Cian
Barbosa: Rio de Janeiro entre plataformas digitais e palanques de sangue
Quando
falamos de tecnologia, nosso pensamento é frequentemente condicionado a um
imaginário determinado por metais escovados, luzes neon e referências
cinematográficas que remetem a objetos high-tech. Isso de fato representa parte
do que efetivamente constitui o horizonte tecnológico, mas frequentemente acaba
descolando a própria tecnologia de sua constituição e existência histórica e
socialmente determinada. Frequentemente é preciso relembrar que as tecnologias
carregam e expressam, em sua própria forma, a dinâmica da sociedade de classes,
servindo à reprodução de sua estrutura e sendo eixo central da dinâmica que
enquadra na tela da ideologia nossa própria relação com a realidade.
Um
termo que vem sendo muito utilizado para apreender o uso dessas tecnologias nas
dinâmicas de disputa política é a noção, muitas vezes vaga, de narrativa. As
narrativas seriam constantemente produzidas e disputadas nas mídias digitais,
ambientes que teriam supostamente democratizado a circulação de opiniões uma
vez descentralizado o domínio das mídias tradicionais hegemônicas. Setores
progressistas deveriam então, nessa perspectiva, se organizar para disputar nas
plataformas a efetividade narrativa – que, por sua vez, pode ser analisada por
métricas de dados e devidamente avaliado pelas perspectivas de gestão que são
tão caras à pós-política do progressismo (neo)liberalizado.
Obviamente,
tomar a efetividade das redes como um fim em si mesmo não faz parte de qualquer
política verdadeiramente à esquerda, mas isso não significa simplesmente
debandar e ignorar a existência dessas infraestruturas digitais que constituem
parte inescapável da sociabilidade contemporânea. Ao menos nos últimos 15 anos
e, mais especificamente, após as jornadas de junho de 2013, seguidas pela
ascensão de uma extrema-direita antes latente, perspectivas críticas retomaram
análises sobre a técnica, atualizando-as à lógica digital dos monopólios que
passaram a dominar a esfera digital globalizada nesse começo de milênio.
Com o
passar dos anos tornou-se cada vez mais evidente qual o tipo de narrativa é
favorecida pela própria arquitetura das principais mídias digitais: conteúdos
apelativos, simplistas, maniqueísmos, falsificações, hiper-estímulos… Tudo isso
obviamente cria as condições objetivas ideais para se fomentar uma
subjetividade solipsista, potencialmente fascistizável, em espaços de monopólio
midiático extremamente tendenciosos, onde a naturalização da extrema-direita
parece mascarada por uma suposta neutralidade técnica que, na verdade, é
artificialmente produzida, agora pela supressão e curadoria automatizada de
conteúdos por algoritmos opacos que servem fundamentalmente aos fins políticos
e econômicos de seus proprietários e aliados.
Essa
dimensão é obviamente explorada, de forma sistemática, pela extrema-direita
internacional, e no caso brasileiro não seria diferente. Ações coordenadas já
se empilham, criando atmosferas ideológicas específicas para massas de usuários
que são conduzidos por uma “narrativa” programática, onde a campanha eleitoral
verte-se em marcha digital ininterrupta pela “disputa de corações e mentes”,
onde o apelo ao medo, vertido em pânico moral, junto à produção de inimigos
fantasmáticos através de enquadramentos enviesados da realidade ou pura e
simples falsificação dão a tônica do cotidiano de avenidas, becos e vielas
on-line, que passam a determinar a forma como a vida off-line é apreendida.
Um
exemplo disso pode ser visivelmente atestado ao conferirmos certos espaços
digitais que servem ao ambiente ideológico programado pela extrema-direita,
logo após as operações policiais encampadas na cidade do Rio de Janeiro pela
polícia militar e civil, a mando do governador do Estado, Cláudio Castro, na
última terça-feira (28). Um verdadeiro exército informacional é posto em campo,
através de páginas que reproduzem a lógica do chamado “populismo penal” – já
promovido pelos monopólios tradicionais de mídia, em programas como Cidade
Alerta e afins –, porém agora extrapolada às últimas consequências, valendo-se
da falta de regulamentação das redes para promover não só informações falsas,
mas imagens sensacionalistas, conteúdos explícitos sem nenhuma moderação,
podendo assim instaurar um verdadeiro pânico através das redes.
Páginas
com centenas de milhares de seguidores e conteúdos direcionados ao estado do
Rio, assim como regiões, cidades e bairros específicos, entraram em um
verdadeiro comportamento coordenado, veiculando imagens articuladas a um
discurso específico, onde a ironia aos direitos humanos – já conhecido na
extrema-direita como “defesa de bandido” – atualizou-se em uma verdadeira
campanha (nem tão) velada para Cláudio Castro, com ataques ao governo federal
(e algumas também, ironicamente, ao prefeito Eduardo Paes, além de saudosas da
gestão Crivella) onde o próprio termo “vítima” torna-se chacota e a execução
sumária por parte de agentes do Estado é celebrada sem o menor pudor por um
público evidentemente fascistizado e entregue ao gozo pelo gore, que move uma base
política ensinada a relacionar violência e descaso com pautas minimamente
progressistas.
