quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Os carrascos nazistas que fugiram para o Brasil

Quando soube que Franz Stangl tinha sido preso, em 28 de fevereiro de 1967, pouco depois das 18h30, por agentes do Dops em São Paulo, o órgão de repressão da ditadura militar, o austríaco Wolfgang Gerhard planejou a fuga do carrasco nazista. A ideia era usar uma kombi para resgatá-lo da prisão.

"O plano era tão mirabolante que, provavelmente, não daria certo", acredita a jornalista Betina Anton, autora de Baviera Tropical – A história de Josef Mengele, o médico nazista mais procurado do mundo, que viveu quase 20 anos no Brasil sem nunca ser pego (Todavia, 2023).

Gerhard era um simpatizante do nazismo que vivia no Brasil desde 1948. Foi ele quem, a pedido do coronel Hans-Ulrich Rudel, ajudou Josef Mengele a encontrar refúgio no país, em 1960. Ao ouvir o plano para libertar Stangl, Mengele não quis participar. O nazista, que ficou conhecido como o "Anjo da Morte de Auschwitz", não queria chamar a atenção da polícia ou colocar seu anonimato em risco.

Já Stangl ao ser capturado não esboçou reação ou tentou fugir. Pelo contrário. Suspirou aliviado. "Seu maior temor era ser pego pelo Mossad", prossegue Anton, referindo-se ao serviço secreto israelense.

As histórias de Stangl e Mengele são contadas no livro Os Nomes do Terceiro Reich – A História dos Principais Personagens do Nazismo e da Alemanha na Segunda Guerra Mundial (Difel, 2024). A obra retrata ainda mais dois nazistas que fugiram para o Brasil: Gustav Wagner, a "Besta de Sobibor", e Herberts Cukurs, o "Açougueiro de Riga". "Houve outros, sim. Muitos fugiram para o Brasil. Mas nem todos tinham importância no alto escalão do Terceiro Reich", justifica o historiador Rodrigo Trespach, autor do livro. Stangl comandou os campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, e Mengele fez experimentos no de Auschwitz, todos na Polônia.

Embora quatro dos mais procurados nazistas tenham fugido para o Brasil, o país não era o destino favorito deles. Na América Latina, grande parte deles fugiu para a Argentina e o Paraguai. Ou porque seus governantes tinham simpatia por regimes autoritários ou porque suas cidades estavam repletas de imigrantes alemães.

"O Brasil era miscigenado demais para os padrões europeus", explica o historiador Marcos Guterman, autor de Nazistas Entre Nós – A Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Guerra (Contexto, 2024). "Além de ser um país quente, era tido como atrasado e inóspito", acrescenta.

·        Passado a limpo

Dois desses carrascos ganharam biografias: Cukurs e Mengele. A de Cukurs, O Homem dos Pedalinhos – A História de Um Alegado Criminoso Nazista no Brasil do Pós-Guerra (FGV, 2021), foi escrita pelo historiador Bruno Leal. O aviador letão chegou ao Brasil no dia 4 de março de 1946 a bordo do navio espanhol Cabo da Boa Esperança. Estava acompanhado da mulher, dos três filhos e de uma judia, Miriam Kaicners, de 23 anos. "Algo que me surpreendeu foi o fato de Cukurs ter salvado essa jovem", admite Leal. "Os motivos não são conhecidos. Talvez nunca sejam."

A de Mengele, Baviera Tropical, ganhou o Jabuti na categoria Biografia e Reportagem, será publicada em 15 países (o mais recente é o Reino Unido) e já recebeu propostas para o cinema. No livro, Anton conta a história, entre outros sobreviventes de Auschwitz, da tcheca Ruth Elias. Pouco depois de dar à luz, ela teve seus seios enfaixados por Mengele. O médico queria saber por quanto tempo seu bebê sobreviveria sem ser amamentado pela mãe. "Qual é o resultado prático dessas pesquisas? Nenhum!", responde a autora. "Não era ciência, era sadismo."

Os dois nazistas tiveram desfechos diferentes. Mengele morreu afogado durante um mergulho em Bertioga, no dia 7 de fevereiro de 1979. Quando o cabo da Polícia Militar Espedito Dias Romão chegou à Praia da Enseada para atender a uma chamada, já encontrou o banhista morto. "Não havia nada que eu pudesse fazer", explica.

