Capital
em vigília: O drama dos trabalhadores noturnos
Nas
sociedades contemporâneas, é cada vez mais comum a existência de empresas ou
serviços que funcionam 24 horas por dia. Existem os casos clássicos (hospitais,
serviços de segurança pública e combate a incêndios, empresas de energia
elétrica, de abastecimento de água, vigilância patrimonial, portarias de
prédios, controle de tráfego aéreo e nas indústrias com processos de produção
de natureza contínua, que não podem ser interrompidos: siderúrgicas, fábricas
de cimento, celulose, produtos químicos, petroquímicos, entre outros). Mas há,
também, uma série (crescente) de outras atividades com funcionamento
ininterrupto: farmácias, postos de combustível, supermercados, emissoras de
rádio e televisão, provedores de internet e até academias de ginástica, para ficar
apenas nos casos mais comuns.
Como
essas empresas têm que permanecer em funcionamento contínuo, é imperioso que
pelo menos uma parte dos/as trabalhadores/as cumpram jornadas em horários não
usuais, fora do intervalo compreendido entre, por exemplo, 07 horas e 19 horas
dos dias úteis. Horários que contrariam o ciclo biológico natural, de sono e
vigília, comprometem a saúde e o convívio familiar e social dos trabalhadores
(Fisher et Al., 2004 e DIEESE, 2013).
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Situação anterior à Constituição Federal de 1988
Até
setembro de 1988, os principais parâmetros relativos à organização do tempo de
trabalho eram: i) jornada de oito horas, prorrogável por, no máximo, duas horas
extras; ii) carga horária de trabalho semanal máxima de 48 horas; iii)
intervalo intrajornada de, no mínimo, uma hora e, no máximo, duas horas, para
descanso e alimentação, quando o trabalho se estende por mais de seis
horas/dia; iv) intervalo (interstício) entre jornadas de, pelo menos, 11 horas;
v) Descanso Semanal Remunerado de 24 horas (não coincidente com o intervalo
entre jornadas); vi) folga coincidente com o domingo no mínimo a cada sete
semanas.
Para
cumprirem essas normas, as empresas com funcionamento 24 h/dia organizavam seu
processo de trabalho em turnos (intervalos de tempo) consecutivos, que se
sucediam ininterruptamente. E dividiam os/as trabalhadores/as em quatro equipes
que se revezavam nos mesmos postos de trabalho, de tal maneira que, a cada dia,
enquanto três equipes trabalhavam, outra equipe estava de folga.
O
funcionamento ininterrupto de uma empresa significa que ela opera por 8.766
h/ano (24h/dia x 365,25 dias/ano, considerando-se o ano bissexto). Até 1988,
portanto, cada equipe trabalhava 2.191,5 h/ano (8.766 h ÷ 4 equipes). Como o
ano tem 52,18 semanas, a carga horária média semanal era de 42 horas, portanto
seis horas a menos do que o máximo então permitido pela legislação.
Era
esse o arranjo característico do trabalho em turnos ininterruptos de
revezamento, ou seja, o fato de a empresa funcionar durante 24 horas, com
quatro equipes que se revezavam em turnos ininterruptos. É óbvio que
ininterrupto não era o trabalho das pessoas! Ele se interrompia, naturalmente,
nos intervalos para descanso e alimentação (intrajornada) e nos interstícios
entre jornadas, além do período de descanso semanal. Ininterrupta era a
sucessão dos turnos de trabalho.
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Trabalho em turnos ininterruptos de revezamento com alternância de horários
Um
arranjo comum, até 1988, era a organização do trabalho em três turnos de oito
horas cada, por exemplo, de 07h às 15h (turno predominantemente matutino); de
15h às 23h (predominantemente vespertino); e de 23 h às 07 h (predominantemente
noturno), numa escala de seis dias de trabalho por dois dias de folga (“Escala
6T x 2F”), com alternância de horários entre as quatro equipes. Nesse caso,
para cada equipe, após seis dias consecutivos de trabalho no primeiro turno,
sucedia-se uma folga de 80h; na sequência, após seis dias de trabalho no
terceiro turno, seguia-se uma folga de 56h; e finalmente, após seis dias de
trabalho no segundo turno, outra folga de 56h, completando o ciclo de 24 dias.
Nessa escala, cada equipe comparecia à empresa 24 dias por mês.