O assim
chamado campo democrático, já imerso em uma gramática limitada que o cerca no
horizonte simbólico de um progressismo liberal difuso, encontra-se por vezes
perdido, por outras desesperado – o que se revela na tentativa ridícula de
alguns quadros em simular a performance direitista, com a esperança ilusória de
que alguns poucos conteúdos de esquerda imiscuídos nessa tentativa possam
diferenciá-los radicalmente na forma. O pior, nessa tentativa, é a potencial
naturalização de uma espécie de nacional-bolchevismo reeditado à realidade
contemporânea que funciona como um neo-fascismo (mal) camuflado de esquerda.
Nesse
festival de horrores, a efetividade desse tipo de operação policial se revela:
não só a organização de um palanque eleitoral para o governador do Estado feito
de corpos empilhados e fuzis apreendidos, banhados em sangue, como suposta
evidência de efetividade das incursões policiais – algo celebrado pelo
oligopólio midiático tradicional da burguesia brasileira –, mas a
intensificação de uma violência atmosférica, para usarmos o termo de Fanon,
necessária à vida nacional de um país fundado pelo colonialismo, onde a lógica
militarizada do Estado é a constante relação paranóica com um inimigo interno
que precisa ser sempre produzido e reafirmado. Inimigo que obviamente será
encarnado por determinações geográficas, raciais e classistas, mascaradas pela
ideologia – e, por quê não, narrativa? – da guerra às drogas.
Dentre
tantas coisas, a efetividade da atual infraestrutura digital para imprimir
determinada relação com a realidade social através da informação, é a sua atual
condição, impregnada 24 horas, 7 dias por semana com o usuário, que em grande
medida praticamente já não experimenta uma vida off-line. Soma-se a isso o que
poderíamos chamar de modulação algorítmica dos afetos e das identificações,
servindo muito bem à segmentação que interessa ao programa da extrema-direita
internacional, fisiologicamente integrada ao monopólio das Big Techs. Os
setores pretensamente democráticos e progressistas deveriam pressionar por uma
regulamentação das redes que seja rígida, especialmente contra a permissividade
de plataformas midiáticas internacionais à páginas e conteúdos fascistizantes,
voltados à naturalização e promoção da violência de Estado.
Sabemos
que esse cenário não parece ser o provável, mas seria uma displicência
ignorarmos a necessidade e urgência de colocarmos esse ponto em debate. Setores
progressistas que fizeram sua campanha eleitoral alertando sobre o fascismo e
prometendo um combate ao bolsonarismo deveriam se preocupar não apenas em
viralizar o próprio conteúdo nas redes, mas apresentar medidas efetivas de
combate que devem atacar as próprias condições que tornaram possível sua
realização.
• Chacina no Rio: “Alguém se sente mais
seguro agora?” Por Mateus Muradas
A
polícia do estado do Rio de Janeiro, comandada por Cláudio Castro, o resto do
bolsonarismo, atacou um território onde moram 300 mil pessoas, o Complexo do
Alemão e da Penha. Uma fila de corpos foi estendida no chão do bairro,
mostrando 64 pessoas assassinadas, enquanto o governador comemorava em rede
nacional o maior massacre da história do Rio. E a pergunta que ecoa em todos os
cantos, feita por uma das lideranças do bairro, Raul Santiago, foi: “você se
sente mais seguro?”
Isso é
simplesmente asqueroso! Trata-se de mais uma operação eleitoreira que declara
guerra contra territórios periféricos. O que aconteceu ali não é segurança
pública, é massacre de pobres!
Senhoras
infartando, moradores apavorados, famílias de moradores e policiais mortos
simplesmente destroçadas, a partir de uma ordem de um governador facínora, que
comemora e vibra em rede de televisão este ato vergonhoso, após executar o
comando deste morticínio. Crianças apavoradas ao ir para a escola,
trabalhadores mais uma vez colocados de cabeça baixa, mais uma vez sentindo que
talvez ele seja o problema, fato de ser pobre e morar ali, seria um ato
criminoso. Isso é inadmissível!
E o
crime, o Comando Vermelho? Não sofreu um arranhão! Assassinaram essas dezenas
de jovens, cooptadas para o varejo das drogas… Mas a logística do tráfico que
escoa toneladas de cocaína pelo Porto do Rio rumo à Europa e Estados Unidos, o
tráfico de armas e fuzis, estes continuam intactos, as redes de lavagem de
dinheiro, os políticos bancados por este dinheiro sujo, tudo isso não sofreu um
arranhão.
