Jordana
Timerman: Vitória de Milei deixou marcas de Trump por toda parte. Mas quanto
tempo durará a amizade deles?
Em
1946, a Argentina emergia do regime militar, um movimento trabalhista
fortalecido remodelava a política e o Coronel Juan Perón, um líder de esquerda
que havia apresentado uma série de decretos populares sobre direitos dos
trabalhadores, subia rapidamente nas pesquisas. O então embaixador dos EUA,
Spruille Braden, tinha outras ideias sobre quem deveria vencer a eleição
nacional naquele ano e fez campanha abertamente contra Perón em Buenos Aires. A
ação de Braden se destaca como um dos exemplos mais descarados de interferência
dos EUA na política argentina. Até agora ...
O
presidente argentino, Javier Milei, que obteve uma vitória retumbante nas
eleições de meio de mandato no domingo, recebeu amplo apoio de Donald Trump.
Antes das eleições para o Congresso, Trump apoiou Milei e alertou: "Se ele
perder, não seremos generosos com a Argentina". Washington concedeu ao
governo uma linha de swap cambial de US$ 20
bilhões –
dinheiro destinado a estabilizar a volatilidade financeira que teria minado as
chances de Milei. O Tesouro dos EUA chegou a intervir diretamente, comprando
mais de um bilhão de dólares em pesos para
conter a queda livre da moeda nas últimas semanas.
O
resgate da Argentina por Trump não é um ato de prudência econômica (economistas
de todo o espectro dizem que não faz sentido ), mas de
financiamento ideológico. O objetivo é fortalecer um aliado no quintal dos EUA
e desacreditar os oponentes, especialmente a tendência peronista de esquerda na
política argentina, que Trump equipara aos seus próprios oponentes
domésticos .
Historicamente, Washington disfarçou esse tipo de intervenção ideológica como
se servisse ao bem maior, definido em termos dos interesses dos EUA. Mas Trump
dispensou até mesmo essa pretensão. Para ele, a política externa não é
estratégica: é ancorada por lealdades pessoais.
O
governo dos EUA puniu líderes latino-americanos que ousaram resistir a Trump. O
governo brasileiro resistiu a sanções punitivas contra
autoridades em retaliação por processar o ex-presidente Jair Bolsonaro, um
aliado de Trump que tentou um golpe. O presidente colombiano, Gustavo Petro,
foi pessoalmente sancionado pelo
departamento do Tesouro de Scott Bessent . A Venezuela enfrenta ataques letais
dos EUA contra embarcações em sua costa. A mensagem disciplinar para a região é
clara: Washington usará seu poder financeiro e militar para recompensar a
obediência e punir a dissidência.
Para a
Argentina, esse tipo de interferência tem uma longa história. A cruzada de
Braden contra Juan Perón também foi motivada por paranoia ideológica. No
entanto, a abordagem fracassou. Os apoiadores de Perón se uniram sob o lema
"Braden o Perón", retratando a luta como uma escolha clara entre a
interferência estrangeira e a soberania nacional. Perón venceu, e seu legado
político define a política argentina desde então.
Mais tarde, ele gracejou que, se Braden não tivesse existido, "teríamos
que inventá-lo".
Os
eleitores de Perón, 80 anos atrás, não foram motivados apenas pelo simbolismo
da interferência americana. Eles votaram para rejeitar um status quo político
que era surdo às suas necessidades. Da mesma forma, para um eleitorado exausto
por anos de crises econômicas e sociais, a campanha de Milei e Trump teve
sucesso ao concentrar as energias dos eleitores nas falhas do antigo
establishment político.
Ainda
assim, os eleitores de Milei tinham inúmeras motivações. "Uma parcela
significativa dos votos de Milei, eu diria que pouco mais da metade do que ele
obteve, é de um eleitorado que ainda está esperançoso e confiante quanto ao
futuro", diz Shila Vilker, diretora da empresa argentina de pesquisas
Trespuntozero. Outra parcela significativa estava preocupada com a
possibilidade de a ajuda financeira dos EUA depender dos resultados das
eleições. Alguns tinham medo do desconhecido, outros queriam rejeitar o peronismo.
Após
vencer a eleição, o desafio de Milei agora será administrar a política
monetária. O governo vinha queimando reservas para manter o valor do peso. A
ajuda dos EUA foi explicitamente uma medida paliativa . Um
influxo temporário de dólares não salvará um programa que está falhando com seu
próprio eleitorado – e, a longo prazo, é improvável que os eleitores argentinos
sejam influenciados pelo clientelismo estrangeiro.
