O
genocídio negro brasileiro
Muito
embora uma pesquisa histórica extensa ainda precise ser realizada com o
objetivo de investigar a trajetória do debate sobre genocídio do povo negro no
Brasil, podemos considerar, sem agregar a isso caracterizações mais
contundentes e matizadas por ampla análise documental, que um dos marcos
bibliográficos dessa discussão foi a publicação da obra O Genocídio do Negro
Brasileiro – Processo de um racismo mascarado em 1978 redigido por Abdias
Nascimento (1914 -2011), ativista e escritor que ao lado de nomes como Edison
Carneiro (1912-1972), Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), Milton Santos
(1926-2001), entre outros, figura entre os principais quadros do pensamento
afro-brasileiro do século XX.
No
Prefácio da primeira edição dessa obra, o sociólogo Florestan Fernandes, chama
atenção para aquela que, juntamente com a caracterização do quadro histórico do
protesto negro no Brasil no século XX, seria a principal contribuição de ordem
conceitual do livro de Abdias Nascimento: “A segunda contribuição se vincula ao
uso sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro.
Trata-se de uma palavra terrível e chocante para a hipocrisia conservadora.
Contudo, o que se fez e se continua a fazer com o negro e com os seus
descendentes merece outro qualificativo? Da escravidão, no início do período
colonial, até os dias que correm, as populações negras e mulatas têm sofrido um
genocídio institucionalizado, sistemático, embora silencioso. Quanto à
escravidão, o genocídio está amplamente documentado e explicado pelos melhores
e mais insuspeitos historiadores. A abolição, por si mesma, não pôs fim, mas
agravou o genocídio; ela própria intensificou-o nas áreas de vitalidade
econômica, onde a mão de obra escrava possuía utilidade. E, posteriormente, o
negro foi condenado à periferia da sociedade de classes, como se não
pertencesse à ordem legal. O que o expôs a um extermínio moral e cultural, que
teve sequelas econômicas e demográficas. Contra Abdias se pode dizer que essa
realidade não foi, ainda, suficientemente estudada pelos cientistas sociais”
(FERNANDES; 2016; p.19-20).
A fala
de Florestan Fernandes é fundamental para o exercício de leitura que buscamos
realizar aqui, pois destaca os seguintes aspectos relacionados ao debate sobre
o conceito de genocídio do povo negro: o seu potencial analítico enquanto
premissa para uma teoria da história do brasil ou do “brasil preto”; o lugar
histórico da proposição de Abdias Nascimento na história do pensamento e das
ciências sociais no Brasil.
Sobre o
primeiro aspecto, cabe dizer que a crítica de Florestan Fernandes ao conceito
de genocídio, tal como elaborado e empregado por Abdias Nascimento, é fulcral,
porque sociólogo identifica que o genocídio e o processo de racismo, que o
estrutura, fazem emergir uma das principais contradições da sociedade
brasileira: a violência brutal a qual é submetido o principal capital social do
país.
Logo,
investigar a proposição do genocídio é se defrontar com o seguinte problema: se
os negros são a principal força de trabalho na história do Brasil, por qual
motivo a violação dessa comunidade recrudesce com o processo de modernização
econômica e política do país? Portanto, obviamente está aí uma questão, e
Florestan Fernandes sabia disso, cujo escopo, ou seja, as formas de
verificação, escapavam dos limites da pesquisa histórica realizada por Abdias
Nascimento em seu livro.
Justamente
por isso, Florestan Fernandes assinala que “Contra Abdias se pode dizer que
essa realidade não foi, ainda, suficientemente estudada pelos cientistas
sociais”. Nesse sentido, o mérito do professor Abdias Nascimento na história do
debate sobre genocídio negro no pensamento e ciência brasileira seria
predominantemente conceitual. Muito embora, como veremos aqui, Abdias
Nascimento não tenha tido o descuido de escrever um texto no qual suas
formulações teóricas não tenham sido submetidas a verificação preliminar.
Tendo
isso em vista, no Genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo
mascarado, o conceito de genocídio do povo negro é inicialmente elaborado a
partir de três críticas a ideologia da democracia racial, nomeadas por Abdias
Nascimento como: escravidão – o mito do senhor benevolente; exploração sexual
da mulher-africana; o mito do africano livre. O elo que unifica os diversos
argumentos expostos nesses capítulos pode ser sintetizado na seguinte frase: o
conceito de democracia racial carece de materialidade histórica que comprove o
seu lugar como elemento estruturante dos termos gerais da relação entre pretos
e brancos na sociedade brasileira.
