sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Cian Barbosa: Rio de Janeiro entre plataformas digitais e palanques de sangue

Quando falamos de tecnologia, nosso pensamento é frequentemente condicionado a um imaginário determinado por metais escovados, luzes neon e referências cinematográficas que remetem a objetos high-tech. Isso de fato representa parte do que efetivamente constitui o horizonte tecnológico, mas frequentemente acaba descolando a própria tecnologia de sua constituição e existência histórica e socialmente determinada. Frequentemente é preciso relembrar que as tecnologias carregam e expressam, em sua própria forma, a dinâmica da sociedade de classes, servindo à reprodução de sua estrutura e sendo eixo central da dinâmica que enquadra na tela da ideologia nossa própria relação com a realidade.

Um termo que vem sendo muito utilizado para apreender o uso dessas tecnologias nas dinâmicas de disputa política é a noção, muitas vezes vaga, de narrativa. As narrativas seriam constantemente produzidas e disputadas nas mídias digitais, ambientes que teriam supostamente democratizado a circulação de opiniões uma vez descentralizado o domínio das mídias tradicionais hegemônicas. Setores progressistas deveriam então, nessa perspectiva, se organizar para disputar nas plataformas a efetividade narrativa – que, por sua vez, pode ser analisada por métricas de dados e devidamente avaliado pelas perspectivas de gestão que são tão caras à pós-política do progressismo (neo)liberalizado.

Obviamente, tomar a efetividade das redes como um fim em si mesmo não faz parte de qualquer política verdadeiramente à esquerda, mas isso não significa simplesmente debandar e ignorar a existência dessas infraestruturas digitais que constituem parte inescapável da sociabilidade contemporânea. Ao menos nos últimos 15 anos e, mais especificamente, após as jornadas de junho de 2013, seguidas pela ascensão de uma extrema-direita antes latente, perspectivas críticas retomaram análises sobre a técnica, atualizando-as à lógica digital dos monopólios que passaram a dominar a esfera digital globalizada nesse começo de milênio.

Com o passar dos anos tornou-se cada vez mais evidente qual o tipo de narrativa é favorecida pela própria arquitetura das principais mídias digitais: conteúdos apelativos, simplistas, maniqueísmos, falsificações, hiper-estímulos… Tudo isso obviamente cria as condições objetivas ideais para se fomentar uma subjetividade solipsista, potencialmente fascistizável, em espaços de monopólio midiático extremamente tendenciosos, onde a naturalização da extrema-direita parece mascarada por uma suposta neutralidade técnica que, na verdade, é artificialmente produzida, agora pela supressão e curadoria automatizada de conteúdos por algoritmos opacos que servem fundamentalmente aos fins políticos e econômicos de seus proprietários e aliados.

Essa dimensão é obviamente explorada, de forma sistemática, pela extrema-direita internacional, e no caso brasileiro não seria diferente. Ações coordenadas já se empilham, criando atmosferas ideológicas específicas para massas de usuários que são conduzidos por uma “narrativa” programática, onde a campanha eleitoral verte-se em marcha digital ininterrupta pela “disputa de corações e mentes”, onde o apelo ao medo, vertido em pânico moral, junto à produção de inimigos fantasmáticos através de enquadramentos enviesados da realidade ou pura e simples falsificação dão a tônica do cotidiano de avenidas, becos e vielas on-line, que passam a determinar a forma como a vida off-line é apreendida.

Um exemplo disso pode ser visivelmente atestado ao conferirmos certos espaços digitais que servem ao ambiente ideológico programado pela extrema-direita, logo após as operações policiais encampadas na cidade do Rio de Janeiro pela polícia militar e civil, a mando do governador do Estado, Cláudio Castro, na última terça-feira (28). Um verdadeiro exército informacional é posto em campo, através de páginas que reproduzem a lógica do chamado “populismo penal” – já promovido pelos monopólios tradicionais de mídia, em programas como Cidade Alerta e afins –, porém agora extrapolada às últimas consequências, valendo-se da falta de regulamentação das redes para promover não só informações falsas, mas imagens sensacionalistas, conteúdos explícitos sem nenhuma moderação, podendo assim instaurar um verdadeiro pânico através das redes.

Páginas com centenas de milhares de seguidores e conteúdos direcionados ao estado do Rio, assim como regiões, cidades e bairros específicos, entraram em um verdadeiro comportamento coordenado, veiculando imagens articuladas a um discurso específico, onde a ironia aos direitos humanos – já conhecido na extrema-direita como “defesa de bandido” – atualizou-se em uma verdadeira campanha (nem tão) velada para Cláudio Castro, com ataques ao governo federal (e algumas também, ironicamente, ao prefeito Eduardo Paes, além de saudosas da gestão Crivella) onde o próprio termo “vítima” torna-se chacota e a execução sumária por parte de agentes do Estado é celebrada sem o menor pudor por um público evidentemente fascistizado e entregue ao gozo pelo gore, que move uma base política ensinada a relacionar violência e descaso com pautas minimamente progressistas.

