'Rio
virou um abrigo para chefe do tráfico do Brasil inteiro', diz autor de livro
sobre crime organizado
A
terça-feira (28/10) foi marcada pela operação policial mais letal desde 1990 na
região metropolitana do Rio, de acordo com levantamento do Grupo de Estudos dos
Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). Ao menos 64
pessoas morreram.
Mas
para o jornalista Rafael Soares, repórter especial do jornal O Globo que cobre
há mais de uma década segurança pública e direitos humanos no Rio, muitas das
peças que ajudam a explicar o contexto desta terça-feira traumática para a
população não são novas nem surpreendentes.
Em
entrevista à BBC News Brasil, Soares apontou algumas dessas peças.
Por
exemplo, as mudanças envolvendo o Comando Vermelho, facção alvo da operação nos
complexos do Alemão e da Penha, na capital fluminense.
De
acordo com o jornalista, nos últimos anos o Comando Vermelho firmou alianças em
outros Estados, "fagocitando" facções locais. Além disso, está
tentando entrar no mercado internacional de drogas, até então monopolizado por
outra organização criminosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC), baseado em
São Paulo.
"Esse
é um processo que vem desde 2021, 2022 — com uma maior quantidade de parceiros
comerciais e de rotas de tráfico de armas e de drogas", aponta Soares,
autor do livro Milicianos (Objetiva, 2023).
Assim,
na análise do jornalista, a entrada de mais dinheiro, seja nacional ou
internacional, está promovendo a expansão do Comando Vermelho — ao que as
forças policiais do Rio têm respondido com a chamada Operação Contenção, da
qual a ação de terça-feira fez parte.
Outra
peça já conhecida desse contexto é escalada da letalidade das operações
policiais promovidas pelo governo estadual de Cláudio Castro (PL), segundo
aponta Soares.
"Desde
2020, o Rio tem colecionado operações com um índice de letalidade surreal de
alto. É muito raro, [quando] você pega a crônica policial brasileira, operações
policiais com mais de 20 mortos. É uma coisa esdrúxula, que só existe no Rio de
Janeiro", diz o jornalista.
Castro,
então vice-governador, assumiu interinamente o governo estadual em 2020, após o
afastamento de Wilson Witzel. Em 2021, assumiu o cargo definitivamente.
Para o
jornalista, outro fator que ajuda a explicar a operação de terça seria parte de
um suposto esforço do governo Castro em encontrar alguma "marca" para
seu governo, que terminará no ano que vem.
Em suas
redes sociais, o governador chamou essa terça-feira de "dia
histórico" e disse que, em reação à operação, "criminosos"
tentaram colocar a cidade e o Estado do Rio de Janeiro de joelhos".
"Mas
as nossas polícias estão nas ruas garantindo a volta para casa, garantindo a
volta da normalidade da vida", assegurou Castro.
Confira
abaixo os principais trechos da entrevista com o jornalista Rafael Soares.
• As facções estão incorporando o uso de
drones. Segundo autoridades do Rio, criminosos usaram drones para lançar bombas
e atacar policiais durante a operação desta terça. Esses equipamentos já são
utilizados como armas de guerra na Ucrânia e em outros lugares do mundo. A
polícia brasileira está preparada para isso?
Rafael
Soares - Essa não é a primeira vez que a gente tem registro de uso de drone
assim.
Se não
me engano, no ano passado, a gente já teve o uso de drone em guerra de facção,
do TCP [Terceiro Comando Puro] contra o Comando Vermelho.
E a
gente também teve uma investigação da Polícia Federal que interceptou mensagens
de um cara responsável por importar drones para o Terceiro Comando.
Esse
uso tem como objetivo o lançamento de granada em territórios inimigos.
Quando
isso começou a acontecer, era um desafio para as forças de segurança.
Lembro
que na primeira ação desse tipo, nesse ataque do TCP, era o pessoal do Complexo
de Israel do TCP no território do Comando Vermelho.
Isso
foi recebido com muita apreensão pelo pessoal da polícia, das forças de
segurança, mas isso já faz mais de um ano.
Com
esse tempo, acho que a polícia já conseguiu, de certa maneira, fazer frente a
isso também, com o uso de tecnologia de drones de helicóptero.
