Remédios:
sigilo em compras públicas é má ideia
Recentemente,
o Ministro da Saúde Alexandre Padilha anunciou a intenção de adotar uma nova
modalidade de compra de medicamentos de alto custo baseada na garantia da
confidencialidade dos preços negociados.
Argumenta-se
que tal abordagem, que concederia exceções ao atual modelo de transparência dos
preços dos medicamentos adquiridos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), poderia
acelerar a incorporação e estimular o investimento no país, favorecendo o
acesso. Também se argumenta que ela já é adotada por países europeus e nos
Estados Unidos das Américas. Mas nem tudo que vem de fora é bom.
Experiências
de negociação de preços em países que também são a sede das empresas
farmacêuticas transnacionais, líderes do mercado mundial em vendas, devem ser
analisadas com cautela quando consideradas para países periféricos como o
Brasil, que representam grandes mercados farmacêuticos para essas mesmas
empresas, mas que talvez não estejam na mesma posição de negociação que países
de renda alta.
Ainda
que a promessa de garantia oportuna do acesso a tecnologias sanitárias traga um
sentido de urgência ao desenho e implementação de políticas públicas, ela não
deve justificar respostas que priorizem abordagens onde o país atua em posição
isolada na negociação e que ponha em risco uma perspectiva autônoma e soberana
na aquisição de tecnologias para o setor público.
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O que diz a experiência internacional
No
âmbito multilateral, em 2019 os países Membros da Organização Mundial da Saúde
(OMS) aprovaram uma resolução para “Melhorar a transparência dos mercados de
medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde” (resolução WHA72.8), da qual
o Brasil foi um dos co-patrocinadores.
Em seu
preâmbulo, são ressaltadas preocupações com os altos preços de certas
tecnologias e os seus efeitos na produção de iniquidades no acesso entre os
diferentes países e destaca a importância de informações públicas sobre preços
de medicamentos como um facilitador dos esforços para garantir equidade e
preços acessíveis. A resolução aponta uma agenda de trabalho para a OMS nesse
mesmo sentido de ampliar os esforços para promover a transparência.
Entre
os instrumentos de regulação de preços está a utilização de preços de
referência, sejam eles internos (aqueles praticados dentro do país) ou externos
(praticados em diferentes países). A adoção de preços de referência em
licitações públicas favorece a concorrência e, se associada a outros elementos,
como o volume da aquisição e a garantia da compra, pode trazer resultados
satisfatórios para os sistemas de saúde. O uso do poder de compra do Estado,
nesse caso, assegura o volume e a garantia da aquisição.
Em
sentido inverso, acordos sigilosos de preços de medicamentos, à medida que
diferentes países deixem de publicizar seus preços sob a alegação de possíveis
descontos ou outras vantagens de compra favoráveis ao país para casos
específicos, minam as opções de preços de referência, desconstroem as próprias
fontes de informação que permitiriam avaliar as supostas vantagens dos
contratos e reforçam a opacidade do mercado farmacêutico.
Um
exemplo recente é o da África do Sul. Embora o governo tenha iniciativas para
tornar públicos os preços dos medicamentos adquiridos no setor público, durante
a pandemia de Covid-19 o governo negociou contratos para a aquisição de vacinas
com empresas farmacêuticas transnacionais que não estavam públicos.
Uma
ação judicial apresentada pela organização sul-africana Health Justice
Initiative resultou em decisão favorável à obrigatoriedade de o governo
sul-africano tornar público esses acordos e outros documentos sobre o processo
de negociação. Revelou-se que o governo sul-africano pagou 15% mais caro que o
preço praticado na União Europeia pela vacina da Johnson & Johnson e 33%
mais caro que o preço praticado a União Africana para a vacina da
Pfizer-BioNTech.
Essa
experiência não só ilustra os riscos de acordos sigilosos e dos preços
resultantes desse tipo de negociação como também aponta para uma
vulnerabilização do governo de países de renda média em tempos de pandemia, já
que diante da emergência sanitária e da situação de monopólio das tecnologias o
governo ficou em posição desvantajosa no momento da aquisição da tecnologia. O
mesmo aconteceu no Brasil, já que para a aquisição da vacina da Pfizer/BioNtech
e da Johnson & Johnson, o governo aceitou não divulgar o preço praticado ao
SUS.
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Fortalecer o Estado e evitar o retrocesso
É mais
provável que o Brasil seja excluído de preços de desconto do que do
fornecimento de tecnologias no mercado nacional. Estando entre os dez países no
ranking do mercado farmacêutico mundial, é pouco provável que as empresas vão
abrir mão da enorme fatia que o mercado farmacêutico brasileiro – incluindo o
setor público – representa. O exemplo do ecolizumab, indicado para algumas
doenças raras, é emblemático em ilustrar o peso importante das vendas no
mercado brasileiro na fatia de vendas do produto mundialmente.
É por
este mesmo motivo que se deve direcionar o poder de compra do Estado a
políticas que fortaleçam o poder de negociação do Estado em compras públicas,
reconhecendo as assimetrias de poder entre empresas e governo, principalmente
para tecnologias de alto preço envolvendo plataformas tecnológicas específicas
e em situação de monopólio decorrente, entre outros, da situação patentária.
As
políticas no contexto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) se
anunciam como estratégia para superar a vulnerabilidade do SUS frente à
dependência tecnológica. Nesse sentido, ao invés de atender às demandas do
setor regulado de fechar ainda mais a “caixa-preta” dos custos e dos preços dos
medicamentos, devemos nos perguntar quais são os caminhos de políticas
industriais e tecnológicas que fortaleçam o poder de negociação do governo na
aquisição de tecnologias sanitárias promissoras e que salvam vidas por meio de
estimativas de custos de produção, preços de referência e capacidade de
produção e fornecimento oportunos.
Ainda
que a aposta esteja centrada em tecnologias específicas, como as de alto custo,
corre-se o risco de que a exceção vire regra e represente um retrocesso nos
esforços de transparência de preços de medicamentos no setor público que estão
em vigor há décadas.
Fonte:
Por Gabriela Costa Chaves e Thiago Azeredo, para a coluna Saúde não é
mercadoria

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