Esquizofrenia
criativa: o clericalismo perigoso
"E,
enquanto escrevo, renovo para mim mesmo a promessa de tentar ser menos
espectador da fé e mais servidor; menos seduzido pelo aplauso e mais disponível
ao silêncio; menos encantado pelo ritualismo e a vaidade clerical revestida de
delírio de grandeza e mais fiel ao Cristo que escolheu a pequenez",
escreve Marcos Aurélio Trindade, mestre em Bioética PUCPR e mestre em
Antropologia Social UBA e membro da Sociedade Brasileira de Bioética.
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Eis o artigo.
Há
momentos na vida da Igreja em que o Espírito Santo parece soprar não apenas
para consolar, mas para revelar fissuras profundas escondidas sob aparências de
virtude. Uma dessas fissuras, visível sobretudo entre seminaristas e jovens
sacerdotes, manifesta-se como espiritualidade inflada, estética excessiva,
rigidez moral e distanciamento pastoral. É um fenômeno litúrgico, psicológico e
teológico que denomino aqui de “esquizofrenia criativa”. A expressão,
assumidamente simbólica, não se refere apenas ao transtorno clínico, mas à
ruptura entre a essência da fé cristã e o imaginário de grandeza que alguns
constroem em torno de si. É “criativa” porque inventa estilos performáticos,
ornamentações e identidades ritualizadas; e é “esquizofrênica” porque divide o
coração do ministro entre o Cristo pobre e o ego que busca ser celebrado.
Paradoxalmente, esse fenômeno nasce justamente onde deveria florescer a mística
da humildade. Alimenta-se do clericalismo, denunciado com firmeza pelo Papa
Francisco como uma das maiores deformações da Igreja, mas também representa uma
tentativa inconsciente de compensar fragilidades pessoais por meio da estética
religiosa e da autoridade sacralizada.
A
tradição cristã sempre compreendeu a mistagogia como experiência de
despojamento e encontro. Tornar-se discípulo é mergulhar no Mistério, não
acumular técnicas; é permitir que o Evangelho atravesse a alma, não apenas
decorar manuais de moral, dogmática ou liturgia. No entanto, muitos seminários
contemporâneos mesmo que academicamente bem estruturados não conseguem provocar
essa transformação interior. A formação intelectual avança, mas a experiência
espiritual permanece na superfície. Assim, alguns seminaristas aprendem a
manejar incenso, a entoar orações, a vestir paramentos solenes e que a meu ver
parecem papai Noel ou circo teatral, porém não enfrentam a pergunta decisiva:
“Quem estou me tornando diante do Cristo que me chama?” Quando essa pergunta é evitada,
surgem mecanismos compensatórios. Jovens inseguros ou emocionalmente imaturos
acabam encontrando na liturgia exuberante uma espécie de máscara sagrada, uma
armadura estética que fornece a ilusão de poder, controle e reconhecimento.
Desse modo, a mistagogia deixa de ser caminho espiritual e se converte em
treinamento técnico. Em vez de pastores, corre-se o risco de formar
funcionários do sagrado ou performers litúrgicos, distantes da dor humana e do
cotidiano ferido das comunidades onde conseguimos notar a liturgia verdadeira
que é amor.
O
clericalismo, nesse cenário, não é apenas um erro moral ou um excesso estético,
mas uma verdadeira patologia espiritual, psicológica e institucional. Sua
lógica é simples: o sacerdote passa a se definir pelo papel, não pela pessoa;
pela distinção que possui, e não pela comunhão; pela visibilidade, não pelo
cuidado. A psicologia contemporânea reconhece nisso traços de narcisismo
defensivo, em que a identidade religiosa funciona como armadura. A
“esquizofrenia criativa” nasce exatamente dessa fusão entre insegurança pessoal
e poder simbólico. Suas expressões são facilmente percebidas: o ritualismo
estético exagerado, no qual a liturgia deixa de ser celebração comunitária para
tornar-se palco; a ostentação vestimentária que transforma estolas e casulas
ornadas de ouro em símbolos de status; a rigidez moral compensatória que
utiliza a severidade como mecanismo de defesa; o medo dos pobres e a fuga
pastoral, traduzidos na recusa de visitar casas simples, hospitais, periferias
e prisões; e, por fim, a idolatria de si mesmo, em que o altar vira vitrine, o
púlpito vira palco e o Evangelho se reduz a performance. Esses elementos
compõem a paisagem dessa criatividade esquizofrênica: um imaginário grandioso
que encobre a incapacidade de lidar com a própria vulnerabilidade.