O que é
mais interessante também é que, além de ter seus próprios drones, o tráfico
também tem adicionado ao arsenal deles aparatos para derrubar drones de
adversários.
Tem
vários outros problemas que se adicionam a esse. A questão é de domínio
territorial. A questão urbanística do Rio é mais um empecilho que as forças de
segurança têm.
• No mês passado, houve uma operação
grande em São Paulo de investigação dos braços financeiros do PCC [Primeiro
Comando da Capital]. E, agora, essa megaoperação contra o Comando Vermelho. Por
que agora?
Rafael
Soares - Essa operação faz parte da Operação Contenção.
Toda
operação que tem como objetivo frear o avanço territorial do Comando Vermelho
tem entrado dentro desse contexto da Operação Contenção.
Aqui no
Rio, o Comando Vermelho, ao longo dos últimos cinco anos principalmente, vem,
no âmbito nacional, tentando recuperar o espaço que perdeu para o PCC.
Ao
longo dos últimos dez anos, o PCC cresceu nacionalmente.
O
Comando Vermelho contra-atacou isso fazendo parcerias com facções dos Estados —
basicamente "fagocitando" facções locais como no Amazonas, Rio Grande
do Norte, Bahia...
Esse
ambiente que o Comando Vermelho criou fora do Rio tem criado impactos aqui
dentro do Rio também.
Esse é
um processo que vem desde 2021, 2022 — com uma maior quantidade de parceiros
comerciais e de rotas de tráfico de armas e de drogas.
Depois
que o CV perdeu a fronteira do Paraguai, ele se reinventou para trabalhar a
Rota do Solimões, a rota do Norte do Brasil [para exportar drogas].
Então,
agora, o Comando tem mais parceiros, tem mais droga, tem mais rotas e tem
também entrado em um novo mercado: o de tráfico internacional, que era
monopolizado pelo PCC.
O
Comando ainda não tem uma atuação expressiva nesse mercado, mas a gente já
sabe, já tem investigações da Polícia Federal mostrando que o Comando Vermelho
tem entrado no tráfico internacional.
Isso
domesticamente, aqui no Rio, tem suas consequências. O Comando Vermelho tem
movimentado mais dinheiro, que levou ao movimento expansionista do comando.
Ao
longo dos últimos 20 anos, o Comando perdeu muitos territórios, principalmente
para a milícia. Agora, nesse novo momento, o Comando tem contra-atacado e se
expandido ao longo dos últimos cinco anos.
O
Comando Vermelho basicamente vem lambendo não só o que tinha perdido para a
milícia nos últimos anos, mas também áreas que nunca tinha tido.
Gardênia
Azul é uma favela tradicional da milícia aqui do Rio, que era da milícia há 20
anos e hoje é reduto do Comando Vermelho. Essa operação de hoje, inclusive, tem
relação com a Gardênia.
O Doca,
chefe do Complexo da Penha, hoje também chefia o tráfico na Gardênia Azul, que
ele invadiu e agora controla o tráfico.
Então,
o momento do Comando Vermelho aqui é um momento de expansão e de guerra
territorial.
E,
principalmente do ano passado para cá, o governo do Rio vem tentando essa
estratégia política de concentrar as ações policiais no Comando e batizou isso
de Operação Contenção.
A
operação de hoje, especificamente, é uma operação que tem uma investigação por
trás, uma denúncia do Gaeco [Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime
Organizado, do Ministério Público do Rio] aqui do Rio, contra 67 traficantes.
São 67
mandados de prisão que foram decretados pela Justiça do Rio hoje (terça) de
manhã.
Essa
operação, ao mesmo tempo que faz parte da Operação Contenção, foi uma operação
conjunta de todas as forças de segurança do Rio, com a PM e a Polícia Civil
participando.
É uma
operação que tem alvos que tiveram a prisão decretada por conta de uma
investigação.
Geralmente,
eu critico muito operações desse tipo.
• Por quê?
Rafael
Soares - Por causa do alto nível de risco para moradores, da letalidade. Hoje a
gente já tem mais de 20 mortes [na contagem atual, são ao menos 64].
