sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Nota sobre a ilegalidade da pejotização

Está em pauta no STF o Tema de Repercussão Geral n. 1.389 (ARE n. 1.532.603), cuja ementa diz: Competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. Em síntese, o Supremo julgará a legalidade da pejotização e a proibição de sua anulação pela Justiça do Trabalho quando verificados os pressupostos fáticos da relação de emprego.

No início do mês de outubro, houve uma audiência pública no curso do Tema n. 1.389 para que a Corte ouvisse especialistas, sindicalistas e defensores das posições adversas na matéria. Façamos um apanhado dos dados e argumentos ali debatidos que nos levam à conclusão lançada no título.

Muito embora o art. 7º da Constituição de 1988 traz uma lista de 24 incisos com direitos básicos dos trabalhadores, como o direito a uma jornada máxima de trabalho, remuneração adicional para o trabalho extraordinário, o noturno, insalubre ou perigoso, férias, décimo-terceiro salário, FGTS e por aí vai. Muito embora o referido artigo principie dizendo “São direitos dos trabalhadores urbanos ou rurais […]”, o Judiciário não os reconhece senão aos empregados. A quem trabalhe pessoalmente por conta própria, mesmo que não deixe por isso de ser trabalhador, o sistema jurídico brasileiro nega de pronto a aplicação desses direitos.

É por essa porta que a informalidade ou a pejotização pretendem passar uma condição de trabalho abaixo do parâmetro mínimo constitucional. Os defensores da pejotização aludem à figura do pequeno proprietário e do profissional liberal autônomo, cujas condições de trabalho impediriam a vigência de tais direitos, para defenderem a generalização dessa forma contratual precária.

Porém, e esse é um dos primeiros fatos que apareceram no debate, a pejotização vem crescendo muito além da abrangência de tais ocupações genuinamente autônomas e avança sobre o terreno dos contratos de trabalho. Dados do TST noticiam um aumento de 57% no número de processos abertos com o objetivo de reconhecimento de vínculo empregatício entre 2023 (181.561) e 2024 (285.055 processos); esses números vêm crescendo historicamente: em 2018 havia 150.500 casos.

É certo que antes de se aventar a legalidade da pejotização muitos empregadores sempre buscaram retirar os direitos dos trabalhadores negando-se a registrar o vínculo de emprego em carteira profissional; porém, aí se está mais claramente no domínio da fraude e a Justiça do Trabalho pode cumprir seu papel. A pejotização, diferentemente, pretende tornar a fraude permitida: contratar trabalho subordinado, pessoal e não eventual como se fosse um trabalho por conta própria.

Pode-se afirmar com bastante razoabilidade que a pejotização não é um fenômeno que decorre do processo produtivo: é algo que se passa na esfera da contratação com a finalidade precípua de reduzir direitos dos trabalhadores e tributos destinados ao sistema de proteção social. É o que acontece, por exemplo, quando escolas e universidades convertem seus professores em pessoas jurídicas.

Os defensores da retração ou do fim da legislação trabalhista sempre falaram em novas formas de organização produtiva que não caberiam na dita rigidez do contrato de emprego celetista. Aludem à disseminação do trabalho por plataformas digitais ou aplicativos como o maior exemplo dessa suposta realidade que traria consigo inexoravelmente a pejotização.

No entanto, as plataformas digitais de trabalho constituem um sistema propriamente industrial de produção de serviços, geridos digitalmente por algoritmos que fazem as vezes do empregador ou da maquinaria das fábricas.

Os serviços que antes eram prestados por pequenos proprietários atomizados passam a ser feitos de maneira unificada pela plataforma digital, que define o valor do produto entregue ao cliente, a remuneração do trabalhador, as regras e procedimentos de prestação do serviço, ritmos, metas, incentivos e desincentivos, penalidades e até a exclusão do trabalhador do sistema; as plataformas digitais controlam o processo e se apropriam do lucro produzido; representam um desenvolvimento típico do capitalismo, no sentido da concentração e centralização de capital em poucas e enormes empresas, capazes de investir pesadamente em tecnologia e automação do trabalho.

Nessas condições, é plenamente possível inserir na relação de trabalho por plataforma os direitos e obrigações da relação de emprego. Na audiência pública no STF foi lembrada a diretiva da União Europeia n. 2.831/2024, que orienta os Estados-membros a adotarem a “presunção legal de relação de emprego” para as pessoas que se ativem “em trabalhos por plataforma digitais”.

É justamente essa presunção de que há vínculo empregatício que está em xeque no Tema n. 1.389, que vai discutir o ônus da prova de eventual fraude ao contrato de emprego e o foro competente. O STF, ou melhor uma maioria de seis ministros, pode definir que é ônus do trabalhador provar a existência de fraude na sua contratação como pessoa jurídica e que isso deverá ser feito não perante a Justiça do Trabalho, mas a Justiça Comum.

O objetivo que está contido ocultamente nessa mudança de foro competente é deslocar o tipo de análise: pretende-se que a questão a ser discutida restrinja-se aos pressupostos formais gerais de validade de qualquer contrato, como a licitude do objeto e a inexistência de vícios de vontade.

É dizer, pretende-se que baste perguntar se o trabalhador concordou com a sua contratação como pessoa jurídica, se assinou o contrato sem vício de consentimento ou se aderiu aos termos da plataforma digital, para afastar a incidência dos direitos e obrigações da legislação social e tributária. É o sonho de retorno aos primórdios do capitalismo.

