Diplomados
e precarizados: da universidade para as plataformas digitais?
A
ascensão social pela conquista do diploma universitário está presente não
apenas no imaginário social, mas foi adotada como estratégia de sobrevivência
de milhões de brasileiros que conciliam o trabalho e o estudo como uma forma
de, após alguns anos, conquistar um emprego que lhes dê melhores condições de
reprodução social. É comum observarmos a trajetória de jovens que trabalham em
call centers ou no comércio durante o dia para, no período da noite,
frequentarem o Ensino Superior.
A parte
da história que nem sempre é contada é que a maioria desses jovens, após
concluírem a faculdade, não encontrarão empregos disponíveis na sua área de
formação. Ou então, pelo avanço das plataformas digitais no mundo do trabalho,
encontrarão sua profissão em um crescente processo de uberização, considerando
que a plataformização está atingindo inclusive ocupações como psicólogos,
advogados, professores, jornalistas, entre outros.
Alguns
dados nos ajudam a compreender melhor o problema. Aproximadamente 2 em cada 10
formados no Ensino Superior conseguem encontrar uma vaga de trabalho
equivalente à sua qualificação. Mais especificamente, 78% dos egressos do
Ensino Superior estão em vagas que não exigem diploma universitário. Ao mesmo
tempo, a maioria desses trabalhadores são egressos de faculdades privadas
pertencentes a conglomerados que formam um monopólio no setor educacional.
Basta lembrarmos que cinco instituições particulares possuem mais alunos do que
todas as 312 universidades públicas no país. Dos 9,4 milhões de matriculados no
Ensino Superior do Brasil em 2022, apenas 2,07 milhões estão em instituições
públicas. Assim, embora tenha ocorrido uma expansão das universidades públicas
nos governos do PT, a ampliação do Ensino Superior no país ocorreu,
majoritariamente, pelo aumento de vagas no setor privado, subsidiadas por
políticas como Prouni e Fies.
Como
sabemos, a qualidade dos empregos criados em um país está diretamente
relacionada ao modelo de desenvolvimento econômico construído nessa sociedade.
No Brasil, além da nossa função de exportador de comodities na divisão
internacional do trabalho, também passamos nas últimas décadas por um processo
de desindustrialização, fato que ajudou na expansão do que Ricardo Antunes
denominou em O privilégio da servidão como o novo proletariado de serviços. Com
um modelo de desenvolvimento voltado à exportação de soja e minerais em estado
bruto, a geração de empregos ocorre massivamente no setor de serviços, em
trabalhos que pagam até 1,5 salários mínimos.
O
avanço da uberização impacta, no mínimo, de duas formas esse cenário. Muitos
egressos do Ensino Superior, ao não encontrarem vagas em sua área de formação,
escolhem a Uber como ocupação. Essa informação já é bem conhecida e
disseminada. O segundo impacto, entretanto, é menos discutido no debate
público. Muitos diplomados encontram nas plataformas digitais a única forma de
inserção profissional na sua área de formação. Para exemplificar a questão,
milhares de advogados(as) e psicólogos(as) recém-formados só conseguem atuar em
sua área se forem para as plataformas digitais de serviços jurídicos ou
psicológicos.
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Plataformas digitais como síntese das políticas neoliberais
Diversas
pesquisas já demonstraram que a uberização está alcançando diferentes ocupações
no mercado de trabalho. Isso não significa que essas profissões eram estáveis e
bem remuneradas e, com as plataformas digitais, tornam-se precárias. Pelo
contrário, atividades como advocacia e psicologia já passavam por uma
progressiva precarização nas últimas décadas. Chico de Oliveira apontava, já no
início dos anos 2000, o processo de assalariamento das profissões liberais6.
Essas alterações, observadas de uma perspectiva mais ampla, são resultado do
advento de um regime de acumulação flexível. Na advocacia, por exemplo, vimos o
surgimento dos escritórios de contencioso em massa, marcada por um grande
volume de processos jurídicos, com casos simplificados e repetitivos, impondo
que advogados e advogadas gastem menos tempo em cada processo e trabalhem em um
modelo similar a uma linha de produção fordista.