Uma curiosidade: o documento apresentado pelo casal Wolfram e Liselotte Bossert, que estava com Mengele na hora de sua morte, identificava o corpo como sendo de Wolfgang Gerhard, o mesmo que, 12 anos antes, planejara a fuga de Stangl. Sua verdadeira identidade só foi descoberta em 1985.

Já Cukurs morreu em uma emboscada no Uruguai. No dia 12 de setembro de 1964, Yaakov Meidad, o agente do Mossad responsável pela captura de Adolf Eichmann na Argentina, desembarcou no Brasil. Dias depois, se apresentou a Cukurs como Anton Kuenzle, empresário austríaco em busca de um parceiro comercial. Depois de conquistar sua confiança, convenceu Cukurs a viajar para Montevidéu. Quando Cukurs descobriu que tinha caído numa armadilha, era tarde demais. "Deixem-me falar!", foram suas últimas palavras em alemão.

·        Nas telas do cinema

Cukurs morreu no dia 23 de fevereiro de 1965, com dois tiros à queima-roupa. Seu corpo foi encontrado, 11 dias depois, em um baú de madeira. Sobre o corpo, um bilhete: "Aqueles que não esquecerão". A operação do Mossad para localizar Cukurs no Brasil e executá-lo no Uruguai é um dos motes do filme Cisne Manchado de Sangue.

O título faz alusão aos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos principais cartões-postais do Rio. No finalzinho dos anos 1950, Cukurs criou o badalado passeio turístico – à época, o pedalinho ainda não tinha o formato de cisne.

A principal fonte de pesquisa é O Homem dos Pedalinhos, de Bruno Leal. Mas, o cineasta Alex Levy-Heller leu outros títulos, como The Execution of the Hangman of Riga (2004), de Anton Kuenzle e Gad Shimron; e The Good Assassin (2020), de Stephan Talty. "A parte mais difícil é também a mais prazerosa. É como montar um quebra-cabeça", compara. "Por que Cukurs foi assassinado em vez de ser levado a julgamento? Por que a ditadura militar se recusou a deportá-lo? Havia certeza de que Cukurs era, de fato, um criminoso de guerra?", indaga o diretor e roteirista.

A história de Cukurs não é a única a virar filme. Os oito anos em que Stangl trabalhou na Volkswagen, no ABC Paulista, serão contados no documentário The Factory's Basement (O Porão da Fábrica). A ideia é do jornalista e escritor Fernando Moraes e está sendo desenvolvida pelos diretores Gustavo Ribeiro e Ricardo Calil.

"O documentário pretende desvendar o mistério sobre as atividades do Stangl na Volkswagen e a participação da montadora na delação de trabalhadores para a ditadura", adianta Ribeiro. "Ele delatou ou não os operários da Volks para o Dops?", questiona.

Por ironia, o próprio Stangl foi preso, por agentes do Dops, em 28 de fevereiro de 1967. Quase quatro meses depois, no dia 22 de junho, foi extraditado para a Alemanha. "Estou tranquilo porque nunca mandei matar ninguém. Minha função não me permitia dar tais ordens. Retornarei ao Brasil como homem livre", declarou aos jornais da época.

Condenado à prisão perpétua em 22 de outubro de 1970 por um tribunal alemão, Stangl morreu de insuficiência cardíaca numa cela em Düsseldorf no dia 28 de junho de 1971.

·        "Castelo da Morte"

Antes de chegarem ao Brasil, Stangl e Wagner passaram pelo Castelo de Hartheim, na Áustria. Foi no "Castelo da Morte" que, no dia 6 de junho de 1941, morreu, numa câmara de gás disfarçada de banheiro, a princesa brasileira Maria Carolina de Saxe-Coburgo e Bragança. Dos chuveiros, não saía água, mas gás. Da inalação ao óbito, a vítima não durava mais do que 20 minutos...

"Não há documento que vincule a morte da princesa a Stangl ou a Wagner. Mas é improvável que eles não soubessem dela e do que aconteceu com ela", afirma o historiador Marcos Guterman.

A princesa Maria Carolina é bisneta do imperador Dom Pedro 2º. Ao todo, o príncipe Augusto Leopoldo e sua mulher, Carolina da Áustria-Toscana, tiveram oito filhos. Desses, três nasceram com problemas mentais: Augusto, Maria Carolina e Leopoldina. No caso de Maria Carolina, além da deficiência mental, ela teria poliomielite.

O Castelo de Hartheim era um dos seis centros de extermínio existentes na época. Estima-se que, entre maio de 1940 e agosto de 1941, 18,2 mil deficientes físicos e mentais tenham sido executados em Hartheim: uma média de 40 por dia.

