Encontro
entre Lula e Trump: muitas pedras no meio do caminho
O
encontro com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não consta da
agenda oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desembarcou na
sexta-feira em Kuala Lumpur, na Malásia, para participar, na condição de
convidado, da reunião de cúpula da Associação das Nações do Sudeste Asiático.
Também não foi mencionado entre os compromissos oficiais agendados pela Casa
Branca — mas o próprio presidente Trump admitiu, a bordo do Air Force One,
enquanto voava para Kuala Lumpur, que o encontro deve acontecer neste domingo.
Trump desembarcou na Malásia no sábado como o astro principal da reunião dos
líderes de um grupo de países que, ao lado da Índia, estão entre as economias
que mais crescem na atualidade.
A
trajetória dos países do Sudeste Asiático nos últimos anos explica o interesse
de Lula, de Trump e de outros chefes de Estado pela reunião que acontece neste
final de semana. Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Singapura,
Tailândia e Vietnam, além de Brunei, Mianmar e Timor Leste — recentemente
incorporado ao bloco — contam com uma população somada de 680 milhões de
pessoas e têm em comum o fato de terem superado as dificuldades extremas em que
viviam há duas ou três décadas.
Se
continuarem no caminho pelo qual vêm conduzindo suas economias, como tudo
indica que continuarão, e, sobretudo, se mantiverem o respeito que vêm
demonstrando pelo equilíbrio fiscal, logo estarão numa situação parecida com a
da Coreia do Sul. Para quem não se recorda, a Coreia do Sul era um país
miserável até meados dos anos 1980. Tomou decisões que precisava tomar e, em
cerca de 40 anos, se transformou em uma economia rica, próspera e capaz de
proporcionar oportunidades e bem-estar a seus cidadãos.
Os
países do Sudeste Asiático — que isso sirva de lição ao Brasil — têm em comum o
fato de terem tomado decisões que, uns mais e outros menos, abriram as portas
para um ciclo vigoroso de desenvolvimento. De um modo geral, apostaram na
industrialização e em relações comerciais desimpedidas com os países
desenvolvidos como mola propulsora de seu desenvolvimento. Isso fez com que, ao
longo deste século, deixassem a condição de peões secundários para se
transformar em peças estratégicas no tabuleiro geoeconômico global.
A
inflação da Malásia é inferior a 1,5% ao ano e a atual taxa de crescimento, de
robustos 5,1%. Nas Filipinas, a inflação anual é de 1,3% e o crescimento, de
5,5%. A Indonésia registra uma inflação de 2,5% ao ano e um crescimento de 5%.
O Vietnam tem uma inflação mais elevada do que a de seus vizinhos: 3,38% em um
ano. Em compensação, cresceu 8,3% no ano passado. Os demais países da região
seguem trajetórias parecidas. Apenas para efeito de comparação, o Brasil tem
uma inflação de 5,17% ao ano (bem acima do teto da meta definida pelo Conselho
Monetário Nacional, que é de 4,5%) e deverá crescer, na melhor das hipóteses,
2,11% em 2025, conforme o Boletim Focus do Banco Central.
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PRODUTOS
SOFISTICADOS
Esses
números sugerem que uma aproximação com esse grupo de países pode gerar
benefícios para o Brasil. Aprender com eles, então, geraria benefícios ainda
maiores. Os países do Sudeste Asiático são destinos possíveis para parte das
mercadorias brasileiras que deixaram de ser exportadas para os Estados Unidos
desde o tarifaço de 50% imposto por Trump, em agosto passado. Mas isso não
resolve o problema. Por mais promissoras que sejam, essas economias precisam
evoluir muito até reunirem as condições necessárias para absorver os produtos
mais sofisticados e de maior valor agregado da pauta de exportações brasileira
— que, antes do tarifaço, eram vendidos para o gigante norte-americano.
O
resumo da história é o seguinte: a ampliação do comércio com os novos ricos do
mundo é desejável e pode até compensar, em parte, a redução da entrada de
dólares causada pela queda das exportações para os Estados Unidos. Mas não
supre uma lacuna aberta pela interrupção das vendas de um grupo especial de
mercadorias que o mercado americano, e apenas ele, tem condições de importar
neste momento.
As
tarifas de 50% praticamente inviabilizaram as exportações de máquinas e
equipamentos agrícolas para os Estados Unidos. O mesmo vale para máquinas
industriais, autopeças, transformadores elétricos, móveis e madeira processada
e outros da pauta nacional de exportações que são mais nobres do que os
alimentos in natura. A restrição à entrada desses produtos no mercado americano
pode gerar não apenas prejuízos para os fabricantes desses equipamentos, mas
para todo o ecossistema de fornecedores e trabalhadores que se organizou em
torno deles.