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Trabalho em turnos ininterruptos de revezamento sem alternância de horários
Mas o
trabalho em turnos ininterruptos de revezamento podia ser realizado também com
as equipes trabalhando em turnos fixos, isto é, sem alternância de horários.
Isso porque, como descreve Fischer (2004a, p. 8), turno é a “unidade de tempo
de trabalho (seis, oito ou 12 horas, em geral)”. E turmas (ou equipes) são
“grupos de trabalhadores que operam em revezamento, isto é, trabalham juntas no
mesmo local, nos mesmos horários, sucedendo-se umas às outras”. Assim, as
equipes podiam se revezar, ao longo do dia, nos mesmos postos de trabalho,
independentemente de haver, ou não, alternância de horários de entrada e saída
de cada equipe, assegurando o funcionamento contínuo da atividade da empresa.
Essa
abordagem, entretanto, não é hegemônica no debate sobre o trabalho em turnos
ininterruptos de revezamento. Para muitos/as estudiosos/as do tema, bem como
para muitas empresas e entidades patronais, o trabalho em turnos ininterruptos
de revezamento só se caracteriza com a alternância dos horários de trabalho das
equipes entre os períodos matutino, vespertino e noturno. Esse também é o
entendimento prevalecente no âmbito do Judiciário Trabalhista, uma
incompreensão que tem trazido prejuízos aos/às trabalhadores/as em turnos
ininterruptos de revezamento Uma das modalidades de trabalho em turnos
ininterruptos de revezamento sem alternância de horários é exercida na chamada
“Escala 12 h x 36h”. Antes de novembro de 2017 – data da entrada em vigor da
chamada Reforma Trabalhista (Brasil, 2017 – Lei 13.467/17) –, a Justiça do
Trabalho admitia escalas de 12 horas de trabalho consecutivo, seguidas de 36
horas de descanso, excepcionalmente em algumas atividades. E sua adoção
dependia de autorização em lei e/ou de acordo ou convenção coletiva firmada
entre a empresa e o sindicato dos/as trabalhadores/as.
No
Brasil, a “Escala 12h x 36h” é comum em hospitais, em serviços de vigilância e
em condomínios residenciais, malgrado seus impactos negativos sobre a saúde e a
segurança no trabalho e para o convívio familiar e social especialmente para
quem o exerce no período predominantemente noturno.
A
“Escala 12h x 36h” com quatro equipes representa, portanto, um caso de trabalho
em turnos ininterruptos de revezamento sem alternância de horários, onde cada
equipe trabalha, sempre no mesmo horário, dia sim, dia não, alternando folgas
aos sábados e domingos, num ciclo de 02 dias, com carga horária anual de
2.191,5 h e média semanal de 42 h.
Em
síntese, o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento pode ocorrer com ou
sem alternância de horários entre as equipes.
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Mudanças com a Constituição Federal de 1988
A
Constituição Federal de 1988 trouxe duas importantes modificações na regulação
do tempo de trabalho, nos Incisos XIII e XIV do Art. 7º:
Art.
7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:
XIII –
duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e
quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada,
mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
XIV –
jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de
revezamento, salvo negociação coletiva. (Brasil, 1988).
O
Inciso XIII reduziu a carga horária semanal máxima de 48h para 44h, o
equivalente, em média, a uma jornada de 7h20min em seis dias de trabalho (ou
jornada de 8h48min, de segunda a sexta-feira). E o Inciso XIV introduziu, pela
primeira vez, um dispositivo específico de jornada reduzida para o trabalho em
turnos ininterruptos de revezamento, como reparação ao intenso desgaste a que
são submetidos/as os/as trabalhadores/as que labutam em horários não usuais.
Essa
conquista não foi obtida sem luta. Ainda durante os trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte, a proposta de redução de jornada para o trabalho em
turnos ininterruptos de revezamento sofreu forte oposição dos setores
empresariais. A ponto de o Instituto Brasileiro de Siderurgia, representante
das grandes empresas desse setor, ter publicado um boletim, em maio de 1988 –
na verdade um típico panfleto aterrorizador – intitulado “As Seis Horas que
Abalarão o Brasil” (IBS, 1988).
A
adoção da jornada de seis horas, em uma empresa que funciona 24 horas por dia,
implica a contratação de uma quinta equipe de trabalho em revezamento.