Contra isso mais de 640 especialistas internacionais se posicionaram em carta dirigida ao STF: “[…]. O que o Supremo tem decidido, […], é que, uma vez assinado um contrato civil, os fatos não importam mais: isso contorna a jurisdição da Justiça do Trabalho para levar em conta a realidade dos fatos e, assim, restringe-a a limitar seu julgamento ao contrato civil formal. Portanto, em última análise, a tese não afetará apenas os trabalhadores de plataformas digitais, mas se aplicará a praticamente qualquer trabalhador.”.

Isso nos conduz ao cerne da questão, tratada praticamente em todas as exposições contrárias à pejotização. O direito social nasce precisamente da descaracterização do contrato civil quando o objeto é o trabalho pessoal; nasce do reconhecimento jurídico da superioridade real do proprietário dos meios de produção em relação ao trabalhador, proprietário somente de sua força de trabalho, para estabelecer a superioridade jurídica do trabalhador em direitos e deveres na relação de emprego.

Decidir que é lícita a pejotização é tentar fazer a história andar para trás. A licitude da pejotização significa a morte tendencial do contrato de emprego, que se tornará juridicamente opcional; individualmente, no entanto, o trabalhador não está em condições de optar.

E a história andará para trás não somente no resultado institucional a que se chegou, o contrato de trabalho, a legislação social e o ramo judiciário especializado para forçar a sua aplicação: também o processo histórico de organização e luta sindical que contribuiu em maior medida para esse resultado terá de ser reiniciado para os convertidos em “PJs”, excluídos que estão da base legal de representação dos sindicatos e de sua experiência organizativa. A classe trabalhadora terá de recomeçar quase que do início o caminho que trilhara ao longo de um século; greve após greve, luta após luta, argumento após argumento.

Outra ordem importante de argumentos que apareceram na audiência pública veio dos representantes do Fisco e da Previdência Social, que chamaram a atenção para o fato de que a base do financiamento do sistema é a folha de salários: os empregados contribuem com 7,5 a 14% do salário, limitado ao teto de benefícios da Previdência Social (hoje em R$ 8.157,41), e os empregadores contribuem com 20% incidentes sobre o total da folha, sem qualquer limitação (mais 1, 2 ou 3% de acordo com o tipo de atividade empresarial e ambiente de trabalho).

A pessoa jurídica do trabalhador individual, a Microempreendedor Individual (MEI), é uma política altamente subsidiada: a alíquota de contribuição previdenciária é de apenas 5% sobre o salário-mínimo (atualmente em R$ 1.518,00). Hoje, 73% do financiamento da Previdência Social vêm de patrões e empregados (R$ 470 bilhões anuais).

O Diretor do Departamento do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) projeta que se apenas 10% dos empregados forem convertidos em PJs perder-se-á cerca de R$ 47 bilhões anuais. Essa mudança já vem ocorrendo e corroendo as contas da Previdência Social. De acordo com o estudo de Rogério N. Constanzi, o número de trabalhadores MEI era de 44 mil em 2009 e chegou a 16,2 milhões em julho de 2025, causando uma perda arrecadatória, em comparação com o vínculo empregatício, de aproximadamente R$ 974 bilhões.

E tudo isso na véspera da virada demográfica que o Brasil está prestes a fazer: a partir de 2032 a população economicamente terá deixado de crescer e passará a diminuir ano a ano. A necessidade de financiamento da Previdência Social, que hoje é de R$ 300 bilhões/ano, será, em 2065, de R$ 900/ano. Generalizar a pejotização solapa as bases de financiamento do sistema de Seguridade Social. É a preparação de uma crise futura, com mais pressões sobre as contas públicas e por reduções de direitos.

Diante desse cenário, cuja obviedade é soterrada pelo palavreado da “liberdade econômica” e da “modernidade”, surge a justa dúvida: não estaria o STF indo longe demais? Não parece razoável que uma destruição dessa magnitude advenha de uma Corte cujo papel institucional é justamente conservar a Constituição e suas instituições; sabe-se que o STF vem retirando direitos aos poucos, mas retaliar e debilitar é diferente de arrancar os direitos sociais pela raiz.

Certamente. Tanto que já grassa nos bastidores a expectativa pela “modulação” dos efeitos – uma licença política que o Tribunal possui para determinar o alcance temporal e material de suas decisões e que lhe dá poderes para na prática legislar com força constitucional. Especula-se que a Corte fixe uma linha de corte por faixa remuneratória: acima de determinado nível de remuneração, tem-se uma pessoa que não precisaria da proteção dos direitos sociais.

Esse tipo de acochambro, no entanto, além de tergiversar em relação a questões de princípio, só joga para frente o problema, pois o Estado de Bem-Estar Social repousa, finalmente, sobre determinado equilíbrio na relação capital-trabalho e na solidariedade no custeio das políticas públicas de Seguridade Social.

O único caminho para a defesa da Constituição de 1988, missão institucional do STF, é debelar o que se pretende no Tema 1.389 e manter a inescapável ilicitude da pejotização, a presunção de vínculo empregatício onde haja trabalho pessoal e não eventual, e a competência da Justiça do Trabalho para a verificação dos fatos e descaracterização das fraudes.

 

Fonte: Por Thiago Barison, em A Terra é Redonda

 

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