Já é a
terceira ou a quarta mais letal da história do Estado. Todas as outras foram
também neste governo [após a entrevista, o Grupo de Estudos dos Novos
Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) divulgou um
levantamento mostrando que a operação de terça foi a mais letal já registrada
desde 1990 na região metropolitana do Rio, seguida por outras duas durante o
governo de Cláudio Castro, em 2021 e 2022].
Desde
2020, o Rio tem colecionado operações com um índice de letalidade surreal de
alto.
É muito
raro, [quando] você pega a crônica policial brasileira, operações policiais com
mais de 20 mortos. É uma coisa esdrúxula, que só existe no Rio de Janeiro.
• Essa "fagocitação" que você
disse, do Comando Vermelho com outras facções do Norte e Nordeste, é uma das
explicações para o alto número de mandados de prisão hoje contra pessoas de
outros Estados?
Rafael
Soares - Esse é um ponto interessante e fundamental para entender o atual
momento Comando Vermelho.
Esse
processo de crescimento nacional é completamente diferente do PCC, que tem uma
estrutura piramidal empresarial.
O
crescimento do PCC ocorreu dentro da própria estrutura empresarial do PCC, em
que outras sintonias [liderança, no jargão do PCC] foram entrando embaixo
daquele sistema que existia.
O
Comando Vermelho funciona de uma maneira diferente, é como se fossem franquias.
O Comando Vermelho é uma sociedade entre donos de morro.
São
vários donos de morro, que são sócios e todos eles estão no mesmo degrau.
Nenhum manda mais nem menos, é uma sociedade.
Foi
isso que permitiu que o Comando Vermelho crescesse nacionalmente. Essa
ideologia de facção que permitiu que outros chefes de outros Estados
inicialmente virassem parceiros comerciais em suas facções.
Por
exemplo, a Família do Norte, inicialmente no Amazonas, ainda era Família do
Norte e se diziam aliado do Comando Vermelho.
Hoje,
já é o Comando Vermelho.
Essa
situação aconteceu no país inteiro: num período de tempo muito curto, em cinco
ou seis anos, o Comando Vermelho passou de dez Estados da Federação para 25
Estados. Por isso que eu chamo de "fagocitação".
Inicialmente
eram parceiros, eram os grupos que tinham seus próprios nomes, suas próprias
ideologias.
Tem
essa questão também de rotas, de armas, de drogas. E aí entra outro ponto que é
fundamental, de como essa arquitetura do Rio de Janeiro, como o urbanismo do
Rio de Janeiro facilita que chefe do tráfico se esconda da polícia.
O Rio
virou um abrigo para chefe do tráfico do Brasil inteiro. Tem chefes do tráfico
do Pará que são donos de favelas aqui.
Por
exemplo, em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, quem manda lá é um chefe
do tráfico do Pará.
A gente
conseguiu fazer um levantamento de chefes do tráfico aqui no Rio, se não me
engano, são 15 Estados.
Isso é
um desafio também para as forças de segurança daqui, porque você tem esses
chefes do tráfico de outros Estados que também movimentam armas e drogas aqui,
não só lá. Importa um pouco da criminalidade local para cá.
• O secretário de Segurança Pública do Rio
fez questão de dizer que não contou com a ajuda do governo federal para essa
operação. Ao mesmo tempo, disse que não há como o Estado enfrentar o crime
organizado sozinho. O que isso significa nessa tentativa de combate? Existe uma
disputa de narrativa?
Rafael
Soares - A gente tem uma situação complicada aqui na segurança pública que é um
governo que até agora não deixou marca nenhuma.
Eu não
estou nem falando na segurança, apenas. E fora as grandes operações com muitas
mortes.
O
governo já está acabando. Já vão seis anos de governo Castro, e eu não consigo
dizer qual é o norte. O que o governo quer, afinal? O governo vai entregar o
quê? O que foi planejado?
Por
exemplo, no governo Cabral, que terminou com o governador preso, a gente tinha
uma política de segurança que, bem ou mal, tinha uma política de segurança até
definida, que era recuperação de território, as UPPs [Unidades de Polícia
Pacificadora]...
A
política de segurança do Cláudio Castro, é muito difusa. Não dá para entender o
que o Estado quer. Já foram criados programas — acho que no início, o governo
criou um programa chamado Cidade Integrada, que era uma nova "UPP
2.0". Ninguém sabe o que aconteceu com ele.
