Cargill
comprou soja de produtor multado por cultivo em área embargada na Bahia
MAIOR
EXPORTADORA de grãos do país, a Cargill mantém contratos de fornecimento de
soja com um produtor que teve área embargada por operar sem licença ambiental
em São Desidério (BA) e, após o embargo, foi multado por cultivar no local.
Ambas as autuações foram registradas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na Fazenda Arara Azul, explorada
pelo fazendeiro Belmiro Catelan.
O
fazendeiro, que é apontado como um dos maiores produtores de soja e algodão da
Bahia, foi multado em R$ 1,5 milhões em janeiro de 2023 por, segundo o Ibama,
manter atividades na propriedade sem licença dos órgãos ambientais competentes.
Na ocasião, foram embargados 419 hectares da fazenda.
Em
dezembro do mesmo ano, o fazendeiro foi autuado novamente, com multa de R$ 1,3
milhão. Dessa vez, por descumprir o embargo e impedir a regeneração natural da
vegetação em uma área de 207 hectares. Análise de imagens de satélite feitas
pela organização holandesa AidEnvironment, a pedido da Repórter Brasil, apontam
o plantio de soja em áreas da Fazenda Arara Azul em 2023 e 2024. O fazendeiro,
no entanto, alega que não procedeu com o plantio de soja em qualquer área
embargada nestas safras.
Catelan
ingressou com uma ação na Justiça em outubro deste ano pedindo o desembargo da
área. Segundo a defesa do produtor, em março de 2023, portanto dois meses após
o embargo, Catelan obteve uma licença ambiental junto ao Inema (Instituto do
Meio Ambiente e Recursos Hídricos) da Bahia para regularizar as atividades na
Fazenda Arara Azul. A Justiça acatou o pedido do fazendeiro e determinou a
suspensão do embargo.
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Emissão de títulos financeiros durante vigência do embargo
No
entanto, enquanto o embargo estava vigente e disponível na lista pública de
embargos do Ibama, o produtor obteve crédito privado no mercado de capitais por
meio da emissão de um CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio), uma
categoria de títulos de renda fixa voltados ao financiamento de atividades
agrícolas.
O CRA
foi emitido em junho de 2023 pela empresa Ecoagro, responsável por
“transformar” os créditos que Belmiro Catelan teria a receber em títulos
comercializáveis. Nessa emissão, estavam disponíveis a investidores R$ 178
milhões em títulos.
De
acordo com documentos dessa negociação, o valor que o produtor teria a receber
em contratos de venda de soja para a Cargill, contemplando safras de 2023 a
2029, foram uma das garantias dadas no CRA, em caso de inadimplência do
pagamento aos investidores.
A
Fazenda Arara Azul fica ao lado de outras áreas registradas por Catelan em São
Desidério, como a Fazenda Guarani, de acordo com registros de CARs (Cadastro
Ambiental Rural) acessados pela Repórter Brasil. Questionada, a Cargill
confirmou que possui relação comercial com Belmiro Catelan, mas não com as
fazendas Arara Azul e Guarani.
A
companhia afirmou ter “controles para garantir que o volume não virá de áreas
restritivas” e que possui um “robusto sistema de verificação de nossos
fornecedores”, que inclui a checagem em bancos de dados públicos e mantidos
pela própria empresa para “garantir que nossa cadeia de suprimentos está
alinhada com nossos compromissos expressos na nossa Política de Soja
Sustentável”.
Em nota
enviada por seus advogados, Catelan ressaltou que não é proprietário da Fazenda
Arara Azul, mas “arrendatário de parte da propriedade” e que “não procedeu com
o plantio de soja em qualquer área embargada nas safras de 2023 e 2024,
tampouco em qualquer outra safra ou propriedade”. Também disse que os contratos
com a Cargill estão vinculados “exclusivamente às propriedades produtivas e
desembaraçadas, inexistindo qualquer óbice na apontada relação comercial”.
Em
relação aos contratos que lastreiam e integram o CRA de Belmiro Catelan, a nota
ressalta que “se tratam de informações públicas, inexistindo qualquer nuance
jurídica ou comercial”. A nota do produtor pode ser lida, na íntegra, aqui.
“Precisamos
pensar até que ponto a atividade ilegal de um produtor acaba promovendo a
atividade que ele desempenha dentro da legalidade. Não é só o grão em si.
