A
luta esquecida dos negros pelo fim da escravidão no Brasil
Há 137
anos, o domingo de 13 de maio de 1888 amanheceu ensolarado no Rio de Janeiro, a
capital do Império do Brasil.
Era um
dia de festa. A escravidão chegava ao fim por meio de uma lei votada no Senado
e assinada pela princesa Isabel.
O
Brasil era o último país da América a acabar com a escravidão. Ao longo de mais
de três séculos, foi o maior destino de tráfico de africanos no mundo, quase
cinco milhões de pessoas. Grande parte dos descendentes daqueles que chegaram
também fora escravizada.
"Todos
saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente,
foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto", recordou
cinco anos depois o escritor Machado de Assis, que participou das comemorações
do fim da escravidão, no Rio.
Outro
escritor afro-descendente, Lima Barreto, completava 7 anos naquele 13 de maio e
celebrou o aniversário no meio da multidão.
Décadas
depois, se lembraria: "Jamais na minha vida vi tanta alegria. Era geral,
era total. E os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me
uma visão da vida inteiramente (de) festa e harmonia".
Na
festa, Isabel foi exaltada pelo povo. Mas a abolição não foi uma ação
benevolente da princesa e do Senado. Tampouco derivava apenas da exaustão do
modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído
pelo trabalho livre.
O fim
da escravidão no Brasil foi impulsionado por diversos fatores, entre eles, uma
importante participação popular.
Cada
vez mais escravos, negros livres e brancos se juntaram aos ideais
abolicionistas. Sobretudo, na década de 1880.
As
principais táticas eram a reunião em diferentes associações abolicionistas, a
realização de eventos artísticos para angariar apoio, o ingresso de processos
na Justiça e até o apoio a revoltas e fugas de escravos.
Na
segunda metade da década de 1880, o abolicionismo pôs o Brasil em polvorosa.
Ceará,
Amazonas e algumas cidades isoladas já tinham se declarado livres da
escravidão.
Fugas e
revoltas de escravos eram cada vez mais frequentes. Depois de fugir, eles
tentavam chegar até quilombos e territórios já libertos.
A
polícia era convocada para reprimir, mas também passou a se rebelar. O chefe do
Exército chegou a escrever para a princesa exaltando a liberdade e dizendo que
não iria mais caçar escravos fugidos.
No
Parlamento, os debates pela abolição pegavam fogo. Na Justiça, havia um número
cada vez maior de ações para reivindicar a liberdade.
Nas
cidades, espetáculos artísticos eram seguidos de libertações massivas de
escravos — no final, flores costumavam ser atiradas ao palco e o público saía
aos gritos de "Viva a liberdade, viva a abolição".
"Depois
da abolição, aconteceram várias celebrações em torno da princesa Isabel. Parte
dos abolicionistas, inclusive, associou a abolição à Coroa. Mas (a princesa)
teve uma importância bem lateral", fala a socióloga Angela Alonso,
professora da Universidade de São Paulo e autora do livro Flores, Votos e
Balas, sobre o movimento abolicionista.
"Há
vários líderes negros que foram muito importantes."
Ricardo
Tadeu Caires Silva, professor da Universidade Estadual do Paraná, explica que
durante muito tempo o estudo da história tratou a abolição como uma dádiva da
princesa Isabel, "ignorando a agência dos principais interessados na
abolição: os escravos".
Somente
mais tarde, os escravos passaram a ser considerados protagonistas do processo.
"Aqueles
que vencem a batalha é que fazem a narrativa. Nós historiadores temos que
reconstituir o processo da batalha, para recuperar as vozes daqueles que não
foram ouvidas", complementa Maria Helena Machado, também da USP,
especialista em escravidão.
A lei
assinada pela princesa — e apelidada de Lei Áurea — vinha tarde. Todos os
países da América já tinham abolido a escravidão. O primeiro, foi o Haiti, 95
anos antes, em 1793.
A
maioria demorou para seguir o pioneiro, e fez suas abolições entre os anos 1830
e 1860. Os Estados Unidos, em 1865. Cuba, a penúltima a abolir a escravidão, o
fez dois anos antes do Brasil.