Depois,
se falou em recuperação de território, que não virou um programa de fato.
Fora
que é um governo que tenta fazer oposição ao governo federal. E hoje é
impossível você investigar o crime organizado aqui no Rio sem apoio do governo
federal.
Ao
longo dos últimos anos, isso vem melhorando. Por exemplo, a Polícia Federal tem
mais protagonismo nas investigações contra tráfico no Rio. A reboque do caso
Marielle [Franco, assassinada em março de 2018 no Rio], a Polícia Federal vem
tendo protagonismo nas ações.
Mas
essa integração entre forças federais e estaduais, isso é um problema. Isso
deveria ser um objetivo, inclusive do próprio governo do Estado, porque estamos
falando de uma facção nacional. A gente está falando de vários criminosos que
atuam em seus Estados. O problema é nacional, e a solução também tem que ser.
• Desavenças ideológicas podem emperrar
essa integração? Na semana passada, o presidente Lula disse que traficante era
vítima de usuário, mas depois se retratou, enquanto lideranças da direita
defendem a pena de morte para faccionados.
Rafael
Soares - Até tem uma questão ideológica. Mas eu acho que, dentro do que deveria
ser a rotina policial de investigação, tem técnicos trabalhando no Ministério
da Justiça, na Polícia Federal, nas polícias do Estado, setores de
inteligência, que deveriam trabalhar em conjunto e vários entes de diferentes
níveis, a Polícia Rodoviária, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal,
Abin, as polícias daqui do Rio e o setor penitenciário, tanto federal quanto
estadual.
Para se
compreender o problema da segurança pública do Rio, é preciso que todo mundo
sente na mesa, porque se faltar alguém, vai faltar alguma peça no
quebra-cabeça.
Eu até
acho que essas divergências existem, mas não existem só no Rio de Janeiro,
existem em São Paulo também — inclusive com um governador que é mais vocal do
que o Claudio Castro.
Claudio
Castro não é um cara que tem um governo ideológico, principalmente vocal, como,
por exemplo, o Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo pelo
Republicanos].
Mas
certamente é um governo de oposição ao governo federal e que, na hora da crise,
acaba jogando o problema no colo do outro.
Isso
não é algo atual [no Rio]. Mesmo quando a gente tinha os governos alinhados
[estaduais e federais], a gente não conseguiu ter um avanço real nessa questão
de integração das forças policiais.
Então,
é um problema no Rio, um problema histórico, mas um problema que precisa ser
resolvido com maturidade e técnica.
Hoje, o
secretário de Segurança do Rio tem um arranjo institucional meio maluco, porque
o Rio de Janeiro tem um secretário de Polícia Militar, um secretário de Polícia
Civil e o secretário de Segurança — que não tem nem o secretário de Polícia
Militar e nem o Secretário de Polícia Civil abaixo dele. Os dois estão do lado
dele.
É um
secretário de Segurança que não tem tropa.
• O ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski, enviou ao Congresso a PEC da Segurança Pública, para tentar,
dentre outros pontos, dar status constitucional ao Sistema Único de Segurança.
Mas a proposta ainda não foi aprovada. Acha que esse é um dos caminhos
possíveis?
Rafael
Soares – Aqui no Rio, a única medida tomada nos últimos anos para se governar
esse campo da segurança pública foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal, com a
ADPF 635, a "ADPF das favelas" [que criou regras para dar mais
transparência às operações e conter a letalidade policial]. Foi a única.
Foi o
Judiciário que obrigou o governo a ter uma política de segurança que fosse
focada na população, com metas, como fazer e o que fazer.
Isso
para mim já mostra o tamanho do problema.
Se a
medida de mais força de segurança pública foi tomada pelo Judiciário, que
obrigou o Executivo a fazer, a gente já vê o tamanho do problema.
Isso é
algo que está acima das polícias. A gente tem duas questões que caminham
juntas, a da disputa territorial e a da criminalidade urbana, dos crimes de
ruas.
São
fenômenos que andam separados, porque não é a mesma população vítima dos dois,
mas um influencia o outro. E você pode escolher combater mais um ou outro.