Porque você não consegue colocar um chip na soja. Mas, em alguns casos, a
ilegalidade faz parte do modelo de negócios daquele produtor”, analisa Joana
Faggin, coordenadora da equipe de Cadeia de Suprimentos Livre de Desmatamento
na organização AidEnvironment.
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CRA requer cumprimento da legislação ambiental
O CRA
de Belmiro Catelan foi emitido pela Ecoagro, enquanto a empresa Oliveira Trust
figura como agente fiduciário, responsável por representar os interesses
dos investidores na operação, garantido
o cumprimento das regras acordadas no negócio.
No
termo de securitização, documento que detalha a operação, constam como
critérios para o vencimento antecipado do título a “inobservância da legislação
socioambiental vigente” e destinar os recursos captados na emissão da CPR
Financeira (Cédula de Produtor Rural) – título de crédito que serviu de lastro
para a emissão do CRA – para atividades sem licença ambiental válida e vigente.
Questionada,
a Ecoagro informou que “as autuações ambientais de Belmiro Catelan foram
analisadas no processo de emissão, consideradas regularizadas à época e não
configuram hipótese de vencimento antecipado, nesta data” e que a área
embargada “não integra o lastro nem as garantias vinculadas à operação”.
A
Oliveira Trust informou que “a operação encontra-se adimplente, sem qualquer
prejuízo constatado aos investidores do ativo” e que “o relacionamento
operacional e comercial com o devedor se dá com a securitizadora”.
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Contaminação de nascentes
Além da
autuação por operar sem licença ambiental, Catelan foi multado, também em
janeiro de 2023, por danificar 1,4 hectares em área de preservação permanente
nas bordas da Serra Geral, relevo típico do cerrado baiano, e em área ao redor
de nascentes e curso d’água. O dano, segundo o Ibama, foi causado pelo
assoreamento oriundo de atividades agrícolas na Fazenda Arara Azul.
Na
mesma ocasião, o Ibama multou o produtor por “lançar resíduos sólidos, líquidos
e detritos” nas margens das encostas, danificando a vegetação das nascentes.
A Serra
Geral, região de encostas, abriga um complexo de nascentes e córregos que
abastecem importantes rios da Bahia, como o Rio Grande. “Hoje, nos platôs, as
partes planas em cima dessas encostas, temos muito cultivo de grãos. Tudo o que
acontece em cima do platô, cai, vem para baixo”, explica Joana Faggin. “A
maioria dos recursos hídricos das comunidades que habitam essas regiões começam
a ser contaminados com todo tipo de produto usado na monocultura, desde
fertilizante até agroquímico”, complementa.
Em seu
site, a Cargill afirma que tem como propósito “nutrir o mundo de maneira
segura, responsável e sustentável”. A Política de Soja Sustentável traz
compromissos ambientais como “promover a conservação e restauração de florestas
por meio de áreas de conservação designadas, zonas ripárias e outros meios de
conservação da vegetação” e “promover o
uso responsável de insumos agrícolas, como fertilizantes, pesticidas e
herbicidas”.
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Trabalho escravo e mortes na fazenda
Além
das infrações ambientais, Catelan foi investigado pelo MPT da Bahia após a
morte de três funcionários na Fazenda Guarani, uma das propriedades do
fazendeiro vizinhas à Fazenda Arara Azul, entre junho de 2023 e maio de 2025.
O
primeiro caso ocorreu em junho de 2023, quando, segundo o MPT, um trabalhador
morreu esmagado por uma empilhadeira no seu primeiro dia de serviço como
operador do maquinário. Após a ocorrência, o órgão obteve uma liminar na
Justiça para obrigar o fazendeiro a cumprir normas de saúde e segurança do
trabalho. À época, Catelan firmou um acordo judicial e se comprometeu a pagar
R$ 500 mil a título de danos morais coletivos.
Em maio
de 2024, outro funcionário faleceu em trabalho. Segundo o MPT, relatos de
socorristas apontam que a morte tenha sido em decorrência de um choque
elétrico. Na ocasião, a procuradora Camilla Mello, do MPT da Bahia, ressaltou
no inquérito que o segundo acidente em poucos meses “revela de forma
incontroversa que há um meio ambiente do trabalho inseguro e que o denunciado
precisa ajustar sua conduta à legislação”. O funcionário era contratado por uma
empresa terceirizada.