Nada
disso é realmente novo. Jesus denunciou com força a hipocrisia religiosa:
“Fazem tudo para serem vistos pelos outros”; “Vocês amam os primeiros lugares
nas sinagogas e os títulos honoríficos”. O farisaísmo, antes associado a
doutores da Lei, ressurge hoje sob roupagens litúrgicas, midiáticas e
doutrinalistas. A lógica é a mesma: expressão de fé sem conversão de vida. No
contexto contemporâneo, as redes sociais aprofundam essa deformação ao
transformar o ministério em espetáculo e o espetáculo em identidade. Os rituais
passam a valer mais que a misericórdia; a visibilidade, mais que a comunhão; a
vaidade, mais que o Evangelho.
Se
existe um critério seguro para discernir a verdade do ministério, ele está em
Mateus 25. Não há no juízo final nenhuma pergunta sobre incensos, adornos ou
solenidades. O critério é simples e devastador: “Tive fome e me destes de
comer; tive sede e me destes de beber; era estrangeiro e me acolhestes; estava
doente e me visitastes”. A fé cristã é provada na concretude das mãos e nos
encontros reais. Não se pode amar Cristo e temer o pobre; não se pode anunciar
o Evangelho e evitar as periferias; não se pode celebrar a Eucaristia e ignorar
os crucificados da história. A verdadeira hermenêutica cristã nasce da
proximidade com quem sofre. Essa é a espiritualidade de Francisco de Assis, de
Teresa de Calcutá, dos padres operários e do próprio Papa Francisco. É também o
coração da mistagogia autêntica: reconhecer no rosto ferido do outro o próprio
Cristo.
No
fundo, o que falta à formação e ao ministério é a conversão do olhar e a cura
do ego. Nenhum currículo substitui o encontro interior; nenhum manual substitui
a compaixão; nenhuma vestimenta transforma o coração. A formação verdadeira
nasce do encontro com o sofrimento do povo e com o Deus que se revela nesse
sofrimento. Falta uma educação do olhar ou a ética primeira, como sugere
Levinas: o rosto do outro que interrompe o meu ego e me convoca à
responsabilidade. Falta recuperar a convicção de que o ministério ordenado não
é carreira, mas renúncia; não é ascensão, mas descida; não é poder, mas
serviço.
Vivemos
um tempo decisivo. A Igreja precisa renovar sua mistagogia e sua pastoral ou
continuará formando ministros fascinados pelo palco e incapazes de caminhar com
o povo. O Papa Francisco insiste: prefere uma Igreja acidentada, ferida e
enlameada por ter saído às estradas do que uma Igreja doente pelo fechamento. O
antídoto para a “esquizofrenia criativa” é claro: sair das bolhas clericais,
curar-se do narcisismo inserido no pastoral, reaprender a pobreza do Evangelho,
reencontrar Jesus nos pobres. A nova geração de seminaristas muitos sinceros,
outros seduzidos pela estética do poder, precisa receber novamente a unção da
conversão, a unção que acompanha o serviço, a ternura e o cuidado. Enquanto a
Igreja formar ministros para a ostentação em vez da compaixão, continuará a
perder sua alma. Mas quando voltar seu olhar para o Cristo pobre, para o Cristo
das ruas e das chagas, então reencontrará o sentido perdido. E toda
esquizofrenia criativa dará lugar ao que sempre foi o coração do cristianismo:
a mistagogia litúrgica do amor e do serviço.
