Nota
sobre a ilegalidade da pejotização
Está em
pauta no STF o Tema de Repercussão Geral n. 1.389 (ARE n. 1.532.603), cuja
ementa diz: Competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência
de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da
contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. Em
síntese, o Supremo julgará a legalidade da pejotização e a proibição de sua
anulação pela Justiça do Trabalho quando verificados os pressupostos fáticos da
relação de emprego.
No
início do mês de outubro, houve uma audiência pública no curso do Tema n. 1.389
para que a Corte ouvisse especialistas, sindicalistas e defensores das posições
adversas na matéria. Façamos um apanhado dos dados e argumentos ali debatidos
que nos levam à conclusão lançada no título.
Muito
embora o art. 7º da Constituição de 1988 traz uma lista de 24 incisos com
direitos básicos dos trabalhadores, como o direito a uma jornada máxima de
trabalho, remuneração adicional para o trabalho extraordinário, o noturno,
insalubre ou perigoso, férias, décimo-terceiro salário, FGTS e por aí vai.
Muito embora o referido artigo principie dizendo “São direitos dos
trabalhadores urbanos ou rurais […]”, o Judiciário não os reconhece senão aos
empregados. A quem trabalhe pessoalmente por conta própria, mesmo que não deixe
por isso de ser trabalhador, o sistema jurídico brasileiro nega de pronto a
aplicação desses direitos.
É por
essa porta que a informalidade ou a pejotização pretendem passar uma condição
de trabalho abaixo do parâmetro mínimo constitucional. Os defensores da
pejotização aludem à figura do pequeno proprietário e do profissional liberal
autônomo, cujas condições de trabalho impediriam a vigência de tais direitos,
para defenderem a generalização dessa forma contratual precária.
Porém,
e esse é um dos primeiros fatos que apareceram no debate, a pejotização vem
crescendo muito além da abrangência de tais ocupações genuinamente autônomas e
avança sobre o terreno dos contratos de trabalho. Dados do TST noticiam um
aumento de 57% no número de processos abertos com o objetivo de reconhecimento
de vínculo empregatício entre 2023 (181.561) e 2024 (285.055 processos); esses
números vêm crescendo historicamente: em 2018 havia 150.500 casos.
É certo
que antes de se aventar a legalidade da pejotização muitos empregadores sempre
buscaram retirar os direitos dos trabalhadores negando-se a registrar o vínculo
de emprego em carteira profissional; porém, aí se está mais claramente no
domínio da fraude e a Justiça do Trabalho pode cumprir seu papel. A
pejotização, diferentemente, pretende tornar a fraude permitida: contratar
trabalho subordinado, pessoal e não eventual como se fosse um trabalho por
conta própria.
Pode-se
afirmar com bastante razoabilidade que a pejotização não é um fenômeno que
decorre do processo produtivo: é algo que se passa na esfera da contratação com
a finalidade precípua de reduzir direitos dos trabalhadores e tributos
destinados ao sistema de proteção social. É o que acontece, por exemplo, quando
escolas e universidades convertem seus professores em pessoas jurídicas.
Os
defensores da retração ou do fim da legislação trabalhista sempre falaram em
novas formas de organização produtiva que não caberiam na dita rigidez do
contrato de emprego celetista. Aludem à disseminação do trabalho por
plataformas digitais ou aplicativos como o maior exemplo dessa suposta
realidade que traria consigo inexoravelmente a pejotização.
No
entanto, as plataformas digitais de trabalho constituem um sistema propriamente
industrial de produção de serviços, geridos digitalmente por algoritmos que
fazem as vezes do empregador ou da maquinaria das fábricas.
Os
serviços que antes eram prestados por pequenos proprietários atomizados passam
a ser feitos de maneira unificada pela plataforma digital, que define o valor
do produto entregue ao cliente, a remuneração do trabalhador, as regras e
procedimentos de prestação do serviço, ritmos, metas, incentivos e
desincentivos, penalidades e até a exclusão do trabalhador do sistema; as
plataformas digitais controlam o processo e se apropriam do lucro produzido;
representam um desenvolvimento típico do capitalismo, no sentido da
concentração e centralização de capital em poucas e enormes empresas, capazes
de investir pesadamente em tecnologia e automação do trabalho.
Nessas
condições, é plenamente possível inserir na relação de trabalho por plataforma
os direitos e obrigações da relação de emprego. Na audiência pública no STF foi
lembrada a diretiva da União Europeia n. 2.831/2024, que orienta os
Estados-membros a adotarem a “presunção legal de relação de emprego” para as
pessoas que se ativem “em trabalhos por plataforma digitais”.
É
justamente essa presunção de que há vínculo empregatício que está em xeque no
Tema n. 1.389, que vai discutir o ônus da prova de eventual fraude ao contrato
de emprego e o foro competente. O STF, ou melhor uma maioria de seis ministros,
pode definir que é ônus do trabalhador provar a existência de fraude na sua
contratação como pessoa jurídica e que isso deverá ser feito não perante a
Justiça do Trabalho, mas a Justiça Comum.
O
objetivo que está contido ocultamente nessa mudança de foro competente é
deslocar o tipo de análise: pretende-se que a questão a ser discutida
restrinja-se aos pressupostos formais gerais de validade de qualquer contrato,
como a licitude do objeto e a inexistência de vícios de vontade.
É
dizer, pretende-se que baste perguntar se o trabalhador concordou com a sua
contratação como pessoa jurídica, se assinou o contrato sem vício de
consentimento ou se aderiu aos termos da plataforma digital, para afastar a
incidência dos direitos e obrigações da legislação social e tributária. É o
sonho de retorno aos primórdios do capitalismo.