As
favelas não refinam cocaína, não fabricam armas e nem lavam o dinheiro do
tráfico. O que fez o crime ser abalado foi quando a Polícia Federal chegou à
Faria Lima, nos fundos de investimento que faltam dinheiro sujo, nas redes de
postos de gasolina e até usinas de etanol. Isso sim, fez o crime tremer, porque
mexeu no bolso. As mortes desses jovens são calculadas pelos barões do tráfico,
fazem parte do negócio e do lucro. Não é diferente para este resto de
bolsonarismo, que ainda domina o Rio, e comemora nas redes… Calculam a morte de
pobres e os possíveis ganhos eleitorais… Estes estão do mesmo lado, o lado da
Morte!
Ali não
morreram apenas policiais e o Varejo das Drogas, ali morreu toda uma sociedade.
Uma sociedade que não chega nas favelas e nas quebradas do país, para oferecer
outras políticas públicas, outra alternativa de mundo, para este morador da
favela, e que inviabilize de uma vez por todas o varejo das drogas. Não é
aceitável que o Estado só chegue com a brutalidade e a força letal das polícias
em nossos territórios periféricos. Ninguém se sente mais seguro, amanhã já tem
novos recrutas do tráfico, e o lucro do tráfico segue intacto.
Minha
total e sincera solidariedade ao Raul e a todos os moradores do Alemão e da
Penha. Ergam as cabeças, quebrada, nenhum favelado ou sujeito periférico merece
essa humilhação que vocês estão passando. Força quebrada!
• ‘Tráfico está nos grandes poderes do
asfalto’: lideranças jovens de favelas condenam operação mais letal no Rio
Muito
abalados com a chacina ocorrida nesta terça-feira (28), comunicadores populares
moradores de favelas foram às redes sociais manifestar sua indignação com a
presença de um estado que apresenta poucas oportunidades para as comunidades. A
Operação Contenção foi realizada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro para
cumprir mandados de prisão contra o Comando Vermelho (CV), colocou 2.500
agentes policiais nas ruas e levou à morte de 121 pessoas, de acordo com dados
oficiais, um número que sobe a todo momento.
A
diretora do filme recentemente premiado Cheiro de Diesel e comunicadora popular
Gizele Martins condenou as operações nas favelas e questionou o que seria uma
operação de sucesso. “No asfalto as pessoas apoiam que suas casas sejam
invadidas também? Mas sem mortos?Não queremos operações nas favelas! A favela
não é culpada por seu empobrecimento!” e acrescentou que o “O tráfico não está
nas favelas, está nos grandes poderes do asfalto”, escreveu.
As
denúncias trazidas por Martins estão presentes no primeiro relatório produzido
pela ouvidoria da Defensoria Pública do Estado (DPE). A Defensoria recebeu
denúncias de uma provável operação a partir do relato de mães que receberam
comunicados das escolas locais para que não levassem seus filhos para a escola
no dia seguinte.
Entre
os depoimentos coletados durante a operação estão o relato de uma tentativa de
uso da casa de uma moradora para servir de base para a operação, uma manobra
conhecida como troia. “Pelo amor de Deus, estou dentro da casa da minha
sobrinha. Eles estão querendo entrar aqui dentro. Estão querendo dar tiro
dentro da casa da minha sobrinha. Nossa, eu não sei, eu já fiquei nervosa, eu
tomo água com açúcar. Eu não sei o que eu faço”. A ouvidora Fabiana Silva
informou ao Brasil de Fato que o órgão segue coletando depoimentos dos
moradores sobre a operação para posterior judicialização.
Presente
na localização de corpos realizada pelos moradores na zona da mata que liga os
Complexos do Alemão e da Penha, Raul Santiago falou da polarização de discursos
nesse momento. Ele comentou a declaração de Cláudio Castro em que afirma que
todos os mortos eram vinculados ao tráfico por estarem em uma zona de mata e
explicou que zona da mata que une o Alemão e a Penha é uma região que funciona
uma pedreira e é espaço de lazer que tem muitas moradias no seu entorno, ainda
assim, questionou a autorização para as mortes. “Essas mortes precisam ser
investigadas porque não há previsão em lei de pena de morte ou execuções no
Brasil”.
Já o
fundador e diretor do Voz das Comunidades, Rene Silva, lembrou que a Operação é
um exemplo da falta de políticas públicas para as favelas ao comentar a entrada
de jovens para o tráfico. “[Esse processo] é fruto dessa falta de política
pública de estado que só entra na favela para matar, para tirar” e lembrou da
Operação ocorrida em novembro de 2010. “Há exatos dez anos estávamos vivendo
esse mesmo momento, com repercussão internacional, e o estado continua agindo
da mesma forma na favela, entregando bala e tiroteios”,
Fonte:
Opera Mundi/Outras Palavras/Brasil de Fato

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