Com
cinco equipes, a carga horária média de trabalho semanal em turnos
ininterruptos de revezamento foi reduzida de 42h para 33,6h, obtida pela
divisão das 8.766h de funcionamento da empresa por ano (24 h/ dia X 365,25
dias/ano,considerando-se o ano bissexto) pelas cinco equipes, cada equipe
passando a trabalhar 1.753,2 h/ano. Que, divididas por 52,18 semanas/ano,
resultam numa carga horária média semanal de 33,6h (ou 33h e 36 minutos).
Ocorre
que essa mesma redução da carga horária anual e semanal pode ser obtida com
cinco equipes se revezando em três turnos de oito horas/dia, com correspondente
ampliação das horas de folga. Essa opção era frequentemente considerada mais
interessante por trabalhadores/as em turnos ininterruptos de revezamento, por
exigir menos dias de comparecimento à empresa (18 ao invés de 24 dias) e
garantir mais dias consecutivos de folgas, na comparação com as escalas com
turnos de seis horas, em cinco equipes. Consequentemente, reduzia-se o número
de deslocamentos no trajeto residência-empresa-residência, muitas vezes motivo
de significativo desgaste e perda de tempo livre. Também para as empresas, essa
alternativa era positiva, por reduzir o número de trocas de turno e os gastos
com transporte de pessoal ou com vale-transporte.
Com
efeito, muitos sindicatos negociaram com empresas escalas com turnos de oito
horas e cinco equipes, com significativa ampliação das horas de folga,
garantindo-se a redução da carga horária anual de trabalho para 1.753,2h e
semanal para 33,6h.
A
expressão “salvo negociação coletiva” do texto constitucional foi corretamente
interpretada como a possibilidade de acordo sobre a melhor escala de trabalho
(de 6h ou 8h) que garantisse efetivamente a jornada reduzida para o trabalho em
turnos ininterruptos de revezamento, fosse essa redução computada diariamente,
semanalmente ou anualmente. Isso porque o cerne do direito assegurado é a
redução do tempo de trabalho, não a escala específica, e esse direito
constitucional não pode ser considerado negociável.
Mesmo
no contexto inaugurado pela Reforma Trabalhista de 2017, que estabelece a
prevalência do negociado sobre o legislado, esse princípio não atinge os
direitos inscritos na Constituição. Não faria sentido que a negociação
coletiva, equivalente à legislação infraconstitucional, pudesse reduzir ou
anular o cerne do benefício constitucionalmente assegurado. De todo modo, é
imperioso constatar que, na ausência de acordo coletivo, a empresa é obrigada a
adotar a jornada de seis horas.
Especialistas
nos impactos do trabalho em turnos com alternância de horários sobre a saúde
do/a trabalhador/a aconselham escalas com redução do número de dias
consecutivos em trabalho noturno. Para Rotenberg (2004, p. 215), “A minimização
dos turnos fixos noturnos é uma recomendação essencial e, caso não seja viável,
sugere-se que o número de noites consecutivas seja o menor possível”. E que “a
cada sequência de noites de trabalho deve haver pelo menos dois dias de folga,
já que as primeiras 24 horas após o último turno noturno correspondem a um
momento de muito cansaço”.
Por
esses motivos, a chamada “Escala Francesa” tornou-se uma das preferidas
pelos/as trabalhadores/as em turnos de revezamento com alternância de horários,
com cinco equipes. Nela, o trabalho é realizado em turnos de oito horas durante
seis dias, sendo dois dias em cada turno, seguidos de 96 horas de folga.
Com o
passar do tempo, entretanto, foram escasseando os casos de jornada reduzida com
cinco equipes e ampliando os acordos coletivos que reintroduziram as escalas de
oito horas diárias, com apenas quatro turmas e carga horária média semanal de
42 horas, numa interpretação equivocada do termo “salvo negociação coletiva”,
passando a significar que um acordo coletivo possa reduzir (transacionar) um
direito constitucional.
Para
obterem a concordância de trabalhadores/as, muitas empresas ameaçavam fixar
unilateralmente os horários das equipes, na tentativa de descaracterizarem os
turnos ininterruptos de revezamento, contando com um entendimento prevalecente
da Justiça Trabalhista, que considera o trabalho em turnos ininterruptos sem
alternância de horários mais benéfico do que aquele em que os/as
trabalhadores/as se alternam em turnos diferentes, a cada semana, ainda que com
ampliação compensatória dos dias de folga.
