Aceleracionismo
e cosmovisões
Existe
um momento peculiar nas madrugadas de trabalho em que a mente, cansada mas
ainda alerta, começa a traçar conexões inusitadas. Foi em uma dessas ocasiões
que me vi ponderando sobre o que parecia ser um completo desencontro: as
proposições do aceleracionismo de Nick Land e as cosmovisões dos povos
indígenas amazônicos. Mais do que um exercício de comparação, tornou-se uma
reflexão sobre a própria natureza do pensamento teórico quando confrontado com
realidades radicalmente distintas.
O
aceleracionismo para Nick Land representa uma corrente de pensamento que
defende a aceleração dos processos sociais por meio da tecnologia como motor de
transformações radicais na sociedade, a tecnologia é vista como um mecanismo de
transcendência perante as limitações do sistema atual. Trata-se de uma posição
que vê na intensificação, e não na contenção, o caminho para superação das
estruturas existentes.
Nick
Land propõe que devemos levar a lógica capitalista às suas últimas
consequências, acelerando seus processos até o ponto de colapso transformador,
uma proposta minimamente sedutora para uma geração esgotada perante o círculo
vicioso de contradições que o capitalismo como organismo máximo da
sociabilidade gera nos sentimentos, do meu até o seu, caro(a) leitor(a).
Mas
estamos na Amazônia, pelo menos eu estou, estamos falando de particularidades
intrinsecamente condicionadas sobre nosso ser social. Ao examinar esta proposta
à luz das cosmovisões amazônicas, encontramos não uma simples discordância, mas
diferenças fundamentais que começam pela própria concepção de realidade.
O
trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro nos oferece aqui uma chave
importante. Seu conceito de perspectivismo ameríndio descreve um universo onde
humanos, animais e espíritos compartilham uma condição subjetiva comum, mas
experimentam o mundo a partir de corpos diferentes.
Enquanto
o aceleracionismo opera dentro de um quadro que presume uma realidade universal
passível de aceleração uniforme, o perspectivismo nos apresenta um pluriverso
onde diferentes modos de existência demandam diferentes temporalidades e
ritmos, nos remetendo inclusive aos conceitos rizomáticos presentes em Deleuze
e Guatarri, somos uma teia de multiplicidades e devemos ser lidos a partir
destas concepções.
Esta
diferença se aprofunda quando consideramos as estruturas políticas. Pierre
Clastres, em sua obra fundamental, A sociedade contra o Estado, demonstra como
muitas sociedades indígenas desenvolveram mecanismos sofisticados para evitar a
concentração de poder. O que ele chamou de “sociedade contra o Estado”
representa uma organização social que opera através de freios e contrapesos à
autoridade centralizada.
Neste
aspecto, enquanto o aceleracionismo de Nick Land, que passarei a nomear de
aceleracionismo landiano, prega a dissolução das instituições através da
aceleração, do esgotamento radical da institucionalidade estatal através da
aceleração provinda da tecnologia dos meios de produção de sociabilidade,
economicidade e da mentalidade coletiva, as sociedades indígenas criaram
arranjos que impedem a própria emergência de estruturas estatais coercitivas,
ou seja, um tempo completamente distinto frente a um mesmo contraponto, um
contraponto ás contradições das instituições do Estado Moderno.
A
questão do tempo revela outro ponto de divergência conceitual. Ailton Krenak
tem argumentado de forma persuasiva sobre a incompatibilidade entre a noção
ocidental de tempo linear e progressivo e as temporalidades cíclicas que regem
a floresta e seus povos. Para Ailton Krenak, a ideia de progresso como
aceleração em direção a um futuro abstraído dos ritmos naturais representa uma
ruptura problemática com os ciclos vitais que sustentam a existência.
O
antropólogo Philippe Descola, em seu trabalho sobre ontologias e a relação
homemnatureza, oferece uma perspectiva adicional valiosa. Sua tipologia das
formas de identificar e relacionar-se com a natureza nos ajuda a entender que o
que o aceleracionismo vê como recursos a serem transformados e explorados
radicalmente, muitas cosmovisões amazônicas veem como parentes com os quais se
mantém relações de reciprocidade. Esta diferença ontológica fundamental coloca
em questão a própria possibilidade de aplicar uma lógica uniforme de aceleração
a realidades tão diversas.
Davi
Kopenawa fornece talvez a expressão mais eloquente desta diferença. Em sua
cosmovisão e cosmopolítica yanomami, a floresta demonstra-se um ser vivo com
quem se mantém um diálogo constante, isso mesmo, a relação homem-floresta une
aspectos metafísicos e materialistas nas concepções de relações sociais e
fenomenológicas a partir da cosmovisão Yanomami.
As
intervenções predatórias não são vistas simplesmente como danos ambientais, mas
como rupturas em relações cosmológicas mais amplas. O que ele chama de xawara
representa não apenas a doença física, mas o desequilíbrio cósmico resultante
da quebra dessas relações.
Michael
Taussig, por sua vez, nos mostra como as práticas xamânicas podem ser
entendidas como formas de conhecimento que operam através de lógicas distintas
da racionalidade ocidental moderna. Seu estudo sugere que o xamanismo funciona
como um sistema de mediação entre diferentes ordens de realidade, oferecendo
modos de compreensão e ação que não se subordinam à lógica da aceleração
landiana, esse xamanismo de caracteristicas não somente esotéricas, mas
materiais como rituais que geram concepções físicas, mentalidade de aplicação
do agir e do sentir por parte daqueles que o reproduzem, aqui em especial
menciono os povos indígenas da Amazônia, mas podemos também incluir o nosso
próprio ser social que deriva de culturas e ancestralidades destes, não
consegue encaixar-se de forma alguma em uma teoria que busca o colapso de forma
técnica e cientifica.
Ao
final desta reflexão, percebo que não se trata de declarar uma posição superior
à outra, mas de reconhecer que estamos diante de universos conceituais com
premissas fundamentais distintas. O aceleracionismo opera dentro de um quadro
que presume a possibilidade e desejabilidade de uma aceleração uniforme dos
processos sociais e tecnológicos. As cosmovisões amazônicas, por outro lado,
nos lembram que diferentes modos de existência podem demandar diferentes
temporalidades, diferentes ritmos, diferentes velocidades.
Talvez
a lição mais valiosa deste exercício intelectual esteja justamente em nos
lembrar que a aceleração, como conceito, não é universal, mas situada. E que
antes de aplicarmos qualquer receita teórica ao mundo, precisamos nos
perguntar: para quem e sob quais condições esta aceleração faz sentido? A
resposta pode nos levar a um entendimento mais nuancado tanto das
potencialidades quanto dos limites do pensamento aceleracionista.
Cabe a
nós, levar a vida no tempo que for necessário e no qual nossa cultura e forma
de ser habita, e quanto ao aceleracionismo landiano, é divertido e as vezes
rigorosamente necessário academicamente falando, sobretudo para posicionar
novos estudos anti-sistema e atualizar as dinâmicas de debates filosóficos para
as pujantes caracteristicas efêmeras presentes no século XXI.
Mas
ressaltando como amazônida que sou, vamos com calma, podemos desacelerar o
capitalismo no ritmo que bem entendermos também, as nossas multiplicidades e
diversas formas de resistências e existências estão ai para provar, onde Nick
Land pelo menos por enquanto nem imagina!
Fonte:
Por Matheus Castelo Branco Dias, em A Terra é Redonda

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