As
tentativas de Trump de instrumentalizar a política externa na região
frequentemente fracassaram. No Brasil, seu ataque às instituições democráticas
ajudou a fortalecer a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva. No Panamá, a
deferência do governo às demandas americanas sobre o acesso da China ao canal gerou revolta
interna. Por enquanto, Milei contrariou essa tendência. Ele garantiu uma
minoria no Congresso que protege sua agenda de austeridade de vetos
legislativos. Sua vitória simbólica também foi enorme: ele venceu por apenas um
ponto na província de Buenos Aires, um bastião do peronismo .
O fato
de o experimento libertário de Milei já precisar ser resgatado ressalta seu
fracasso. A inflação diminuiu, mas a austeridade sufocou o crescimento e cortou os subsídios para
transporte, energia, saúde e educação, dificultando a sobrevivência dos pobres
do país até o fim do mês. Os salários estão 6% menores em termos reais
do que antes de Milei assumir o cargo, e um Big Mac custa mais na Argentina do
que em Nova York. A confiança no governo despencou, e a crença em um
"futuro melhor" caiu de 48% para 34% em 2025 .
A
política externa de Trump é ideológica, mas também marcadamente volátil. No
domingo, ele se encontrou com seu inimigo ideológico, Lula da Silva, que,
apesar das tarifas e sanções americanas, se recusou veementemente a ceder na
acusação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Após meses de atrito, Lula e
Trump estariam agora trabalhando para chegar a um acordo comercial. Apesar de
toda a arrogância de Trump sobre amizade, suas intervenções expõem uma verdade
que a América Latina há muito compreendeu: as prioridades de Washington
raramente se alinham com as necessidades daqueles que convivem com suas
consequências.
¨
A Argentina segue em transe. Por Glauco Faria
No meio
da tarde desta segunda-feira (27), com 99,3% das urnas apuradas, a Argentina já
tinha praticamente consolidado o cenário de triunfo para o La Libertad Avanza
(LLA), partido do presidente argentino Javier Milei, nas eleições legislativas
de meio de mandato. A legenda obteve 40,7% dos votos totais para a Câmara dos
Deputados, superando o Fuerza Patria, que obteve 34,9%. Na disputa pelo Senado,
a vantagem foi de 42% a 36,9%.
Mesmo
na Província de Buenos Aires, a maior do país e onde os peronistas haviam
vencido as eleições legislativas provinciais por 14 pontos de diferença em
relação aos governistas, o jogo se inverteu, ainda que a disputa ficasse
parelha. A lista do LLA, liderada por Diego César Santilli, assegurou 17
cadeiras contra 16 do rol do Fuerza Patria, que tinha Jorge Enrique Taiana na
cabeça. A coligação Províncias Unidas (PU), coalizão composta pelos
governadores provinciais de Córdoba, Santa Fé, Corrientes, Jujuy, Chubut e
Santa Cruz fracassou como “terceira via”, conquistando 7,4% dos votos para a
Câmara e 2,1% para o Senado, enquanto a Frente de Izquierda teve,
respectivamente 3,9% e 3,3%.
Com a
renovação de metade das cadeiras de deputados e um terço das vagas de
senadores, a aliança LLA e Proposta Republicana (PRO) conseguiu superar a marca
de um terço da Câmara, com 107 dos 257 deputados, marca que garante que os
vetos de Javier Milei não sejam derrubados na Casa, mas longe ainda de
assegurar uma maioria que possa aprofundar as reformas do autodenominado
libertário, até porque o Fuerza Patria segue com 98 parlamentares. No Senado,
os aliados do presidente argentino têm exatamente um terço, 24 dos 72, mesmo
número dos peronistas.
É um
triunfo do governo Milei, levando-se em conta a série de reveses que a
administração federal acumulou desde o início do mandato, em dezembro de 2023.
Se a inflação foi reduzida, o corte de gastos imposto pelo governo afetou
programas sociais, aposentadorias e manteve a economia estagnada, com o
desemprego chegando a 7,6% em setembro, acima dos 5,7% de quando Milei assumiu.
Além disso, escândalos políticos como o envolvimento do libertário em um
episódio mal explicado (e mal investigado) de possíveis fraudes com a promoção
de uma criptomoeda conhecida como $Libra – e as revelações sobre sua irmã e
secretária da presidência, Karina Milei, apontada como suposta beneficiária
direta de um esquema de corrupção envolvendo a devolução de verbas por meio da
Agência Nacional para a Deficiência (Andis) – não foram suficientes para a
vitória da oposição. Há muitos fatores que podem ajudar a explicar o que houve
neste domingo, na Argentina.