Em
nenhum outro país, contudo, a escravidão teve a dimensão brasileira.
Enquanto
389 mil africanos desembarcaram nos Estados Unidos, no Brasil foram 4,9 milhões
— 45% de toda a população que deixou a África como escrava.
No
caminho, cerca de 670 mil morreram. O gigantismo da escravidão no Brasil
dificultou o seu fim — ela estava impregnada na vida nacional.
A lei
também vinha curta e seca.
"Artigo
1: É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brazil.
Artigo
2: Revogam-se as disposições em contrário".
Nada
mais. Nenhuma indenização ou compensação para os recém-libertos, estimados em
1,5 milhão de pessoas naquela época, nenhuma política de emprego ou de acesso à
terra. Isso dificultou a integração dos ex-escravos.
"(A
alegria trazida pela lei da abolição) havia de ser geral pelo país, porque já
tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas
como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos
preceitos, das regras e das leis!", ponderou Lima Barreto, ao se recordar
da festa da abolição.
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O movimento abolicionista
Em
1886, a célebre cantora lírica russa Nadina Bulicioff veio ao Brasil para fazer
uma série de espetáculos, a convite do imperador Pedro II. Estava em cartaz com
a peça Aida — nome da personagem principal, filha do rei da Etiópia,
escravizada no Egito.
A
temporada teve grande sucesso, especialmente, a última apresentação. Em certa
altura da história, Aida foge do cativeiro, ainda com algemas.
Nesse
momento, o abolicionista José do Patrocínio interrompeu a cena e subiu ao palco
com seis mulheres escravizadas.
Então,
a russa rompeu as algemas do figurino e, por um momento, trocou a ficção pela
realidade: entregou cartas de liberdade verdadeiras para as seis escravas, que
se tornaram livres naquele momento, como Aida.
"Sete
Aidas. Choraram elas e o público, em delírio. Houve palmas e vivas, lançaram-se
flores, soltaram-se pombos", relata Angela Alonso no livro "Flores,
Votos e Balas".
Era um
evento abolicionista, já pré-combinado.
Na
passagem pelo Brasil, Nadina ficou horrorizada com a escravidão. Recebeu uma
joia de presente de admiradores e resolveu doá-la para comprar cartas de
liberdade. O jornalista e escritor José do Patrocínio, negro e livre, ajudou a
colocar a ideia em prática.
Patrocínio
já estava acostumado a organizar eventos artísticos em prol da libertação dos
escravos. Essa era uma das principais táticas do movimento abolicionista, do
qual o jornalista fazia parte.
As
apresentações de música e teatro angariavam recursos para comprar cartas de
liberdade, estimulavam as pessoas a libertarem seus próprios escravos e,
principalmente, ajudavam a persuadir a opinião pública.
Foram
realizados mais de 800 eventos artísticos abolicionistas, segundo catalogação
de Angela Alonso.
"A
arte era uma das formas mais viáveis de política abolicionista. Nesses eventos
há um apelo à humanidade e à compaixão", diz.
Desde o
final da década de 1860, o movimento abolicionista estava nas ruas. Nos anos
1880, atingiu seu auge.
A base
da sua organização eram as associações abolicionistas, que se multiplicavam
pelo país — Alonso registrou 296, em todos os Estados. Entre elas, havia
sociedades formadas apenas por mulheres.
Para a
socióloga, o abolicionismo foi o primeiro movimento social brasileiro.
Além
das artes, outra tática usada pelos abolicionistas foi a judicial.
Luís
Gama, um ex-escravo que se tornou advogado dos escravos, ajudou a libertar
cerca de 500 pessoas graças a processos nos tribunais, e fez seguidores.
Gama
nasceu livre na Bahia. Mas, ainda criança, acabou vendido como escravo e foi
levado para São Paulo.
Aos 17
anos, aprendeu a ler e escrever. Em seguida, reivindicou sua liberdade ao seu
proprietário — e conseguiu. Afinal, nascera livre, e livre era.
Alguns
anos depois, Gama se tornou rábula (advogado auto-didata, sem diploma) e fez da
profissão uma forma de luta contra a escravidão.