“O que
logo sobressai na consideração do tema básico deste ensaio é o fato de que, à
base de especulações intelectuais, frequentemente com o apoio das chamadas
ciências históricas, erigiu-se no Brasil o conceito de democracia racial;
segunda esta, tal expressão supostamente refletiria determinada relação
concreta na dinâmica da sociedade brasileira: que pretos e brancos convivem
harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma
interferência, nesse jogo de paridade social, das respectivas origens raciais
ou étnicas” (Nascimento, Abdias; 2016; p. 48).
Essa
crítica, obviamente, coloca a proposição de Abdias Nascimento em rota de
colisão com aquele que foi, e ainda é, leitura incontornável do pensamento
brasileiro: Gilberto Freyre (1900-1987).
Em Casa
Grande & Senzala (1933), tomando o espaço social familiar como unidade de
análise, o pernambucano Gilberto Freyre argumenta que a formação social
brasileira é um conjunto de variáveis culturais superpostas cujas matrizes
históricas remetem à arquétipos culturais distintos, que, por sua vez, no
tempo, vão sendo reificados e sintetizados na interlocução cultural entre
pretos e brancos, criando assim um constructo histórico híbrido composto de
elementos culturais africanos, portugueses e afins. Nessa morfologia social
freyriana a segregação racial não é só uma impossibilidade histórica como
também é um ato político, que viola a integridade, a identidade, a ontologia, o
sentido da história social do Brasil.
A
assimilação dessa tese freyriana como uma forma-ideológica carente de
materialidade histórica e que serviu de sustentáculo para ideologia da
democracia racial, implicou na acusação, por parte de Abdias Nascimento, de que
o antropólogo pernambucano teria mistificado a formação racial brasileira ao
qualificar as contribuições negras como predominantemente positivas sem
localizar sua espacialidade e historicidade criticamente na análise da
organização social do poder na História do Brasil.
Essa
discordância com Gilberto Freyre é a ruptura fundante da tese de Abdias
Nascimento sobre a questão racial: “Freyre cunha eufemismos raciais tendo em
vista racionalizar as relações de raça no país, como exemplifica sua ênfase e
insistência no termo morenidade; não se trata de ingênuo jogo de palavras, mas
sim de proposta vazando uma extremamente perigosa mística racista, cujo
objetivo é o desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto
fisicamente, quanto espiritualmente, através do malicioso processo do
embranquecer a pele negra e a cultura do negro. É curioso notar que tal
sofisticada espécie de racismo é uma perversão tão intrínseca ao Brasil a ponto
de se tornar uma qualidade, diríamos, natural, do “branco” brasileiro”
(Nascimento, Abdias; 2016; p. 50).
Essa
crítica a abordagem de Gilberto Freyre é basilar para a teoria da História
Social do Brasil insinuada em O genocídio, porque Abdias Nascimento não
compreendeu o genocídio apenas como extermínio físico de uma população. Sua
definição de genocídio não restringe a existência do fenômeno a dispositivos
jurídicos voltados para a produção de um massacre sistemático, tal como foi no
país bárbaro dos estadunidenses ou tal como aconteceu, sob os olhos das Nações
Unidas, na África do Sul com a insitucionalização do regime do apartheid em
1948.
No
mesmo ano, é bom que se relembre, em que foi promulgada a Declaração Universal
de Direitos Humanos. Para Abdias Nascimento, o genocídio é um processo
histórico de deturpação e por conseguinte eliminação não apenas física, como
também da identidade cultural e da existência histórica do povo negro. Logo, o
genocídio é um processo histórico e também um projeto político, pois é um
movimento no tempo, para além de ser ação organizada em nível institucional.
Trata-se, então, de uma possível chave de explicação em potencial para a
história social do Brasil contemporâneo ou até mesmo da história geral do
Brasil.
