Controle do Câncer no século XXI: desafios globais e soluções locais e por que
este mote no título do evento?
A
expectativa é bastante positiva, estamos alinhados com pessoas que participam
da discussão em plano nacional e internacional. Temos observado um crescimento
bastante significativo da incidência de câncer na maior parte dos países do
mundo, sobretudo um aumento nos países mais desenvolvidos. A diferença é que,
embora a incidência esteja aumentando mais lentamente nos países menos
desenvolvidos, de média e baixa renda, a mortalidade aumenta, enquanto diminui
nos desenvolvidos.
Por
isso o câncer é um desafio global de saúde pública: atinge a todos os países,
mas há uma diferença do ponto de vista do enfrentamento. Nós precisamos de
acesso ao tratamento e controle, além das medidas de prevenção, que são até
mais desafiadoras.
No
Brasil, isso envolve a dimensão do país e da população. Com a desigualdade
social, esse desafio é ainda mais significativo.
• Recentemente, o Ministério da Saúde
anunciou investimentos em cirurgia robótica no Inca, um hospital inteligente
que pode monitorar consultas e exames em escala nacional a partir de um hub no
Hospital das Clínicas de São Paulo. Institutos nacionais de pesquisa têm
conseguido avanços em vacinas de RNA mensageiro para câncer. Essas ações
mostram que a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC)
lançada em 2023 já se materializa em avanços na área?
A
própria pergunta percorre uma trajetória, que antes contou com as ações de
prevenção básica, como educação alimentar e tabagismo, agora com adoção de
novas soluções tecnológicas, como, por exemplo, a construção de hospitais
inteligentes, o uso de telemedicina, não só para teleatendimento, mas também
para tele-educação, capacitação etc.
Há um
longo caminho de possibilidades e oportunidades que o Brasil tem para fazer
frente a esse grande problema de saúde pública da atualidade. Mais de 700
municípios brasileiros já têm câncer como primeira causa de morte. É uma coisa
muito significativa.
Já a
PNPCC passa por um processo que vem se desenvolvendo ao longo dos anos. Não é
propriamente uma novidade. A novidade é a aprovação pelo Congresso Nacional.
Isso é muito importante porque o Brasil talvez seja um dos poucos países do
mundo que tenha uma política nacional aprovada como lei.
Mas
essa política vem sendo construída há mais de 20 anos, ao longo de toda a
história natural da doença. E o que é a história natural da doença? O câncer é
uma doença que se explica pelos componentes genéticos em menos de 10% dos
casos. A maior parte dos casos tem fatores ambientais envolvidos, não só
ecológicos como também alimentação adequada, falta de atividade física, enfim,
o modo como as pessoas vivem, seu dia a dia, os fatores de risco envolvidos.
Desde
as atividades de saúde pública geral até a incorporação de novas tecnologias,
novos avanços na área de biotecnologia, de genética, de imunologia, tudo faz
parte dos desafios que estão envolvidos na questão do controle do câncer.
Porque não se trata de uma coisa que se possa resolver de uma hora para outra,
mas de uma política de Estado, que tem início, mas não tem fim.
A
Política Nacional de Controle do Câncer é uma estratégia de encaminhar essa
ação, que envolve prevenção primária e se adequa a modificações eventuais da
reprodução da doença. Aqui, insisto na questão do tabaco, pois temos a maior
experiência do mundo de resultado de controle do tabaco, conseguimos reduzir a
incidência de câncer de pulmão no país por conta de uma ação efetiva de
controle, até a incorporação de novas tecnologias.
A lei é
um novo suporte que determina ações, e nós temos várias estratégias que estão
sendo implementadas para ser efetivas. É um grande desafio, precisa de muito
dinheiro, a quantidade de recursos aplicados ainda não é suficiente, e eu
acredito até que nunca vai ser, porque as necessidades vão sempre aumentar, mas
é necessária uma participação dos cientistas, dos profissionais e da sociedade
no acompanhamento.
• Qual a importância do debate à luz do
contexto epidemiológico que marcará o país nos próximos anos? O SUS estará
preparado com o atual nível de investimentos e demanda social sobre seus
serviços?