Um dos
seus argumentos mais vitoriosos para obter a libertação era provar que os
africanos haviam sido trazidos para o Brasil quando o tráfico negreiro já era
ilegal.
A
primeira proibição do tráfico data de 1831, originada de uma queda-de-braço do
Brasil com a Inglaterra, que tentava forçar o fim do comércio de escravos. Mas
a lei foi pouco efetiva.
Nos
dois primeiros anos, o comércio de africanos caiu. Depois, voltou a subir e
continuou como se nada tivesse acontecido. Foi somente em 1850 que veio a
proibição definitiva do tráfico.
Luís
Gama — e outros advogados abolicionistas — argumentava que os 739 mil africanos
que entraram no Brasil depois de 1831 tinham sido sequestrados, já que o
tráfico estava proibido. Por isso, deveriam ser libertados imediatamente.
Outra
forma frequente de disputa judicial eram as "ações de liberdade",
pelas quais o escravo solicitava a compra de sua própria alforria. Esse tipo de
processo foi um fruto inesperado da lei do Ventre Livre, de 1871.
Além de
prever a libertação dos filhos de mães escravas nascidos a partir de então, a
lei do Ventre Livre permitiu que escravos juntassem dinheiro e comprassem a
alforria.
Já a
libertação das crianças enfrentou mais problemas.
Há
relatos de que registros de nascimento foram adulterados para simular que as
crianças tinham nascido antes da lei e, portanto, seriam escravas.
Em
outros casos, os proprietários das mães continuavam explorando o trabalho
infantil.
Além
dos palcos e tribunais, os abolicionistas travaram um duro embate com os
escravistas no Senado.
No jogo
de forças do Império, a visão que prevalecia era de uma abolição gradual para
evitar o colapso da economia, muito dependente do trabalho escravo.
Foi
assim que foi aprovado, primeiro, o fim do tráfico; 19 anos depois, o fim
definitivo do tráfico; após mais 21 anos, a liberdade das crianças; passados
outros 14 anos, a dos idosos, protelando o fim definitivo da escravidão.
A
demora parlamentar foi tanta que estimulou o florescimento da desobediência
civil.
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O aumento das revoltas
No dia
5 de outubro de 1887, seis escravos decidiram tomar as rédeas de seu destino.
Armaram-se com espingardas e facas e, juntos, fugiram da fazenda de seu senhor,
no sertão da província da Bahia.
O
objetivo de Agostinho, Cornélio, José, Teófilo, José Arruda e Libório era ir
para uma cidade distante e se passar por não-escravos — na época, o número de
negros e pardos livres já era maior que o de escravos.
Nos
anos que antecederam a abolição, fugas, revoltas e quilombos fervilhavam no
Brasil. Em alguns casos, eram incentivados por militantes — muitos deles,
ex-escravos —, que iam para fazendas conscientizar escravos e estimular fugas.
Um
deles foi Pio, ex-escravo que tinha se tornado estivador em Santos.
Nas
vésperas da abolição, Pio organizou uma fuga em massa na região de Itu,
interior de São Paulo, rumo a um quilombo no litoral. O grupo, porém, foi
massacrado por forças policiais na Serra do Mar.
"Os
próprios escravos contribuíram de forma decisiva para acelerar o processo do
fim da escravidão", diz o historiador Ricardo Tadeu Caires Silva,
professor da Universidade Estadual do Paraná, que encontrou o caso dos seis
escravos na seção judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia.
"A
abolição foi feita muito mais por uma pressão das ruas, das senzalas, do que
por uma decisão política com base na bondade."
Algumas
vezes as fugas tinham como destino Ceará e Amazonas.
Em
1884, quatro anos antes da Lei Áurea, ambos Estados já tinham abolido a
escravidão, graças à pressão dos abolicionistas para criar territórios livres
pelo país.
O
objetivo era justamente ter áreas de refúgio para escravos fugitivos, além de
pressionar a monarquia.
O
projeto de criar territórios livres começou no Ceará, que tinha um governo
favorável à abolição.
Para
colocar o plano em prática, José do Patrocínio viajou até o Estado, reunindo em
torno de si uma caravana abolicionista, conta Angela Alonso.