Ainda
assim, apesar de todo potencial analítico, fica pendente a seguinte questão:
quais são os mecanismos de verificação preliminar mobilizados por Abdias
Nascimento a fim de testar a sua proposição acerca do genocídio negro? Noutras
palavras, Florestan Fernandes tinha razão em dizer, em fins dos anos 1970, que
essa categoria de análise contemplava uma realidade histórica que não tinha
sido “suficientemente estudada pelos cientistas sociais”?
Em
princípio, Abdias do Nascimento, na sua obra, oferece maior destaque as
seguintes estratégias históricas que serviram ao projeto de genocídio do povo
negro: o branqueamento da raça; a proibição de discussão sobre a raça; a
discriminação; o embranquecimento cultural; a perseguição a cultura africana. E
interessa aqui chamar a atenção para os tipos de documentação histórica
mobilizada para interpretar esses fenômenos sociais que, na tese de Abdias
Nascimento, são evidências do processo de genocídio.
Em
relação aos processos de branqueamento, Abdias Nascimento aponta para a própria
corporeidade da população negra enquanto uma fonte que guarda em si as marcas
do racismo no Brasil. Dos elementos que constituem esse corpo negro, a
miscigenação, produto do estupro das mulheres negras desde tempos coloniais,
seria uma das primeiras evidências do projeto de genocídio. Muito obviamente, o
autor não cai numa generalização dos processos de miscigenação. Vejamos com
atenção: “Para a solução deste grande problema – a ameaça da “mancha negra” –
já vimos que um dos recursos utilizados foi o estupro da mulher negra pelos
brancos da sociedade dominante, originando os produtos de sangue misto: o
mulato, o pardo, o moreno, o pardo-vasco, o homem de cor, o fusco, e assim por
diante, mencionados anteriormente. O crime de violação e de subjugação sexual
cometido contra a mulher negra pelo homem branco continuou como prática normal
ao longo das gerações. (…) Situado no meio do caminho entre a Casa Grande e a
senzala, o mulato prestou serviços importantes à classe dominante. Durante a
escravidão, ele foi capitão-de-mato, Feitor e usado noutras tarefas de
confiança dos senhores, e, mais recentemente, o erigiram como símbolo da nossa
“democracia racial”. Nele se concentram as esperanças de conjurar a “ameaça
racial” representada pelos africanos. Estabelecendo o tipo mulato como o
primeiro degrau na escada de branco, ele é o marco que assinala o início da
liquidação da raça negra no Brasil” (Nascimento, Abdias; 2016; p. 83).
Cabe
aqui uma ênfase necessária. Abdias Nascimento, no texto supracitado, não está
dizendo que o mulato não tem agência sobre si ou sua história, não está
afirmando que a razão do mulato como ser social está circunscrita na reprodução
da ordem material e espiritual de matriz colonial. Ele está apenas apontando
que para a existência social do mulato é atribuída uma função política racista,
pois o mesmo, na ideologia racial oficial, é qualificado como ideal de não
branco, especificamente por ser quase branco.
Sendo
compelido, por conta dessa qualificação, a ocupar lugares sociais
intermediários cujos capitais sociais lhe distinguem do negro retinto ou de
qualquer outro negro cuja ascendência africana esteja mais acentuada. Abdias
Nascimento identifica, através do mulato, o lugar e o tipo do negro que
performa o papel de integrado. Esse lugar pode ser discutido? Sim. Todo mulato
é um negro integrado a ordem social racista? Não. Todo mulato performa papéis
sociais que levam a reprodução do racismo? Também não. O sistema de ideias que
constitui a interpretação sobre o genocídio na obra de Abdias Nascimento foi
formulado pelo mesmo na década de 1970. Portanto, obviamente nem serão todas as
suas formulações que passarão pelo crivo da crítica.
Voltando
ao texto, naquilo que diz respeito a estratégias empregadas pelo projeto de
genocídio, Abdias Nascimento aponta como documentação produzida pela proibição
do debate racial; a discriminação; embranquecimento cultural; a perseguição a
cultura africana, as seguintes fontes:
Dados
discutidos no Primeiro Congresso Universal de Raças, em Londres no ano de 1911,
onde a questão racial no Brasil foi debatida; dados fornecidos pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística em relação ao desenvolvimento da
população entre 1872 e 1950; crônicas escritas no século XIX por viajantes
brancos, estadunidenses e europeus, feitas sobre a situação dos negros no
Brasil; o ato de 1899, no qual Rui Barbosa alegadamente mandou incinerar todo
um conjunto de registros estatísticos em relação à escravidão; artigos de
jornais de variados períodos; as reações à lei Afonso Arinos de 1951;
recenseamentos realizados na década de 1950 e 1970 fornecedores de dados sobre
a identificação, distribuição na economia e lugar no sistema educativo da
população negra em estados como a Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro; pesquisas
encomendadas pela UNESCO, e despachos telegráficos produzidos em função desses
trabalhos, textos que se dedicam comparação da questão racial brasileira com
outros lugares no mundo.