Contra
isso mais de 640 especialistas internacionais se posicionaram em carta dirigida
ao STF: “[…]. O que o Supremo tem decidido, […], é que, uma vez assinado um
contrato civil, os fatos não importam mais: isso contorna a jurisdição da
Justiça do Trabalho para levar em conta a realidade dos fatos e, assim,
restringe-a a limitar seu julgamento ao contrato civil formal. Portanto, em
última análise, a tese não afetará apenas os trabalhadores de plataformas
digitais, mas se aplicará a praticamente qualquer trabalhador.”.
Isso
nos conduz ao cerne da questão, tratada praticamente em todas as exposições
contrárias à pejotização. O direito social nasce precisamente da
descaracterização do contrato civil quando o objeto é o trabalho pessoal; nasce
do reconhecimento jurídico da superioridade real do proprietário dos meios de
produção em relação ao trabalhador, proprietário somente de sua força de
trabalho, para estabelecer a superioridade jurídica do trabalhador em direitos
e deveres na relação de emprego.
Decidir
que é lícita a pejotização é tentar fazer a história andar para trás. A
licitude da pejotização significa a morte tendencial do contrato de emprego,
que se tornará juridicamente opcional; individualmente, no entanto, o
trabalhador não está em condições de optar.
E a
história andará para trás não somente no resultado institucional a que se
chegou, o contrato de trabalho, a legislação social e o ramo judiciário
especializado para forçar a sua aplicação: também o processo histórico de
organização e luta sindical que contribuiu em maior medida para esse resultado
terá de ser reiniciado para os convertidos em “PJs”, excluídos que estão da
base legal de representação dos sindicatos e de sua experiência organizativa. A
classe trabalhadora terá de recomeçar quase que do início o caminho que
trilhara ao longo de um século; greve após greve, luta após luta, argumento
após argumento.
Outra
ordem importante de argumentos que apareceram na audiência pública veio dos
representantes do Fisco e da Previdência Social, que chamaram a atenção para o
fato de que a base do financiamento do sistema é a folha de salários: os
empregados contribuem com 7,5 a 14% do salário, limitado ao teto de benefícios
da Previdência Social (hoje em R$ 8.157,41), e os empregadores contribuem com
20% incidentes sobre o total da folha, sem qualquer limitação (mais 1, 2 ou 3%
de acordo com o tipo de atividade empresarial e ambiente de trabalho).
A
pessoa jurídica do trabalhador individual, a Microempreendedor Individual
(MEI), é uma política altamente subsidiada: a alíquota de contribuição
previdenciária é de apenas 5% sobre o salário-mínimo (atualmente em R$
1.518,00). Hoje, 73% do financiamento da Previdência Social vêm de patrões e
empregados (R$ 470 bilhões anuais).
O
Diretor do Departamento do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) projeta
que se apenas 10% dos empregados forem convertidos em PJs perder-se-á cerca de
R$ 47 bilhões anuais. Essa mudança já vem ocorrendo e corroendo as contas da
Previdência Social. De acordo com o estudo de Rogério N. Constanzi, o número de
trabalhadores MEI era de 44 mil em 2009 e chegou a 16,2 milhões em julho de
2025, causando uma perda arrecadatória, em comparação com o vínculo
empregatício, de aproximadamente R$ 974 bilhões.
E tudo
isso na véspera da virada demográfica que o Brasil está prestes a fazer: a
partir de 2032 a população economicamente terá deixado de crescer e passará a
diminuir ano a ano. A necessidade de financiamento da Previdência Social, que
hoje é de R$ 300 bilhões/ano, será, em 2065, de R$ 900/ano. Generalizar a
pejotização solapa as bases de financiamento do sistema de Seguridade Social. É
a preparação de uma crise futura, com mais pressões sobre as contas públicas e
por reduções de direitos.
Diante
desse cenário, cuja obviedade é soterrada pelo palavreado da “liberdade
econômica” e da “modernidade”, surge a justa dúvida: não estaria o STF indo
longe demais? Não parece razoável que uma destruição dessa magnitude advenha de
uma Corte cujo papel institucional é justamente conservar a Constituição e suas
instituições; sabe-se que o STF vem retirando direitos aos poucos, mas retaliar
e debilitar é diferente de arrancar os direitos sociais pela raiz.
Certamente.
Tanto que já grassa nos bastidores a expectativa pela “modulação” dos efeitos –
uma licença política que o Tribunal possui para determinar o alcance temporal e
material de suas decisões e que lhe dá poderes para na prática legislar com
força constitucional. Especula-se que a Corte fixe uma linha de corte por faixa
remuneratória: acima de determinado nível de remuneração, tem-se uma pessoa que
não precisaria da proteção dos direitos sociais.
Esse
tipo de acochambro, no entanto, além de tergiversar em relação a questões de
princípio, só joga para frente o problema, pois o Estado de Bem-Estar Social
repousa, finalmente, sobre determinado equilíbrio na relação capital-trabalho e
na solidariedade no custeio das políticas públicas de Seguridade Social.
O único
caminho para a defesa da Constituição de 1988, missão institucional do STF, é
debelar o que se pretende no Tema 1.389 e manter a inescapável ilicitude da
pejotização, a presunção de vínculo empregatício onde haja trabalho pessoal e
não eventual, e a competência da Justiça do Trabalho para a verificação dos
fatos e descaracterização das fraudes.
Fonte:
Por Thiago Barison, em A Terra é Redonda

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