A
pejotização e outras formas flexíveis de contratação, legalizadas pela reforma
trabalhista de 2017, também intensificaram a precarização de psicólogos,
professores e advogados. É comum vermos professores universitários contratados
como pessoa jurídica em instituições privadas. Em alguns casos, mulheres
contratadas como PJ, ao ficarem grávidas, são despedidas algumas semanas antes
do parto e, após algum tempo, são recontratadas, sem acesso à licença
maternidade ou qualquer outro direito.
Assim,
a plataformização representa uma síntese de décadas de políticas neoliberais de
flexibilização que estavam em curso no Brasil. Em outras palavras, as
plataformas digitais atualizam esse fenômeno e aparecem como uma face moderna
da precariedade, impondo novas lógicas laborais, como o trabalho sob demanda,
leilão negativo, controle algorítmico e a extração de valor pela coleta de
dados dos trabalhadores.
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A plataformização do trabalho alcançou a alta classe média?
Dizer
que essas profissões foram precarizadas não significa afirmar que a classe
média alta foi atingida. Na pesquisa que desenvolvemos, baseada em entrevistas
e aplicação de questionários com psicólogos(as) e advogados(as), os resultados
apontam para outra direção. Ao analisarmos as trajetórias profissionais e
educacionais desses indivíduos, vemos que se trata, em sua maioria, de jovens
com origem na classe trabalhadora, que tiveram que conciliar trabalho e estudo.
Eles também foram os primeiros da família a acessar o Ensino Superior e são
egressos de faculdades particulares com baixa inserção no mercado de
trabalho. Além disso, quase metade dos
trabalhadores afirmou que recebe, como advogado ou psicólogo, rendimentos
similares ao que recebia antes de se graduar.
Uma das
estratégias centrais de reprodução social das classes médias é que os pais
podem comprar o tempo livre dos filhos para que eles se dediquem exclusivamente
aos estudos e entrem tardiamente no mercado de trabalho. Assim, conciliar
trabalho e estudo durante a graduação não faz parte da realidade da alta classe
média. Os trabalhadores analisados em nossa pesquisa não estudam durante longos
anos para, posteriormente, entrarem no mercado de trabalho. Em vez disso, eles
entram no mercado de trabalho precocemente para, a partir desses rendimentos,
acessarem o Ensino Superior privado. Em síntese, não se trata de estudantes
trabalhadores, mas de trabalhadores estudantes.
Em um
país como o Brasil, em que quase metade da população economicamente ativa
mantêm-se na informalidade e às margens da proteção social, a precarização não
é uma novidade e a “viração” é parte do cotidiano de boa parte dos indivíduos.
Entretanto, talvez haja alguma novidade no fato de que trabalhadores que buscam
o ensino superior como estratégia de ascensão social, ao concluírem a
graduação, encontram trabalhos tão precários quanto o que estavam antes de se
formarem. Em termos de impactos sociais e políticos, podemos imaginar a
frustração de trabalhadores que passam cinco anos conciliando estudo e
trabalho, muitas vezes endividando-se para pagar a faculdade e, ao fim do
percurso formativo, continuam imersos em trabalhos precários.
Ao mesmo tempo, as aspirações sociais de hoje
não são as mesmas do início dos anos 2000. Com as redes sociais cumprindo um
papel decisivo como aparelho privado de hegemonia, a ideia de que todo mundo
pode ganhar seu primeiro milhão é cada vez mais disseminada na sociedade. Basta
olhar para o crescimento das bets e do “tigrinho” nos últimos anos. De um lado,
todo mundo pode ser um milionário, de outro, empregos em jornada 6×1 que pagam
menos que dois salários mínimos. Esse contexto cria um terreno fértil para o
avanço da extrema direita, pois o discurso antissistema que adotam encontra
eco, justamente, nas condições de reprodução social precárias suportadas,
diariamente, por milhões de brasileiros e brasileiras.
Fonte:
Por Matheus Silveira de Souza, no Blog da Boitempo

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