Caseiro em um sítio de Atibaia, Gustav Wagner se entregou à polícia em 30 de maio de 1978. Tinha medo de ser capturado por Simon Wiesenthal, o famoso "caçador de nazistas". Na prisão, tentou o suicídio algumas vezes. Fora dela, outras mais. Tirou a própria vida, com uma facada no peito, no dia 3 de outubro de 1980.

"Era o estereótipo do nazista: violento e desumano", resume o historiador Felipe Cittolin Abal, de Nazistas no Brasil e Extradição: Os Pedidos de Extradição de Franz Stangl e Gustav Wagner em Uma Análise Histórico-Jurídica (Juruá, 2014).

Dos quatro nazistas do alto escalão que fugiram para o Brasil, Gustav Wagner foi o último a morrer.

 

¨      Os judeus forçados a trabalhar nas câmaras de gás no Holocausto: 'Perguntei a mim mesmo: onde está Deus?'

Eles eram chamados de Sonderkommandos — membros de uma unidade especial criada pelos nazistas para trabalhar em campos de extermínio como Auschwitz-Birkenau durante o Holocausto.

Mas eles não eram soldados alemães, nem sequer aliados.

As unidades dos Sonderkommando consistiam em prisioneiros judeus deportados para Auschwitz de 16 países diferentes, e o seu trabalho alimentava a máquina de matar.

"Trabalhei nos crematórios. Levava pessoas [corpos] das câmaras de gás para os fornos", contou Dario Gabbai.

O ex-prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz foi uma das últimas testemunhas oculares da chamada "solução final" — o plano nazista para erradicar o povo judeu da Europa, que culminou no assassinato de seis milhões de judeus.

O complexo de Auschwitz-Birkenau é o local do maior assassinato em massa da história da humanidade — estima-se que 1,1 milhão de pessoas foram mortas, das quais mais de 90% eram judeus. Este número é maior do que as perdas sofridas pelo Reino Unido e pelos EUA durante toda a guerra.

Auschwitz-Birkenau foi finalmente libertado pelas tropas soviéticas em 27 de janeiro de 1947. Esta data é agora lembrada como o Dia da Memória do Holocausto.

·        Corte de cabelo

Os membros do Sonderkommando eram forçados a ajudar no processo dos assassinatos. As unidades paramilitares de elite de Hitler, conhecidas como SS, eram responsáveis ​​pela execução propriamente dita.

Antes de os corpos serem cremados, os sonderkommandos tinham que realizar uma busca nas cavidades das vítimas à procura de implantes, como dentes de ouro, e objetos de valor escondidos.

Gabbai tinha a tarefa específica de cortar e recolher os cabelos das mulheres assassinadas.

Décadas depois, ele relembrou como se sentia ao conversar com uma organização americana dedicada a entrevistar sobreviventes do Holocausto, a USC Shoah Foundation.

"Perguntei a mim mesmo: Como posso sobreviver? Onde está Deus?", contou Gabbai.

Um polonês disse a ele para se manter forte, e ele levou esse conselho a sério.

"Eu disse a mim mesmo: eu sou um robô... feche os olhos, e faça o que tiver que ser feito sem perguntar muito", acrescentou.

·        Depoimentos

Na década de 1980, o historiador do Holocausto baseado em Israel, Gideon Greif, começou a pesquisar sobre os sonderkommandos.

Greif documentou a experiência de 31 sonderkommandos em seu primeiro livro sobre eles, We Wept Without Tears (Choramos Sem Lágrimas, em tradução livre).

Um dos sonderkommandos documentados por Greif foi Ya'akov, irmão de Dario Gabbai.

Ya'akov viu dois de seus primos chegando à câmara de gás. Ele os instruiu a se sentarem perto de onde o gás era liberado para que tivessem uma morte rápida e indolor.

"Por que eles deveriam sofrer tanto?", explicou ele mais tarde a Greif.

Josef Sackar foi o primeiro sonderkommando que Greif conheceu, em 1986. Sackar era frequentemente destacado para trabalhar no local onde as mulheres eram obrigadas a se despir.

"Virava minha cabeça para outra direção, e me certificava de que elas não ficassem muito constrangidas", disse Sackar a ele.

Shaul Chasan revelou, por sua vez, que tinha que retirar os corpos dos mortos das câmaras de gás e colocá-los nos elevadores que os levariam para os crematórios.