O grupo
bateu de porta em porta para tentar convencer os donos de escravos a
libertá-los.
Houve
até fugas internacionais, em regiões do Brasil próximas à fronteira de países
que já estavam livres da escravidão, observa o historiador José Maia Bezerra
Neto, da Universidade Federal do Pará.
"Existem
estudos que apontam fugas de escravos para a Bolívia, Guiana Francesa, Uruguai.
Em minhas pesquisas, encontrei até senhor suspeitando de um escravo que
tencionava fugir para a Espanha!".
"Os
escravos começam a organizar muitas revoltas e tomaram a dianteira de sair das
fazendas, colocando em xeque a segurança pública. Eram influenciados pela
efervescência do discurso abolicionista. Na sociedade, também havia um clima de
não tolerar mais castigos físicos", afirma a historiadora Maria Helena
Machado, da Universidade de São Paulo, especialista em abolição.
Machado
estudou os registros criminais de duas regiões paulistas, de 1830 até a
abolição, e percebeu um aumento da violência contra senhores e feitores a
partir de 1870.
"Eram
crimes planejados, insurreições. Muitas vezes, em reação à violência física
contra os escravos." Se por um lado a escravidão havia se mantido pela
violência, por outro, alguns escravos passaram a combatê-la também com
violência.
Há até
casos de escravos que mataram seu senhor.
Um
deles aconteceu em uma colônia de imigrantes europeus no Espírito Santo. Ali,
na década de 1880, um grupo de escravos descobriu que seu proprietário havia
morrido e outro indivíduo comprara a fazenda.
Eles
então armaram tocaia e mataram o novo senhor com golpes de cacetes na cabeça.
Justificaram o crime dizendo que temiam maus tratos.
Por
outro lado, segundo Machado, os fazendeiros também se organizaram para ameaçar
abolicionistas.
O caso
mais notável ocorreu três meses antes da Lei Áurea: o linchamento do delegado
abolicionista Joaquim Firmino Cunho, de Penha do Rio do Peixe, interior de São
Paulo.
Durante
à noite, uma turba de escravistas entrou em sua casa e o espancou até a morte.
Participaram do crime dois ex-confederados dos Estados Unidos (os escravistas
do Sul que lutaram contra o Norte na guerra civil americana).
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E depois da abolição?
A
abolição não ocorreu como parte dos abolicionistas queria.
O
engenheiro negro André Rebouças, que fazia a ponte entre o abolicionismo das
ruas e o dos gabinetes políticos e é considerado um dos principais
articuladores do fim da escravidão, pregava que a abolição fosse acompanhada de
uma reforma agrária, que destinasse terras para os ex-escravos.
Outro
grande político abolicionista, Joaquim Nabuco, que nasceu em uma família
escravocrata, aderiu às ideias de Rebouças.
Ambos
temiam que surgisse no Brasil uma nova forma de injustiça social após a
abolição.
A forma
que a abolição ocorreu, sem apoio para os ex-escravos começarem uma vida nova,
tem consequências negativas até hoje, segundo o presidente da Fundação
Palmares, Erivaldo Oliveira. Para ele, é uma das causas da profunda
desigualdade racial brasileira.
É por
isso que o movimento negro não comemora a data, mas sim o 20 de novembro, que
marca a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares,
representando a resistência negra.
Isso
não significa, no entanto, que o 13 de maio não deva ser lembrado, diz
Oliveira: "A abolição foi fruto de uma pressão social. A gente precisa
recontar essa história, dos heróis e heroínas que lutaram pelo fim da
escravidão". Sem esquecer que, 130 anos depois da abolição, a desigualdade
persiste.
"Durante
esses mais de 130 anos somos maioria no país. Mas não somos no Congresso
Nacional, nos ministérios, nos tribunais, nas universidades, nas grandes
empresas privadas. Isso precisa mudar", completa Oliveira.
E se os
abolicionistas vissem o Brasil hoje, 137 anos depois?
"Acho
que eles entrariam em campanha, fariam um movimento de novo. Inclusive com as
mesmas bandeiras que eles tinham (de promoção de oportunidades para os negros),
que não foram implementadas", opina Alonso.
Fonte:
BBC News Brasil

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