As
famílias não são o problema — a insegurança é
Os
apelos feministas pela “abolição da família” estão em alta. A ideia levanta
algumas questões contundentes sobre como o capitalismo organiza o cuidado e o
trabalho reprodutivo, mas também carrega consigo alguns pontos cegos. Com muita
frequência, seus defensores se apoiam em uma espécie de funcionalismo —
reduzindo a família a uma máquina ideológica para produzir trabalhadores e
cidadãos submissos —, ignorando as realidades mais complexas da convivência com
os outros: amor, dependência, generosidade.
Também
minimiza algo mais básico: como a vida familiar exige que as pessoas estejam em
contato com pessoas fora de suas zonas de conforto, através de gerações e além
dos “espaços seguros” ideológicos. Na ausência de abuso ou outras patologias
nocivas, essa heterogeneidade — por mais desconfortável que seja — se assemelha
muito mais ao mundo real do que às “famílias escolhidas” celebradas pelos
abolicionistas, e muitas vezes é mais instrutiva e saudável. Os abolicionistas
dirão que tais encontros apenas reforçam normas sociais prejudiciais,
desconsiderando o fato de que é também assim que as pessoas aprendem a conviver
com a diferença.
A
partir daí, a crítica frequentemente descamba para o utopismo. Imagina-se que a
abolição da família derrubaria não apenas as hierarquias sociais, mas também
eliminaria as lutas cotidianas da vida — oferecendo uma visão esperançosa, que
lembra Charles Fourier, o socialista utópico do século XIX que acreditava que a
reorganização da sociedade garantiria o amor verdadeiro e até transformaria os
oceanos em limonada.
Ainda
assim, os abolicionistas da família não se limitam a atacar o papel da família
nuclear na reprodução do capitalismo — eles também destacam a pura
arbitrariedade de nascer em uma família em vez de outra. A vida sob o
capitalismo é uma loteria: alguns nascem com pais capazes e dispostos a cuidar
deles, enquanto outros sofrem negligência, abuso ou obrigações opressivas.
Nesse sentido, a crítica abolicionista é uma acusação contra todo um sistema no
qual o próprio amor é distribuído de forma desigual e injusta. Como ME O’Brien
argumenta no início de seu livro sobre a abolição da família: “Por trás de suas
portas fechadas, a família é um jogo de azar”. Ou como Sophie Lewis diz em seu
confronto com os críticos da abolição da família:
Enquanto
isso, se a sua reação instintiva às palavras “abolir a família” for “mas eu amo
minha família”, saiba que você é um dos sortudos. E fico feliz por você. Mas
todos deveriam ter a mesma sorte, não acha?
Politizar
o cuidado, não o amor
Outra
crítica comum à família é que raramente se trata de uma questão de escolha
genuína. Algumas pessoas ficam com seus parentes por amor, claro — mas muitas o
fazem por necessidade econômica. Salários estagnados, trabalho precário e
custos de moradia altíssimos fazem com que sair de casa seja menos uma decisão
do que uma necessidade. Nessas condições, o que parece lealdade familiar muitas
vezes mascara a falta de alternativas. A verdadeira escolha requer a liberdade
de ir embora — e sem essa liberdade, o comprometimento se torna uma questão de
sobrevivência, não de afeição. Como diz O’Brien: “Se não se pode sair
facilmente, não se pode realmente escolher ficar”.
Os
abolicionistas da família apontam para problemas muito reais aqui. Muitas
pessoas crescem em lares sem amor ou prejudiciais e, para elas, sair não é
apenas emocionalmente difícil — muitas vezes é praticamente impossível. Mas a
ideia de que abolir a família daria às pessoas mais liberdade ou garantiria
doses iguais de amor é, como observa Anca Gheaus, um tanto ingênua. As pessoas
variam em sua capacidade de amar, e alguns dos bens mais significativos da vida
não são coisas que podem ser redistribuídas. A sorte, e não a política, muitas
vezes determina se as encontraremos.
Se
mudarmos o foco do amor para o cuidado, porém, o argumento se torna mais
concreto e urgente. A sociedade deve garantir que ninguém dependa totalmente da
família para ter acesso a apoio básico. As pessoas devem poder deixar lares
prejudiciais ou disfuncionais sem enfrentar a ruína econômica, seja por não
conseguirem pagar o aluguel ou garantir uma moradia estável. O cuidado não deve
estar condicionado à permanência em relacionamentos prejudiciais, nem o medo da
pobreza deve limitar a autonomia pessoal. Uma sociedade justa garantiria que o
cuidado não estivesse vinculado exclusivamente a lares privados, muitas vezes
distribuídos de forma desigual.
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Rumo a uma política pró-família
Éclaro
que o amor também tem dimensões econômicas e políticas. Embora o amor em si
resista à lógica da redistribuição, é razoável argumentar que uma sociedade
mais justa poderia promover condições nas quais o amor e o cuidado sejam
expressos de forma mais livre e equitativa. Quando as pressões econômicas e as
obrigações sociais drenam a energia das pessoas, torna-se mais difícil
demonstrar — mesmo aqueles que amam.
Mas
abolir a família não resolveria isso. Não nos aproximaria dos nossos parentes,
nem corrigiria a distribuição desigual de afeto genuíno. Como Gheaus
corretamente observa: “Sem a família, as crianças continuariam expostas a
cuidadores com diferentes níveis de habilidade, investimento na criação dos
filhos e parcialidade benéfica”.
As
reformas políticas necessárias para reduzir a dependência da família e
coletivizar o cuidado não precisam ser antifamiliares. Pelo contrário, tais
políticas podem ser apresentadas como pró-família, na medida em que apoiam
relacionamentos mais saudáveis e espontâneos, eliminando dependências
econômicas coercitivas. Segurança habitacional, universalização das creches,
cuidados para idosos e salários estáveis, por exemplo, facilitariam a
convivência entre as pessoas sem pressões externas.
De
forma mais ampla, essas reformas fazem parte de um compromisso político para
permitir que os indivíduos vivam a vida que realmente desejam — vidas marcadas
não por obrigação ou necessidade econômica, mas pela dignidade e, idealmente,
pela felicidade. A família em si não é necessariamente um obstáculo para isso.
Ela pode prosperar quando libertada das pressões de cuidados privados e
desiguais.
A
relação entre amor e justiça é inegavelmente importante. Mas o pensamento
abolicionista da família a ignora em grande parte, deixando para trás uma
concepção simplista de justiça — incapaz de lidar com as complexidades
emocionais e psíquicas da vida íntima. Prometer amor para todos corre o risco
de imaginar um mundo muito mais idealizado do que realizável — uma visão não
menos improvável do que nadar em um mar de limonada.
Fonte:
Por Evelina Johansson Wilén - Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

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