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A economia e a ajuda dos EUA
O
fracasso das tentativas de “terceira via”, com o PU ou os Provinciales, conta
um pouco da história da política local e sua polarização. Milei fez questão,
durante a campanha, de ressaltar esse antagonismo buscando infundir no
eleitorado o medo de um possível retorno do kirchnerismo, explorando uma
rejeição que o movimento peronista em geral tem em boa parte da sociedade do
país.
Nesse
aspecto, talvez a própria vitória, por larga margem, dos peronistas nas
eleições provinciais de Buenos Aires em setembro tenha ajudado a mobilizar esse
sentimento contra os peronistas. “Como há 80 anos, o anti-peronismo continua
sendo a identidade política mais intensa da Argentina, e a sequência eleitoral
deste ano parece tê-lo ativado. Com efeito, devido ao seu peso eleitoral e ao
resultado inesperado, as eleições na província de Buenos Aires no dia 7 de
setembro funcionaram como um primeiro turno que despertou o povo anti-peronista
adormecido”, avalia o jornalista e cientista político José Natanson, em artigo publicado
no Le Monde Diplomatique Cone Sur.
Natanson
aponta ainda para uma variante do que seria um “voto econômico”, com nuances
locais. “Uma das teorias mais recorrentes da ciência política é a que propõe
que o comportamento eleitoral é guiado sobretudo pela percepção econômica,
particularmente nos meses anteriores às eleições. Neste caso, porém, tanto as
pesquisas de satisfação individual quanto os dados concretos de consumo vinham
registrando uma queda (desde março) e um colapso (nos últimos dois meses)”,
pontua. “Por um lado, evidentemente a estabilidade econômica, a baixa da
inflação e o dólar barato (três coisas que são uma coisa só) continuam tendo
uma enorme importância para a vida cotidiana das pessoas. Por outro lado,
parece que entre os eleitores libertários prevaleceu a vontade de dar mais tempo
ao governo, uma paciência inesperada na era da ansiedade e das redes sociais.
As pesquisas qualitativas entre os eleitores de Milei captavam a ideia de que
ele ainda merecia uma oportunidade. O governo, que as conhecia, acertou em seu
slogan de não jogar o esforço pela janela.”
O
professor sênior do Departamento de Política, Línguas e Estudos Internacionais
da Universidade de Bath, na Grã-Bretanha, Juan Pablo Ferrero, detalha como esse
impacto econômico pode ter ressoado em parte da população. “A instabilidade de
longa data da moeda argentina, o peso, somada à frequente alta inflação, criou
um sistema dual em que o peso é usado para transações diárias, mas o dólar é
preferido para economias e compras maiores, como imóveis”, explica, em artigo
no The Conversation. “E o governo Milei
fez grandes esforços para controlar a taxa de câmbio, criando assim uma
sensação temporária, porém palpável, de estabilidade pouco antes das eleições.
Essa estabilidade foi crucial para eleitores castigados pela volatilidade.”
Contudo,
a aparente e frágil estabilidade veio atrelada a um custo elevado, a forte
dependência do governo argentino do apoio financeiro de Washington. O acordo
de swap cambial de US$ 20 bilhões entre o Tesouro dos EUA e o
Banco Central argentino foi formalizado em 20 de outubro e permite
que o BC do país sul-americano possa trocar pesos por dólares diretamente com o
Federal Reserve, garantindo liquidez em moeda estadunidense e evitando um
possível colapso financeiro que o próprio mercado, “parceiro” de Javier Milei,
já vislumbrava e precificava.
O
cálculo eleitoral da medida não só era inegável como foi assumido pelo
benemérito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que condicionou
publicamente a continuação dessa ajuda a uma vitória de Milei, alertando: “Se
ele perder, não seremos generosos com a Argentina”. Após o triunfo eleitoral de
seu protegido, o republicano o parabenizou, mas, em declaração dada a
jornalistas a bordo do Air Force, avião oficial da Casa Branca, fez questão de
destacar o valor de seu apoio. “Ele teve muita ajuda nossa. Teve muita ajuda.
Eu dei a ele um endosso, um endosso muito forte”, falou o mandatário
estadunidense.
Juan
Pablo Ferrero aponta para um outro aspecto deste apoio dado ao presidente
argentino. “A intervenção aberta e decisiva do governo dos EUA marca uma
mudança não vista na América Latina desde talvez a Guerra Fria. Ela sinaliza
que a Argentina, e a América Latina de forma mais ampla, está de volta ao
tabuleiro geopolítico”, pontua. “Para os EUA, trata-se menos de afinidade
ideológica e mais de competição estratégica por recursos. A América Latina
detém vastas reservas de recursos naturais, incluindo minerais críticos como o
lítio, que são componentes essenciais da cadeia de suprimentos global de
energia limpa.”