Penso
eu como religioso católico que nos últimos anos tenho me perguntado não como
pesquisador, psicólogo ou teólogo, mas como discípulo ferido tentando seguir
Jesus: onde foi que nós perdemos o fio da verdadeira mística? Entre tantos
templos iluminados, tantos paramentos cintilantes, tantas palavras pronunciadas
com solenidade, percebo que às vezes falta justamente aquilo que não brilha: a
humanidade partilhada, a presença silenciosa, o gesto simples. Digo isso não
para apontar o dedo, mas porque eu mesmo já vivi a tentação de usar uma imagem
idealizada do sagrado como refúgio, como se a fé pudesse me afastar das minhas
próprias dores, em vez de me convidar a enfrentá-las com verdade. Talvez por
isso reconheça tão bem a “esquizofrenia criativa”: porque ela já tentou me
seduzir também e seduziu muitos ex-colegas seminaristas que hoje são padres e
se tornarão.
Em
certos momentos da minha trajetória, percebi o quão fácil é vestir o sagrado
como quem veste um escudo. É mais fácil repetir fórmulas do que encarar a
própria nudez espiritual; mais fácil brilhar nos altares do que se deixar tocar
pelas ruas; mais fácil ornamentar o discurso do que permitir que Cristo
transforme as camadas endurecidas do coração. E foi precisamente quando me
encontrei com pessoas quebradas pela opressão da vida, famílias destruídas pela
pobreza, jovens esmagados pela violência, doentes que seguravam minha mão com
medo da morte, que meu cristianismo deixou de ser uma ideia e se tornou carne.
Ali compreendi que o Evangelho não é um adorno ritualista, mas um chamado
diário a morrer para si mesmo.
Confesso
que muitas vezes me senti indignado diante de certos excessos clericais, de
certos triunfalismos que corroem lentamente a alma do sacerdócio. Mas minha
indignação sempre nasce de amor, amor por uma Igreja que ainda acredito capaz
de se levantar, de se converter, de reencontrar o Cristo que caminha descalço
entre os pobres. Não escrevo para acusar, mas para lembrar.
Não
escrevo para destruir, mas para acender uma chama. Porque eu mesmo continuo
aprendendo, tropeçando, levantando e tentando viver aquela simplicidade que
Jesus testemunhou com radicalidade desarmadora.
Sei que
a espiritualidade autêntica exige mais coragem do que ornamentos; exige mais
honestidade do que títulos; exige mais vulnerabilidade do que qualquer
vestimenta ornada de ouro. E, quando olho para a Igreja, peço antes de tudo a
mim mesmo que eu não perca o essencial: a capacidade de deixar que o sofrimento
do outro me converta. Porque, no fundo, é o rosto ferido do outro que salva o
meu. Ele me humaniza, me desmonta, me devolve ao Evangelho antes que eu me
perca em meus próprios rituais internos.
Escrevo
tudo isso com temor, porque sei que aquilo que denuncio nos outros talvez
também grite dentro de mim. Mas é exatamente por isso que continuo acreditando
na conversão, na reforma do coração, na mistagogia que nasce das chagas.
Continuo acreditando no Cristianismo que se inclina. E, enquanto escrevo,
renovo para mim mesmo a promessa de tentar ser menos espectador da fé e mais
servidor; menos seduzido pelo aplauso e mais disponível ao silêncio; menos
encantado pelo ritualismo e a vaidade clerical revestida de delírio de grandeza
e mais fiel ao Cristo que escolheu a pequenez. Talvez e eu digo isso com
sinceridade seja essa a minha própria cura contra qualquer forma de
esquizofrenia criativa.
Fonte:
Por Marcos Aurélio Trindade, para IHU

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