Caso o
contencioso com os Estados Unidos se prolongue, isso pode custar, por exemplo,
um corte irrecuperável de empregos bem qualificados e bem remunerados, além de
representar um retrocesso no que existe de mais moderno e dinâmico na indústria
nacional. E gerar uma reação em cadeia que, no final das contas, fará do Brasil
um lugar pouco confiável aos olhos dos investidores internacionais.
Para
alguns analistas, esse fenômeno de consequências desagradáveis já começou.
Prova disso é o resultado das Contas Externas do país, que atingiu um déficit
de US$ 9,8 bilhões em setembro — o pior resultado desde 1995. Isso se deve não
só à redução do superávit comercial, mas, também, ao aumento da remessa de
recursos para o exterior. O déficit nas transações correntes acumulado nos
últimos 12 meses é de US$ 78,9 bilhões.
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Não há,
pelo menos por enquanto, razão para desespero. Mas esse número indica que o
governo precisa rever algumas de suas posturas em matéria de política externa e
mesmo de sua política fiscal caso pretenda reverter esse quadro. O aumento da
remessa de recursos para o exterior verificado em setembro coincide com o
anúncio da decisão do governo de taxar os lucros e dividendos que as empresas
que acreditaram e investiram no Brasil mandam para suas matrizes.
RÚPIAS
INDONÉSIAS
Embora
o encontro entre Lula e Trump na Malásia, a essa altura do campeonato, já possa
ser dado como certo, é conveniente ir devagar com o andor das relações entre o
Brasil e os Estados Unidos porque o santo sobre ele é frágil e pode se quebrar
ao menor solavanco. O momento exige um mínimo de continência verbal e as
declarações feitas pelo presidente Lula em Jacarta, na Indonésia, em seu
caminho para Kuala Lumpur, não contribuíram em nada para facilitar o
entendimento.
Ao lado
do presidente da Indonésia, Probowo Subianto, Lula falou sobre a possibilidade
de os dois países utilizarem suas próprias moedas em seu comércio bilateral. A
bem da verdade, e em defesa de Lula, é bom registrar que, desta vez, o
presidente não defendeu, como fez em ocasiões anteriores, a criação de uma
moeda alternativa ao dólar para as transações internacionais. Apenas falou da
"possibilidade" de Brasil e Indonésia utilizarem as próprias moedas
em suas transações comerciais.
Tudo
bem! Resta saber, no entanto, se os frigoríficos brasileiros que exportam carne
para o país asiático aceitarão fechar negócio em Rúpias Indonésias, a moeda
local, ou se continuarão preferindo receber em dólares. E, na mesma medida, se
os exportadores de tecidos e de outros produtos indonésios comprados pelo
Brasil aceitarão o volátil Real em pagamento por suas mercadorias.
O fato
é que, por mais despretensiosa que tenha sido a declaração do presidente, não
havia a menor necessidade de se tocar nesse assunto justamente às vésperas de
um possível encontro com Trump. O que o Brasil ganhou com essa declaração?
Nada. Absolutamente, nada! O que o Brasil perdeu? A princípio, também nada. Mas
esse é o tipo de ideia que, num momento em que há necessidade de desanuviar o
ambiente, pode significar, no final das contas, um item a mais na extensa lista
de tensões que se acumulam entre os dois países.
TRIÂNGULO
DOURADO
Outro
assunto abordado por Lula tem o poder de prejudicar ainda mais o entendimento
com os Estados Unidos. Ao comentar, numa entrevista que concedeu na
sexta-feira, as ações da marinha americana contra o tráfico de drogas e as
mortes de traficantes que navegam pelo mar do Caribe levando cocaína da
Venezuela e da Colômbia para os Estados Unidos, o presidente brasileiro deu uma
declaração que, de modo algum, facilita o diálogo. "Os usuários são
responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também",
disse Lula.
O
próprio presidente reconheceu, horas depois, que a frase havia sido "mal
colocada". Ele, certamente, pretendia se referir à tese controversa,
sempre defendida pela esquerda sul-americana, de que o tráfico de drogas só
assumiu a dimensão monstruosa que assumiu porque a norte do Rio Grande, que faz
a fronteira do México com os Estados Unidos, há milhões e milhões e milhões de
usuários dispostos a pagar caro, e em dólares, pelo pó branco que inalam.
Não se
trata de discutir o que o presidente quis dizer com as palavras que ele
proferiu. A questão é: será que ele precisava ter tocado nesse assunto? A
resposta é: claro que não. A intenção, certamente, era criticar a ação enérgica
dos Estados Unidos contra os traficantes venezuelanos e colombianos, que agem
com desenvoltura sob o olhar benevolente dos governos de seus países. Mas, ao
dizer o que disse, causou constrangimento no país anfitrião. A Indonésia, assim
como seus vizinhos, conta com uma legislação antidrogas especialmente
inflexível. E seu rigor já pôs diante do pelotão de fuzilamento pelo menos dois
brasileiros flagrados na tentativa de entrar com cocaína no país.