De
certa maneira, sempre disputaremos espaço com várias prioridades. Do ponto de
vista epidemiológico, convivemos com uma situação de transição, nós temos ainda
doenças que são preveníveis por imunização e ainda não alcançaram a necessária
cobertura de vacina. Portanto, temos consequências dessas doenças na vida
adulta das pessoas, como, por exemplo, a tuberculose. É incrível que ainda
tenhamos de conviver com complicações de tuberculose por falta de aplicação da
vacina BCG na infância.
Isso é
para dizer que disputamos o controle de todas as doenças dentro das prioridades
do sistema de saúde. É necessário fazer ações cooperativas e não de disputa. É
um grande desafio, mas a vantagem de ter o SUS é justamente essa. Como o
sistema tem uma concepção global de atuação, dá a possibilidade de não ser
competitivo internamente, mas cooperativo.
Devemos
buscar, através dos mecanismos de atuação do próprio Sistema Único de Saúde, a
cooperação nas diversas áreas de atuação, de atenção referenciada de
ambulatório, de especialidades, de nível terciário e quaternário, que já
envolve tratamentos mais complexos, mais sofisticados e muito mais caros.
• Em relação aos países do chamado Sul
Global, como você enxerga este cenário epidemiológico? Podemos dizer que o
Brasil conta com alguma vantagem estrutural?
Sim.
Pelos dados que são apresentados, temos alguma vantagem. Temos trabalhos
recentes publicados na revista Lancet, em estudos feitos pelo IARC (Agência
Internacional da Pesquisa em Câncer, da Organização Mundial de Saúde), que
mostram que a maioria dos países deste eixo não tem uma política estruturada de
controle de câncer.
Esses
países atuam muito em função da demanda, isto é, na medida em que aumenta o
número de casos. E, isso também é importante, atuam de acordo com uma pressão
da indústria e de lobbies para incorporação de medicamentos, o que custa muito
dinheiro. Mas o acesso da população à política de saúde pública é muito ruim,
muito precário.
Nesse
sentido, apesar das nossas dificuldades, temos uma legislação apropriada, uma
política adequada e uma estratégia definida. Porém, falta mais recurso.
• O epidemiologista e sanitarista Jaime
Breilh lançou recentemente a obra Epidemiologia Crítica e a saúde dos povos –
ciência ética e corajosa em uma civilização doentia. Enquanto isso, tivemos uma
COP30 esvaziada, que apesar das boas intenções mostram a estagnação global em
se conseguir acordos para uma efetiva transição ecológica. Numa reflexão mais
ampla, uma política de prevenção a doenças crônicas como o câncer não teria
chance de sucesso apenas se conectada a avanços em questões externas à saúde e
seus serviços?
Não
tenho a menor dúvida. A cada dia fica mais evidente que a saúde, como o Sérgio
Arouca já defendia lá desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, não é
simplesmente a ausência de doença.
A saúde
tem determinantes sociais, econômicos e políticos que são muito mais amplos do
que propriamente o aparecimento de uma doença em função de um desarranjo
biológico qualquer. Seja esse desarranjo provocado por um agente externo ou
genético, autóctone. A saúde é muito mais do que isso. A saúde depende de
condições sociais e econômicas de vida das populações.
E
agora, cada vez mais claramente, depende também das condições ambientais, no
sentido do meio ambiente, da preservação da possibilidade da vida do planeta,
que está ameaçada para além da saúde das pessoas individualmente.
Tudo
que se alcançou de longevidade e possibilidade de as pessoas viverem mais, pode
estar ameaçado por essa grande crise sistêmica da sobrevivência do próprio
planeta. Para não ir muito além de exemplos objetivos, os desastres climáticos
que têm acontecido no Brasil recentemente, como as chuvas do Rio Grande do Sul
em 2024 e, neste ano, o ciclone no Paraná, chuvas na região Sul, eventos de
enchentes e desabamentos, têm uma repercussão na saúde que muitas vezes é
ignorada.