Essa
manobra das empresas baseia-se na suposição de que turnos ininterruptos de
revezamento só ocorrem quando há alternância de horários entre as equipes e que
a fixação dos horários beneficia os/as trabalha dores/as, equívocos ou
incompreensões que têm sido compartilhados por um entendimento hoje hegemônico
da Justiça do Trabalho.
Se a
fixação dos turnos pode ser benéfica para a equipe que passa a trabalhar
somente no turno predominantemente matutino (por exemplo, de 07h às 15h), o
mesmo não se pode dizer para a equipe que passa a trabalhar no turno
vespertino-noturno, de 15h às 23h (pois a vida familiar e social se organiza
basicamente no início da noite) e, muito menos, para a equipe que passa a
trabalhar sempre no horário noturno (de 23h às 07h). A alternância de horários,
na verdade, é uma forma de dividir, entre as equipes, o ônus do trabalho em
horários não usuais.
É
ilustrativa, nesse sentido, a luta dos/as trabalhadores/as metalúrgicos/as de
Ipatinga (MG), em 2010, pela adoção da “Escala Francesa”, após a experiência de
turnos fixos de trabalho, imposta à época pela empresa Usiminas. Sobre isso,
dizia o Informativo do Sindicato, na convocação de um plebiscito sobre as
escalas de revezamento:
DEFENDEMOS
A SEMANA FRANCESA
Nosso
objetivo é construir uma tabela digna, que respeite os limites e preserve a
qualidade de vida dos trabalhadores metalúrgicos. Por isso, defendemos a
implantação da semana francesa, porque ela permite que o trabalhador viva para
sua família e participe efetivamente da sociedade. É muito importante que o
trabalhador fique ciente de que a manutenção do turno fixo é uma agressão a sua
própria saúde. Na hora de votar, lembre-se que a sua qualidade de vida está em
jogo e que somente o turno de revezamento possibilita aquele tempo precioso com
os filhos, esposa e familiares.
O turno
fixo não é benéfico para ninguém. Após a implantação desta jornada desumana os
números de acidentes, atestados médicos só aumentaram e junto com eles veio a
indignação geral dos trabalhadores. (SINDIPA, 2010).
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Considerações finais
O
funcionamento ininterrupto de empresas impõe o trabalho em horários e dias não
usuais, com intenso desgaste para a saúde dos/as trabalhadores/as, aumento do
risco de erros e acidentes do trabalho e comprometimento de seu convívio
familiar e social.
Por
esses motivos, a Constituição de 1988 assegurou a eles/as importante redução do
tempo de trabalho, alcançável em escalas de revezamento com cinco equipes,
resultando em carga horária média semanal de 33,6 horas de trabalho.
Esse
direito constitucional, entretanto, vem sendo crescentemente negado, com base
em dois pressupostos defendidos por grande número de empresas e que,
infelizmente, têm tido guarida em decisões da Justiça do Trabalho.
O
presente artigo buscou questionar esses pressupostos, em duas dimensões.
Primeiro, argumentando que turnos ininterruptos de revezamento ocorrem tanto em
escalas de trabalho com alternância de horários, como em situações onde as
equipes trabalham sempre nos mesmos turnos, o que inclui a conhecida “Escala
12h x 36h”. Fixar os turnos, portanto, não descaracteriza o trabalho em turnos
ininterruptos de revezamento. Ininterrupto é o processo produtivo em que as
turmas se sucedem, alternando ou não de horários. Em segundo lugar,
questionando a tese de que o trabalho em horários fixos é mais benéfico ao/à
trabalhador/a em turnos do que aquele com alternância de horários e aumento das
folgas. Também defende que a negociação coletiva não pode eliminar o cerne de um
direito constitucional.
Não
resta dúvida de que o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento com
alternância de horários é extremamente penoso e mereça a redução da carga de
trabalho! Mas, se fosse mais penoso do que o revezamento sem alternância de
horários, por que teria sido criado e adotado de forma generalizada pelas
empresas?
A
garantia e ampla disseminação do direito à redução da carga horária para quem
trabalha em turnos ininterruptos de revezamento depende, antes de tudo, de uma
forte mobilização dos/as trabalhadores/as. Mas pode ser bastante favorecida por
uma revisão necessária e urgente do entendimento jurídico prevalecente sobre
essa matéria.
Fonte:
Por Carlindo Rodrigues de Oliveira, em Outras Palavras

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