Transporte
sanitário: espaço de vínculo e cuidado
Milhares
de brasileiros viajam diariamente horas – às vezes dias – para conseguir
atendimento especializado no Sistema Único de Saúde (SUS). Diversas histórias e
sagas relacionadas ao Transporte Sanitário foram registradas pelo estudo
‘Cartografia da Atenção Especializada no SUS’, realizado em todo o país pela
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que revelou uma parte do sistema
de saúde que é pouco visibilizada.
Embora
regulamentado há décadas como ‘Tratamento Fora do Domicílio (TFD)’, o
transporte de pacientes para consultas, exames e cirurgias tem sido operado de
forma muito diversa pelos municípios, adequando-se na medida do possível às
diferentes realidades do país, o que inclui o uso de ônibus, vans, carros,
ambulâncias, barcos e aeronaves.
Trata-se
de um ponto crucial para a garantia do acesso à atenção especializada,
considerando a concentração de serviços especializados nas capitais e as
grandes distâncias. As diferentes modelagens de organização têm sido produzidas
localmente, de acordo com os recursos disponíveis, à margem do que poderia ser
ou compor uma política de saúde.
Em que
pese os esforços dos gestores municipais, a ausência de uma política nacional
que garanta o financiamento adequado do Transporte Sanitário, reflete no acesso
às consultas e na garantia de transporte adequado, seguro e digno, em tempo
oportuno, causando desconfortos e algumas vezes riscos aos usuários.
Na
perspectiva da implementação da Política de Atenção Especializada à Saúde
(PNAES), a partir de 2023, a temática do Transporte Sanitário emerge como
necessidade para a continuidade assistencial em territórios definidos no âmbito
das regiões de saúde. Classicamente, o transporte de pacientes é compreendido
como um componente logístico nas redes de atenção à saúde. Ou seja,
compreendendo-se que na maioria das vezes a integralidade do cuidado não se
completa nos municípios, mas a partir de um planejamento regional, há real
necessidade de locomoção dos usuários do SUS para serviços de saúde em outras
localidades. Assim, regionalização, planejamento assistencial, sistemas de
informação, regulação do acesso e transporte devem compor um corpus articulado
do sistema.
Na
pesquisa, o que observamos foram muitas situações de desassistência,
clientelismo e improvisação, onde a população usa de seus saberes próprios
construindo seus mapas de cuidado, os profissionais – incluindo agendadores e
motoristas – trabalham de forma autônoma e criativa e os gestores municipais
investem o que podem e como podem no Transporte Sanitário para garantir o
acesso a serviços especializados. Identifica-se um grande vazio de recursos,
ofertas e responsabilidades que deixa o usuário muitas vezes à sua própria
sorte.
Assim,
o investimento em estratégias logísticas, em apoio aos municípios, por parte do
Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde – para além da doação
de veículos – poderia incluir o cofinanciamento e a oferta de sistemas de
informação para agendamento e traçado de rotas, além de incentivos para casas
de apoio, espaços de convivência e alimentação para pacientes, acompanhantes e
motoristas, próximos aos grandes serviços especializados de referência
regional. Enfim, a organização de uma logística própria para estes serviços de
transporte de usuários no SUS.
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Para além da logística
O
modelo atual de financiamento, que deveria ser tripartite, frequentemente não é
suficiente ou não se diferencia para atender às realidades de cada região,
gerando dificuldades de acesso. Ademais, há falta de formação adequada para os
profissionais que atuam no transporte eletivo, o que pode comprometer a
qualidade e a segurança do serviço. Além disso, o serviço muitas vezes não está
devidamente vinculado à regulação e à complexidade das diferentes tipologias,
incluindo o aéreo em regiões remotas. Consideradas as fragilidades, o que se
observa é uma racionalidade de logística pura e não de cuidado integrado.
Para
além de um sistema puramente logístico, o que a cartografia também desvela é um
outro lado do Transporte Sanitário, implicado com o cuidado em saúde. As
relações de vínculo que se estabelecem entre motoristas e pacientes, seus
familiares e acompanhantes, e entre os próprios usuários durante as viagens têm
um forte potencial de produção do cuidado. O apoio mútuo nas dificuldades do
adoecer, o compartilhamento de informações, os lutos por óbitos, as
comemorações de curas e altas, a repartição de alimentos, fazem parte da rotina
destes grupos que viajam por horas e quilômetros, algumas vezes diariamente.
O que
se observa é que estes espaços atravessados por dor e sofrimento podem se
tornar espaços de solidariedade e cuidado. Seria necessário investir e
compreender as vans, ônibus, carros e demais veículos não apenas como
componentes de um sistema de apoio logístico às redes de atenção, mas também
como pontos de atenção à saúde, investindo inclusive nos profissionais que o
operam a partir de formação e educação permanente.
Além
das diretrizes da Política de Atenção Especializada, outros marcos trazem a
temática do transporte à agenda do SUS. Recentemente, a Lei nº 15.233/2025
garantiu às pessoas diagnosticadas com câncer e que estejam em tratamento
radioterápico, ou com doença renal crônica que estejam em tratamento dialítico,
em serviços sediados em ente federativo diverso de seu domicílio, o Transporte
Sanitário adequado e o pagamento de diárias para custear alojamento e
alimentação. Também no Programa Agora Tem Especialistas, o transporte é
anunciado como um de seus componentes.
Estas
normativas ainda carecem de regulamentações por parte do Ministério da Saúde, a
serem pactuadas com estados e municípios. O que se espera, é que contemplem o
cofinanciamento, a organização logística e uma perspectiva de produção do
cuidado em saúde, tão necessária a quem, em situação de adoecimento e
fragilidade, demanda acolhimento e apoio.
Fonte:
Por Luís Fernando Nogueira Tofani, em Outra Saúde

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