O
ineditismo da forma como o governo dos Estados Unidos apoia a atual gestão
argentina também foi evidenciado, mais uma vez publicamente e sem disfarces, em
julho, quando o ainda não empossado à época embaixador dos Estados Unidos na
Argentina, Peter Lamelas, pontuou que iria apoiar Javier Milei nas eleições e
que atuaria para tirar espaço da China no país, garantindo que a ex-presidente
Cristina Kirchner recebesse a “justiça que merece”. “Nós precisamos continuar
apoiando a presidência de Milei durante as eleições de meio de mandato e do
próximo mandato para construir uma melhor relação entre nossos dois países”,
disse Lamelas, em sabatina na Comissão de Relações Exteriores do Senado
estadunidense, em uma declaração que jamais poderia ser inserida em um contexto
de relações diplomáticas tidas como usuais entre dois países autônomos.
“O
apoio de Washington a Milei é um movimento para desafiar a crescente influência
econômica e política da China na região. Isso garante que um provedor de
recursos e parceiro comercial chave permaneça firmemente na órbita dos EUA.
Milei, por sua vez, está ansioso para facilitar o investimento americano em
setores-chave como petróleo, gás e mineração. Todos esses setores são centrais
para seus planos de recuperação econômica”, diz Ferrero.
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Os dilemas da oposição
Fechadas
as urnas, o peronismo começou a refletir sobre a derrota e as divisões – e
atribuições de culpa começaram a ser distribuídas. O governador da província de
Buenos Aires, Axel Kicillof, foi criticado por ter separado o processo
eleitoral local do nacional. Tradicionalmente, as eleições legislativas
provinciais vinham sendo realizadas junto com as nacionais ou ao menos no mesmo
período. Mas, neste ano, Kicillof anunciou que sua província realizaria o
pleito local em setembro, por alegadas razões logísticas, operacionais, e de
organização eleitoral. A mudança já havia sido criticada pela ex-presidenta
Cristina Kirchner.
Com a
alteração, diversos peronistas, em especial os adeptos do kirchnerismo,
atentaram para o fato de haver pouca campanha nas ruas da província de Buenos
Aires, acusando ainda uma suposta falta de comprometimento de lideranças
comunitárias e de alguns prefeitos. Do lado dos apoiadores de Kiciloff, as
críticas foram direcionadas ao fato de muitos nomes escolhidos para as listas
não terem, supostamente, proximidade com lideranças locais, o que teria
provocado um reduzido engajamento. A lista de deputados foi elaborada sob o
comando de Maximo e Cristina Kirchner.
O
prefeito de Ezeiza, Gastón Granados, afirmou nesta segunda-feira (27) que teria
faltado “representatividade territorial” nas listas de deputados nacionais da
Fuerza Patria e o eleitorado bonaerense “não mostrou interesse” em uma chapa sem dirigentes das seções
eleitorais.
Para
José Natanson, além dos aspectos circunstanciais e da conjuntura mais imediata,
é necessário abordar as mudanças do que ele chama de “paisagem social
permanente”, onde se dá um “processo lento mas progressivo de formação de um
novo tipo de sociedade, fragmentada e quebrada após quinze anos de persistente
estagnação econômica, pandemias e secas”.
Ele
chama a atenção para uma parcela da sociedade “‘lumpenizada’, que vive
desconectada do Estado, e abriga a nova subjetividade de um povo mileísta cuja
adesão ao capitalismo não é resultado de uma reflexão ideológica, mas de uma
experiência vital determinada pelo lugar que ocupa na economia e no mercado de
trabalho – algo que, em seu tempo, os sociólogos, acostumados a olhar para
baixo, e os antropólogos, habituados a lidar com o alheio, souberam captar
bem”.
Diante
deste cenário, o peronismo precisaria produzir, segundo ele, “uma renovação
programática urgente, pois, caso contrário, pode ficar condenado a um futuro de
irrelevância similar ao que enfrenta o radicalismo”, diz, fazendo referência à
União Cívica Radical (UCR), agremiação histórica que, nas eleições deste
domingo, elegeu apenas um deputado. “E isso, independentemente do que
acontecer: mesmo que o plano econômico de Milei acabe afundado em sua própria
inconsistência, mesmo que o dólar dispare e a inflação rebote, em lugar nenhum
está escrito que o que virá a seguir será necessariamente o peronismo. Milei
pode ser sucedido por um líder de direita clássica, um chefe de cozinha,
Agustín Laje, um policial, outro Milei”, pondera.
Fonte: The
Guardian

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