Em
2015, o governo de Jacarta ignorou os pedidos de clemência feitos pelo
Itamaraty — que, na época, estava sob comando do mesmo Mauro Vieira que comanda
a instituição atualmente. E mandou executar os brasileiros Marcos Archer
Cardoso Moreira e Rodrigo Muxfeldt Gulart. Em tempo: o rigor da legislação
antidrogas no Sudeste Asiático se explica pelo estrago que o consumo causou em
suas populações e pelo poder que os cartéis do crime organizado adquiriram na
região.
O
chamado "Triângulo Dourado", formado por Tailândia, Laos e Mianmar, é
um centro importante de produção de metanfetamina e os governos locais não
medem esforços para combater as facções que exploram essa atividade ilegal.
Talvez por falha do Itamaraty, que não o alertou sobre o desconforto que esse
tema causa no Sudeste Asiático, Lula falou o que falou e, com certeza, gerou
desconforto entre os governos locais.
PROVOCAÇÕES
RECÍPROCAS
A
expectativa, de qualquer forma, é a de que a conversa entre os dois presidentes
aconteça neste domingo, a despeito de declarações como essa e das provocações
que Lula não deixou de fazer nas últimas semanas. Os auxiliares de Trump, por
sua vez, também não se contiveram e, nos últimos dias, não mediram críticas à
política interna e à situação dos direitos humanos no Brasil.
Sendo
assim, e já que não se pode contar com o fim das provocações recíprocas, a
expectativa é a de que nem o presidente do Brasil nem o presidente dos Estados
Unidos levem em conta os exageros verbais de um lado e de outro e não usem
essas declarações como desculpa para interromper o diálogo recém-retomado sobre
as tarifas de 50%. Ainda que não voltem — pelo menos enquanto Lula e Trump
forem presidentes — a ser os dois aliados cordiais que foram na maior parte dos
últimos duzentos anos, que pelo menos trabalhem para remover os obstáculos que,
de um lado e do outro, têm prejudicado o fluxo comercial entre eles. .
Pelas
divergências que os dois governos acumularam ao longo desses dez meses de
governo Trump, a missão de reaproximá-los é difícil, mas não é impossível. O
diálogo entre os dois países, depois de uma retomada que parecia promissora,
parece ter perdido o fôlego nos dias seguintes ao encontro entre o chanceler
Mauro Vieira e o secretário de Estado Marco Rubio na semana retrasada, em
Washington. Houve até quem interpretasse o silêncio que se seguiu àquela
reunião como um sinal de que as conversas tinham voltado à estaca zero. A
verdade, porém, não é essa.
Diplomacia
é assim mesmo. As principais discussões diplomáticas, sobretudo as mais tensas
e delicadas, não ficam a cargo dos chefes de Estado. Elas são conduzidas longe
dos holofotes, por negociadores experientes que investem horas, às vezes dias,
para discutir os menores detalhes de um acordo. E vão subindo degraus na
hierarquia depois que os problemas mais técnicos vão sendo deixados para trás.
Portanto,
mesmo que Lula e Trump fiquem frente a frente, posem para fotos, apertem as
mãos, troquem abraços e reafirmem a química que teria se manifestado entre eles
desde o primeiro e brevíssimo encontro que tiveram, em setembro passado, na
Assembleia Geral das Nações Unidas, qualquer diálogo que venham a manter em
Kuala Lumpur terá caráter meramente simbólico. Nada que que aconteça ali
significará que tudo já está resolvido, que o entendimento entre o Brasil e os
Estados Unidos está indo às mil maravilhas e que as tarifas serão reduzidas num
piscar de olhos.
A
recíproca é absolutamente verdadeira. Se o encontro não acontecer, não
significará que os canais de negociações tenham sido fechados. As conversas
entre os dois países prosseguem e prosseguirão ainda que Lula e Trump não
considerem conveniente aparecerem juntos desta vez. Isso mesmo. Quando se trata
de diplomacia, às vezes a decisão de não aparecerem na mesma foto é mais
positiva do um encontro festivo que termine sem nada de concreto para anunciar.
É preciso calibrar as expectativas. A propósito: a pauta de negociações entre
os dois países é tão pesada e a lista de divergências é tão extensa que alguns
diplomatas de peso dentro do próprio Itamaraty acreditam que esse encontro, se
acontecer, gerará mais expectativas do que resultados.
Há
muitas condicionantes sobre a mesa e, sem que elas sejam esclarecidas, as
tensões persistirão e a economia brasileira continuará pagando por isso.
Fonte:
Por Nuno Vasconcellos, em O Dia

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