Ele contou a Greif como sempre se esforçava para garantir que os corpos não fossem arrastados sobre a sujeira e os detritos no chão das câmaras de gás.

Outro sonderkommando testemunhou como um grupo de crianças polonesas nuas começou a cantar Shema Yisrael, uma oração judaica, e entrou na câmara de gás com perfeita disciplina.

·        Valas em chamas

O memorial do Holocausto de Israel, Yad Vashem, observa como os assassinatos aumentaram após o início da deportação dos judeus húngaros em maio de 1944.

"Em apenas oito semanas, cerca de 424 mil judeus foram deportados para Auschwitz-Birkenau."

O número de mortes excedeu em muito a capacidade dos crematórios. Mas o oficial alemão encarregado dos crematórios, Otto Moll, foi implacável, e ordenou aos sonderkommandos que cavassem valas para queimar os corpos.

Uma foto clandestina tirada por um sonderkommando mostra claramente corpos sendo incinerados numa vala a céu aberto — mais tarde, a imagem serviu de evidência sobre o que havia acontecido no campo.

·        Rebelião fracassada

Os sonderkommandos recebiam comparativamente mais comida e melhores condições de vida do que o restante dos presos, que se alimentavam apenas de sopa aguada.

No entanto, o trabalho oferecia pouca proteção. Os nazistas costumavam matar os membros do sonderkommando a cada seis meses, e convocar novos recrutas.

Os nazistas aplicavam uma série de punições para provocar medo. Isso incluía fuzilamento, jogá-los em fogueiras, tortura, espancamento e ser rolado nu sobre cascalho.

"Eles estavam em estado de choque constante. Viam milhares de judeus serem assassinados todos os dias. Foi um grande desafio permanecer vivo", diz Greif.

Eles também eram alojados separadamente e monitorados o tempo todo. No entanto, em um determinado momento, eles reagiram em um evento conhecido como rebelião do sonderkommando.

"Dois irmãos estavam envolvidos no planejamento do levante de 7 de outubro de 1944. Foi uma revolta judaica. Uma história de coragem. Deveria ser escrita em letras douradas", afirma Greif.

Naquele dia, alguns prisioneiros do sonderkommando atacaram seus guardas da SS com pedras e incendiaram um crematório. O ataque foi rapidamente reprimido, e 451 sonderkommandos foram mortos a tiros.

·        Documentando as atrocidades

Outros sonderkommandos, como Marcel Nadjari, registraram sua raiva em pedaços de papel.

"Não estou triste por morrer, mas estou triste por não ser capaz de me vingar como gostaria", escreveu Nadjari, em novembro de 1944.

As cinzas de cada vítima adulta pesavam cerca de 640 gramas, segundo suas anotações.

O judeu grego escondeu seu manuscrito de 13 páginas em uma garrafa térmica, que ele fechou com uma tampa de plástico. Em seguida, colocou a garrafa em uma bolsa de couro e a enterrou.

As anotações deixadas por Nadjari e outros foram recuperadas anos mais tarde, e cuidadosamente decifradas. Elas agora são conhecidas como os Pergaminhos de Auschwitz.

Elas fornecem informações valiosas sobre a dimensão dos crimes.

·        Em busca de justiça

Apenas cerca de 100 sonderkommandos conseguiram sobreviver à guerra. Alguns desempenharam um papel ativo nos julgamentos dos crimes de guerra.

Henryk Tauber testemunhou contra o comandante da SS, Otto Moll.

"Em diversas ocasiões, Moll jogou pessoas vivas nas valas em chamas", lembrou Tauber durante o julgamento perante um tribunal militar americano.

Moll acabou sendo condenado e enforcado por seu papel em uma "marcha da morte".

No entanto, muitos criminosos nunca foram punidos. De um total de cerca de 7 mil funcionários em Auschwitz, apenas cerca de 800 enfrentaram o poder da lei, de acordo com Auschwitz, uma série de documentários da BBC/PBS.

Greif testemunhou contra supostos criminosos nazistas nos tribunais europeus, onde nazistas suspeitos ainda estão sendo julgados.

Gabbai acabou se mudando para Los Angeles, nos EUA, e morreu lá em 2020. Em 2015, ele fez uma visita a Auschwitz para marcar o 70º aniversário da libertação do campo. Ele contou à BBC o que o fez seguir adiante.

"Eu disse (a mim mesmo) que essa guerra iria acabar um dia e, quando ela acabasse, eu poderia sobreviver e contar as histórias para o mundo."

 

Fonte: BBC Word Service

 

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