O caso
tipicamente estudado de Gaza mostra uma redução importante da expectativa de
vida da população. Vai viver menos porque morreu mais gente, porque se adoece
mais, sem contar os fatores emocionais, psicológicos, envolvidos em toda essa
crise. A questão da comunicação hoje é um elemento crítico da crise da saúde. O
adoecimento mental hoje, em função, por exemplo, das fake news, é uma coisa
absolutamente comprovada e demonstrada.
Quando
fazemos abordagens temáticas, olhamos questões específicas. Mas quando se
insere no ambiente da crise global, sanitária e socioeconômica, realmente entra
uma dimensão que a questão setorial não consegue resolver.
Para a
saúde pública e um sistema como o SUS, que tem o compromisso da atenção
universal e integral, a estratégia de implementação é extremamente complexa e
envolve todos os setores, quer dizer, os níveis de organização do sistema, mas
também muito fortemente a sociedade, cuja participação é fundamental, não só na
reivindicação como também compreensão do problema as estratégias de
enfrentá-lo.
Uma das
críticas que eu costumo fazer sobre a educação médica e dos profissionais da
saúde é sobre não contemplar de forma adequada, do meu ponto de vista, as
questões que estamos falando aqui. Quer dizer, a educação é muito mais voltada
para tecnologias sofisticadas, complexas, mas não leva em conta os
determinantes sociais e econômicos da saúde. A meu ver, isso gera uma
deformação no profissional. Ele corre risco de aparecer apenas como um
demandante de tecnologia e não um profissional que está ali para resolver
problemas mais complexos.
Há,
inclusive, um conflito permanente entre a expectativa dos médicos e as reais
possibilidades e até necessidades do sistema. E como o médico geralmente é um
grande formador de opinião, a sociedade se influencia muito mais por sua
expectativa que pela sua real necessidade. É um ambiente muito complexo.
• Outro tema externo ao qual tem se dado
mais importância nos últimos tempos é a comunicação. Como, em seus diversos
matizes, ela pode contribuir para a prevenção e combate ao câncer no Brasil?
A
programação do nosso seminário tem uma sessão inteiramente dedicada à
comunicação, inclusive com a participação de jornalistas, especialistas em
comunicação da própria Fiocruz e também de fora. Isso mostra a importância que
nós temos dado ao tema de uma maneira geral. Temos exemplos absolutamente
eloquentes, como agora, novamente, um grupo de médicos começou a divulgar que a
vacina com a proteína Spike poderia estar provocando algumas outras doenças.
Uma coisa falsa.
E, além
das notícias falsas, existem as notícias verdadeiras, mas mal colocadas. Por
exemplo, às vezes lemos coisas como “surgiu uma nova droga que cura câncer na
maioria dos casos”. E essa informação, muitas vezes, não é verdadeira.
Significa, hipoteticamente, mas é frequente, que algum estudo em fase 1,
experimental, às vezes feito só em animais, demonstrou uma sobrevida atribuída
de 30%. Mas a sobrevida anterior era de 6 meses. Não significa nada, portanto.
Mas, como a notícia é que a sobrevida aumentou em 30%, as pessoas vão querer
aquela droga. Isso é um problema da comunicação – não dos meios de comunicação.
Por
isso, nós incluímos no seminário uma mesa específica para abordar os aspectos
complexos da comunicação humana. A emissão de uma ideia pode ser totalmente
deturpada na hora em que o leitor recebe aquela informação e precisa
interpretá-la com seu próprio ferramental. E se isso for feito de forma
distorcida, pior ainda. A comunicação tem uma grande responsabilidade nas
discussões de saúde e, sem dúvida, na política de controle do câncer.
Aproveito
a entrada neste tema para tentar modificar uma certa mensagem: precisamos
acabar com a ideia da “guerra contra o câncer”. O controle do câncer é o
controle do câncer. São mais de 200 doenças que têm uma coisa em comum: a
multiplicação desordenada de células. Mas a abordagem, o tratamento, o
controle, a forma de encaminhamento, é muito diferente para cada uma delas. Não
estamos falando de combate com a ideia de que aquilo é uma guerra e vamos
acabar com o câncer. Não é assim. Estamos falando de controle. Ou seja, a ideia
é que a pessoa, mesmo que não tenha cura para aquela doença específica, possa
controlá-la e ter uma sobrevida de qualidade.
Fonte:
Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

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