Em maio
de 2025, outro trabalhador contratado por uma terceirizada morreu na Fazenda
Guarani, atropelado por uma retroescavadeira, segundo informações repassadas
pelo MPT da Bahia à Repórter Brasil.
O órgão
esclareceu que, além do acordo judicial, Catelan firmou dois TACs (Termos de
Ajustamento de Conduta) após as mortes de 2024 e 2025.
Em nota
enviada por seus advogados, Belmiro Catelan disse que “inexistem processos ou
procedimentos em aberto, tendo sido pactuados Termos de Ajuste de Conduta com
os órgãos responsáveis”. A nota do produtor pode ser lida, na íntegra, aqui.
A
Fazenda Guarani também já foi palco de flagrante de trabalho escravo. Em 2008,
fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) resgataram no local 27
trabalhadores em situação análoga à escravidão. Em 2010, na mesma propriedade,
o órgão resgatou outros 44 trabalhadores. Eles trabalhavam sem registros,
viviam em alojamentos sem estrutura e tinham descontos ilegais em seus
salários, segundo o relatório da fiscalização, acessado pela reportagem.
A
Cargill divulga entre as políticas aos seus fornecedores que eles “priorizem a
segurança, o bem-estar, os direitos humanos e a dignidade de todos os
indivíduos”, “tratem todos os trabalhadores com dignidade e respeito e ofereça
um ambiente de trabalho emocional e psicologicamente seguro e inclusivo” e atue
para “eliminar qualquer forma de trabalho forçado”. Condutas que são reiteradas
na Política da Soja Sustentável divulgada pela empresa.
A
multinacional não comentou as questões trabalhistas envolvendo Catelan.
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Posicionamentos enviados
Respostas
enviadas pela Cargill, fazendeiro Belmiro Catelan, Ecoagro e Oliveira Trust
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Cargill - Enviada em 16/10/2025
A
Cargill informa que possui relação comercial com produtor mencionado, mas não
com as áreas mencionadas, e temos controles para garantir que o volume não virá
de áreas restritivas. A companhia possui um robusto sistema de verificação de
nossos fornecedores, que inclui a checagem em nosso banco de dados e em listas
públicas de restrições, para garantir que nossa cadeia de suprimentos está
alinhada com nossos compromissos expressos na nossa Política de Soja
Sustentável. Importante ressaltar que
Cargill leva muito à sério nosso procedimento de denúncias, investigamos
todas as alegações recebidas e se encontrarmos alguma violação de nossas
políticas e compromissos, o produtor será imediatamente bloqueado de nossa
cadeia de suprimentos, conforme expresso em nosso Código de Conduta do
Fornecedor.
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Belmiro Catelan
Em
consideração aos questionamentos encaminhados pelo Repórter Brasil, seguem as
pontuações e esclarecimentos desse escritório, fundadas nas declarações que nos
foram encaminhadas pelo Grupo Catelan:
1.
Inicialmente, gostaríamos de registrar que o Sr. Belmiro Catelan é pessoa íntegra, produtor rural há décadas e não
possui contra si nenhuma condenação que
desabone a sua conduta, muito embora tenha, como qualquer empresário no Brasil, enfrentado
processos judiciais e administrativos,
nos quais apresentou robusta defesa, devendo prevalecer o princípio da presunção de inocência.
2.
Sobre a relação do Grupo Catelan com a Cargill, cumpre esclarecer que se tratam de contratos particulares, sem vícios
formais ou materiais, vinculados
exclusivamente às propriedades produtivas e
desembaraçadas, inexistindo qualquer óbice na apontada relação comercial.
3. No
que tange aos contratos que lastreiam e integram a “CRA02300ASX”, se tratam de
informações públicas, inexistindo qualquer nuance jurídica ou comercial em relação à mencionada carteira
de fundos de investimento no mercado.
4.
Importante esclarecer que a Faz. Arara Azul não é de propriedade do Sr. Belmiro Catelan, embora o mesmo seja
arrendatário de parte da propriedade. De
qualquer modo, como dito no recorte da reportagem (parte que nos foi enviada) o referido
embargo foi suspenso por ordem judicial,
determinação esta que merece ser respeitada por se tratar de decisão acertada e legítima.