De
fato, um conjunto muito amplo, e variado, de documentos históricos cujo estudo
demandaria a redação de um outro texto intitulado “Das Fontes Históricas no
Genocídio do Negro Brasileiro – teoria e metodologia da pesquisa histórica de
Abdias Nascimento”, algo que não interessa fazer aqui. O que cabe é apontar a
natureza predominantemente qualitativa da análise dessas fontes históricas e
dos dados registrados nela.
Fato
que implica na interpretação preliminar de que em fins dos anos 1970, quando
Abdias Nascimento elaborou o seu conceito de genocídio do povo negro, ainda não
haviam, por conta de diversos fatores que giram em torno da composição social
das pós-graduações, um conjunto de pesquisas quantitativas dedicadas aos
aspectos mais concretos do processo genocídio negro no Brasil, até porque esse
conceito sequer ainda estava popularizado como uma chave de interpretação da
questão racial em nível nacional.
Ademais,
essa ausência foi sanada nas décadas seguintes, como é possível verificar
através de um levantamento bibliográfico simples nos acervos digitais dos
repositórios e periódicos científicos das Universidades públicas brasileiras.
Conjunto bibliográfico que se comentado em toda sua extensão, acabaria por
resultar noutro texto de História das Ciências “A Categoria de Genocídio no
Estudo da Questão Racial Brasileira – geografia disciplinar, referências
teóricas e propostas de intervenção (1978-2011).
Contudo,
tendo em vista os limites desse pequeno texto, cabe aqui apenas um comentário
sobre alguns desses estudos quantitativos nessa agenda de pesquisa sobre o
genocídio. Por exemplo, textos como Do genocídio da criança e do adolescente
negro durante e após a escravidão (2022) e Análise das Mortes Violentas
Intencionais de Negros/as Nordestinos/as Pela Violência Policial (2024) ambos
por Francisco Flávio Eufrazio.
Pesquisas
que, assim como outras do mesmo tipo, certamente não são lidas com a frequência
que merecem. Nessas citadas aqui, o autor analisa fontes como o Anuário
Demógrafo-Sanitário do Rio de Janeiro entre 1907-1916, a fim de apontar o papel
contraditório de políticas higienistas na construção e constituição do espaço
social da população negra, ou os censos demográficos e Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD), a fim de demonstrar a correlação entre esses
mecanismos e, notem a conceituação, “as estratégias racistas de controle
populacional”.
E, por
fim, das fontes analisadas, uma das mais contundentes sobre a situação de
genocídio dentre a elencadas por Flávio Eufrazio: anuários do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública v.14 (2020), v.15 (2021) e v.16 (2022), onde segundo um
percentual interessante e triste, calculado pelo próprio autor, e facilmente
verificável na documentação supracitada, do ano de 2019 para 2021 as “mortes
por intervenção policial (MIP)” saíram de 79% para 84,10%.
Portanto,
nesse longo comentário, para um texto que se pretendia ser apenas uma breve de
discussão sobre a categoria de genocídio, podemos notar que na história do
pensamento e das ciências sociais, especificamente no debate sobre o genocídio
negro, esse é, para além de um elemento central proposição lógica verificada,
uma categoria de análise relevante para interpretação da história social do
Brasil, da formação racial brasileira.
Sendo
desde suas primeiras elaborações até as mais atuais, uma assertiva testada
continuamente por diferentes quadros das ciências sociais brasileiras, não
apenas de forma qualitativa, tendo sua dimensão simbólica investigada, como
também de forma quantitativa, tendo suas características mais concretas
mensuradas e, graças ao investimento público em ciência, constantemente
revisadas.
Fonte:
Por Juan Michel Montezuma, em A Terra é Redonda

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