No ano
passado, a gente teve um aumento exponencial em crimes contra o patrimônio no
Rio. Ao mesmo tempo, as disputas territoriais não têm arrefecido.
A gente
não tem de fato um norte nessa forma de lidar com esse problema.
O
início desse problema está no governo. Se o governo estivesse controlando crime
de rua, colocando mais polícia no asfalto, eu estaria aqui falando: "Olha,
aqui o governo escolheu uma batalha".
Mas nem
isso.
Em
2024, houve um aumento surreal de quase 200% de roubo de rua, roubo a pedestre,
em Laranjeiras, que é o bairro da sede do governo.
É um
governo que de fato não deixa marca na segurança pública.
• Algumas lideranças da direita estão
usando o termo "narcoterrorista", até como uma pressão para Donald
Trump decretar o PCC como uma organização terrorista. Mudar para a categoria de
terrorista faz alguma diferença?
Rafael
Soares - Há algum tempo, as polícias do Rio perceberam já que entraram nessa
guerra comunicacional que a gente vive.
Aqui no
Rio isso não é bem novidade. As polícias do Rio sabem trabalhar bem esses
termos, como "narcocultura".
Se você
chamar de "traficante", parece que é menos do que
"narcotraficante".
Há dez
anos, começaram a chamar a "milícia" de "narcomilícia", que
é uma coisa que nunca ficou provada.
Essa
artimanha tem sido usada já há alguns anos pelas polícias do Rio. Isso não
começou de cima para baixo, começou de baixo para cima — com os próprios
policiais, os próprios delegados...
Eu
comecei a ver muito isso em relatório policial, em sentença. Juiz dando
sentença usando "narcoterroristas".
Eu acho
que colocar nomes, não muda a realidade. A verdade é que a realidade não mudou.
O
problema que a gente tem hoje no Rio de Janeiro foi amplificado nos últimos
anos. Mudou de ordem: a gente tinha um problema há 20 anos e hoje ele se
multiplicou. Mas ele só se multiplicou por conta da falência do Estado.
Essa
tentativa de governantes e policiais de encontrar termos, ela é muito para
jogar a culpa do crime no crime. Quando, para mim, é justamente o contrário.
O
Comando Vermelho surge dentro de um presídio controlado pelo Estado, na Ilha
Grande. O PCC virou o PCC nos presídios federais. Foram decisões executivas de
governos que acabaram transformando a situação no que a gente tem hoje.
A
origem do crime está em decisões do Estado, em problemas do Estado.
O fato
de existirem favelas e de o Complexo do Alemão ser hoje um bunker do Comando
Vermelho só aconteceu por causa de décadas e décadas que aquele lugar foi
ignorado pelo Estado. Não só pelas forças policiais, mas por tudo. O Estado
nunca chegou lá. Nunca se preocupou em levar cidadania para as pessoas de lá.
E agora
a gente fala que o problema são eles, os "narcoterroristas". Eu acho
que isso é só uma maneira de tentar jogar a culpa para os outros.
A gente
vai começar a mudar um pouco e avançar nessa questão de combate ao crime
organizado — uma maneira que eles adoram falar, "o combate ao crime
organizado" — quando o Estado começar a entender a responsabilidade dele
nesse processo, a partir do momento que você entender que as decisões que são
tomadas pelo próprio Estado têm consequências que podem ser favoráveis ao
crime.
A gente
teve agora um governo que liberou fuzil para civil [um decreto durante a
presidência de Jair Bolsonaro, de 2019, inicialmente previu que civis pudessem
adquirir o fuzil T4, calibre 556, de fabricação nacional, mas depois o governo
recuou, embora outros tipos de armas tenham tido o acesso ampliado para a
população].
E a
gente está agora dizendo: "Nossa, agora tem muito fuzil no mercado... Que
coisa, barateou, tem muita peça de fuzil no mercado ilegal". Nossa, que
surpresa, né? Isso como se fossem os narcoterroristas que compraram, né?
Mas
quem deixou?
Enquanto
a segurança pública for tratada como uma guerra dos bonzinhos contra os
mauzinhos, a gente não vai conseguir resolver o problema. O problema é muito
mais complexo que isso.
Fonte:
BBC News Brasil

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