5.
Cumpre ainda esclarecer que Belmiro Catelan não procedeu com o plantio de soja em qualquer área embargada nas safras
de 2023 e 2024, tampouco em qualquer
outra safra ou propriedade, sendo, no mínimo, equivocada a referida informação.
6.
Sobre a autuação do IBAMA, referente ao armazenamento de fertilizantes/agrotóxicos, insta salientar
que foi apresentada devida manifestação
à época, diante da exacerbação da multa aplicada pelo órgão. Além disso, é inconcebível presumir
que houve culpa/dolo pessoal do produtor
nesse caso, cujo nome consta nos autos apenas pela praxe do órgão em endereçar os autos de
infração aos proprietários da área.
7.
Sobre as demais circunstâncias apontadas nos trechos da matéria que nos foram enviados (autuação em outra seara e
investigação do MPT), saliente-se que
inexistem processos ou procedimentos em aberto, tendo sido pactuados Termos de Ajuste de Conduta
com os órgãos responsáveis.
8. Por
fim, registre-se que todos os esclarecimentos ora prestados estão lastreados em fatos e provas cujo acesso é
público, permitindo a apuração da equipe
jornalística.
9. Dito
isto, requer sejam levadas em consideração as pontuações e esclarecimentos ora apresentados, requerendo,
por consequência, seja retificada a
matéria jornalística no que for pertinente, fazendo constar a manifestação do produtor citado, sob pena de
adoção das medidas judiciais cabíveis,
incluindo a reparação por eventuais danos materiais e morais eventualmente causados em face da
publicação de conteúdo inverídico,
difamatório e/ou calunioso.
Salvador/BA,
24 de outubro de 2025.
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Ecoagro - Enviada em 16/10/2025
“A Eco
Securitizadora informa que realizou a devida diligência na emissão da
CRA02300ASX conforme as práticas de mercado e parâmetros aplicáveis a uma
securitizadora. Esclarece que a área embargada da Fazenda Arara Azul não
integra o lastro nem as garantias vinculadas à operação. As autuações
ambientais de Belmiro Catelan foram analisadas no processo de emissão,
consideradas regularizadas à época e não configuram hipótese de vencimento
antecipado, nesta data. Em relação às questões trabalhistas, destaca que não há
decisão judicial definitiva e que foi firmado acordo com o Ministério Público
do Trabalho. A Eco reforça seu compromisso com a observância da legislação
socioambiental e com a condução diligente de suas emissões”
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Oliveira Trust - Enviada em 16/10/2025
Como
agente fiduciário da operação CRA02300ASX, a Oliveira Trust exerce, de forma
técnica e independente, todas as atribuições previstas no instrumento de
emissão e na legislação aplicável. Nosso dever é proteger os interesses dos
investidores, monitorando o cumprimento das obrigações contratuais, a
regularidade dos pagamentos e a integridade do título e das garantias a ele
vinculadas.
No caso
da CRA02300ASX, a operação encontra-se adimplente, sem qualquer prejuízo
constatado aos investidores do ativo. O relacionamento operacional e comercial
com o devedor se dá com a securitizadora (emissora do CRA), responsável pela
estruturação da emissão, sendo certo que as garantias da operação estão
formalmente constituídas e mantidas em nome da securitizadora, conforme
previsto na Lei.
Informamos
que, no exercício regular de nossas funções, aplicamos a totalidade das
diligências cabíveis: conciliação e verificação de recebíveis, conferência em
relação aos pagamentos, checagem documental, solicitação de esclarecimentos e
auditorias independentes quando necessário, e acionamento dos mecanismos
contratuais de proteção (incluindo procedimentos de cobrança e medidas
previstas para evento de inadimplemento). Essas atividades são realizadas por
meio de sistemas de monitoramento e controle, processos de auditoria técnica e
análises jurídicas especializadas.
Reiteramos
que atuamos com rigor técnico e independência, utilizando todas as ferramentas
contratuais e legais ao nosso alcance para proteger o patrimônio e os direitos
dos investidores, e que continuaremos a fazê-lo enquanto agente fiduciário da
operação.
Fonte:
Reporter Brasil

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