A
internet é humana, demasiadamente humana
A
internet logo terá mais conteúdo de robô que de pessoas. O colunista da Folha
de S. Paulo Ronaldo Lemos deu essa informação não faz muito tempo. Agora, ele
voltou com o assunto (Folha, 27/10/2025): a internet não é mais humana. Em 2025
mais de 53% dos textos da internet foram produzidos por Inteligência
artificial, e os vídeos e áudios seguem a mesma tendência.
Ele
conta que também o modelo de negócios das plataformas mudou. Como sempre, o que
se quer é mais tempo de atenção dos usuários, todavia, a novidade é que a
Inteligência artificial entrou para valer como a principal arma das plataformas
para se conseguir o engajamento. Ela está se passando por “namorada”,
“terapeuta”, “amigo” etc. Busca as necessidades afetivas humanas e dobra todas
as pessoas pelas suas carências, uma vez que o mundo segue atomizado, com mais
gente solitária.
As
conclusões que Ronaldo Lemos tira disso é que a Inteligência artificial vai
tornar as pessoas condicionadas pela máquina, uma vez que irá se aperfeiçoando
em conseguir responder aos padrões de carência humana. Ele até disse que irá
jantar com Emmanuel Macron e, então, avisará o mandatário francês disso tudo!
Ele disse que é necessária uma “Revolução Francesa” na internet.
Essa
narrativa de Ronaldo Lemos sobre a internet e Inteligência artificial surfa no
senso comum. Qualquer pessoa pode dizer isso que ele disse. Mas, que tal
olharmos procurando mais complexidade? Acho que vale o exercício.
Primeiro:
a relação homem-máquina na infosfera na qual habita a Inteligência artificial
não é de justaposição ou de condicionamento. A relação é de agenciamento. Não o
maquinal, mas o maquínico agencia os humanos. A subjetividade de nossos tempos
é uma subjetividade maquínica. Isto é, homens e máquinas estão há muito criando
condições de se apresentarem como ciborgues, e a Inteligência artificial é um
passo a mais nesse processo.
Os
algoritmos das máquinas tornam os humanos parte da teia de algoritmos. Nesse
processo, há uma visível semiotização da infosfera. Podemos até dizer: uma
inflação semiótica e uma deflação semântica. Estar na infosfera, já faz tempo,
é funcionar no sentido de colaborar com o fluxo de dinheiro, linguagem e
trabalho. E esse fluxo não pede hermenêutica, não solicita interpretação,
apenas diz: empurre o fluxo, faça a onda continuar.
Então,
aqui, o conceito não é o de relação homem-máquina, nem o do homem que vira
maquinal, mas o de nascimento de nova subjetividade. Em determinados momentos
isso porá todos nós alheios aos seus corpos, e em outros momentos isso acabará
exigindo a volta dos corpos à cena.
Lula e
Donald Trump poderiam ter se encontrado em vídeo conferência, trocando
mensagens etc. Não! Só foi válido para todos no mundo o encontro dito pessoal,
corpo a corpo. No passado, valeria a troca de mensagens, justamente hoje em
dia, isso não vale! O cheiro que está no ar, quando isso ocorre, é que em
algumas instâncias a semiotização parece precisar ser contida para que o que se
apresenta tenha legitimidade.
Segundo:
a dependência das pessoas fragilizadas, ou apenas pessoas que querem se
divertir, que deverão buscar ajuda para dramas emocionais na Inteligência
artificial, pode ser barrada por um movimento da própria Inteligência
artificial. Como ela está a serviço do capital, sendo ela própria um elemento
deste, ela busca o crescimento infinito e também em alta velocidade.
O
capital quer tempo zero em tudo, a internet e a Inteligência artificial o
acompanham. Se a Inteligência artificial fosse mostrando seus serviços em um
tempo não tão veloz, isto é, num tempo condizente com o tempo humano, ela
poderia ser mais influente. Todavia, tentando conquistar tudo em velocidade
desenfreada, ela expõe sua fraqueza.
Sua
semântica é criada por probabilidade, e se torna rapidamente repetitiva e
enfadonha. Pode ser consultada durante um período, mas seus resultados de
aconselhamento podem não funcionar e, mais ainda, gerar uma busca por situações
reais, por sugestões que venham da criatividade que só pode surgir no diálogo
de corpos presentes.
Muita
gente consultava e até consulta os horóscopos de jornais, mas isso sempre
alterou pouco suas decisões. As decisões do mundo moderno são tomadas pelo
limite do cartão de crédito. A vida material se impõe. Quando a vida material
se impõe, até aqueles que nunca quiseram interpretar, buscam se inteirar das
velhas hermenêuticas.
Em
nenhuma das duas objeções que coloco para a narrativa de Ronaldo Lemos eu estou
advogando que o mundo futuro é um campo de amor, compreensão e inteligência. Só
estou dizendo que os conceitos envolvidos com a infosfera não precisam ser
simplificados como Ronaldo Lemos fez.
O que
ele escreveu aposta em uma história linear que, cá entre nós, não vimos ocorrer
em lugar algum. Creio que uma concepção de história com mais zigue-zague talvez
seja mais útil. Fornece narrativas que me parecem melhores sobre o que estamos
vivendo.
Fonte:
Por Paulo Ghiraldelli, em A Terra é Redonda

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