O assim chamado campo democrático, já imerso em uma gramática limitada que o cerca no horizonte simbólico de um progressismo liberal difuso, encontra-se por vezes perdido, por outras desesperado – o que se revela na tentativa ridícula de alguns quadros em simular a performance direitista, com a esperança ilusória de que alguns poucos conteúdos de esquerda imiscuídos nessa tentativa possam diferenciá-los radicalmente na forma. O pior, nessa tentativa, é a potencial naturalização de uma espécie de nacional-bolchevismo reeditado à realidade contemporânea que funciona como um neo-fascismo (mal) camuflado de esquerda.

Nesse festival de horrores, a efetividade desse tipo de operação policial se revela: não só a organização de um palanque eleitoral para o governador do Estado feito de corpos empilhados e fuzis apreendidos, banhados em sangue, como suposta evidência de efetividade das incursões policiais – algo celebrado pelo oligopólio midiático tradicional da burguesia brasileira –, mas a intensificação de uma violência atmosférica, para usarmos o termo de Fanon, necessária à vida nacional de um país fundado pelo colonialismo, onde a lógica militarizada do Estado é a constante relação paranóica com um inimigo interno que precisa ser sempre produzido e reafirmado. Inimigo que obviamente será encarnado por determinações geográficas, raciais e classistas, mascaradas pela ideologia – e, por quê não, narrativa? – da guerra às drogas.

Dentre tantas coisas, a efetividade da atual infraestrutura digital para imprimir determinada relação com a realidade social através da informação, é a sua atual condição, impregnada 24 horas, 7 dias por semana com o usuário, que em grande medida praticamente já não experimenta uma vida off-line. Soma-se a isso o que poderíamos chamar de modulação algorítmica dos afetos e das identificações, servindo muito bem à segmentação que interessa ao programa da extrema-direita internacional, fisiologicamente integrada ao monopólio das Big Techs. Os setores pretensamente democráticos e progressistas deveriam pressionar por uma regulamentação das redes que seja rígida, especialmente contra a permissividade de plataformas midiáticas internacionais à páginas e conteúdos fascistizantes, voltados à naturalização e promoção da violência de Estado.

Sabemos que esse cenário não parece ser o provável, mas seria uma displicência ignorarmos a necessidade e urgência de colocarmos esse ponto em debate. Setores progressistas que fizeram sua campanha eleitoral alertando sobre o fascismo e prometendo um combate ao bolsonarismo deveriam se preocupar não apenas em viralizar o próprio conteúdo nas redes, mas apresentar medidas efetivas de combate que devem atacar as próprias condições que tornaram possível sua realização.

•        Chacina no Rio: “Alguém se sente mais seguro agora?” Por Mateus Muradas

A polícia do estado do Rio de Janeiro, comandada por Cláudio Castro, o resto do bolsonarismo, atacou um território onde moram 300 mil pessoas, o Complexo do Alemão e da Penha. Uma fila de corpos foi estendida no chão do bairro, mostrando 64 pessoas assassinadas, enquanto o governador comemorava em rede nacional o maior massacre da história do Rio. E a pergunta que ecoa em todos os cantos, feita por uma das lideranças do bairro, Raul Santiago, foi: “você se sente mais seguro?”

Isso é simplesmente asqueroso! Trata-se de mais uma operação eleitoreira que declara guerra contra territórios periféricos. O que aconteceu ali não é segurança pública, é massacre de pobres!

Senhoras infartando, moradores apavorados, famílias de moradores e policiais mortos simplesmente destroçadas, a partir de uma ordem de um governador facínora, que comemora e vibra em rede de televisão este ato vergonhoso, após executar o comando deste morticínio. Crianças apavoradas ao ir para a escola, trabalhadores mais uma vez colocados de cabeça baixa, mais uma vez sentindo que talvez ele seja o problema, fato de ser pobre e morar ali, seria um ato criminoso. Isso é inadmissível!

E o crime, o Comando Vermelho? Não sofreu um arranhão! Assassinaram essas dezenas de jovens, cooptadas para o varejo das drogas… Mas a logística do tráfico que escoa toneladas de cocaína pelo Porto do Rio rumo à Europa e Estados Unidos, o tráfico de armas e fuzis, estes continuam intactos, as redes de lavagem de dinheiro, os políticos bancados por este dinheiro sujo, tudo isso não sofreu um arranhão.

As favelas não refinam cocaína, não fabricam armas e nem lavam o dinheiro do tráfico. O que fez o crime ser abalado foi quando a Polícia Federal chegou à Faria Lima, nos fundos de investimento que faltam dinheiro sujo, nas redes de postos de gasolina e até usinas de etanol. Isso sim, fez o crime tremer, porque mexeu no bolso. As mortes desses jovens são calculadas pelos barões do tráfico, fazem parte do negócio e do lucro. Não é diferente para este resto de bolsonarismo, que ainda domina o Rio, e comemora nas redes… Calculam a morte de pobres e os possíveis ganhos eleitorais… Estes estão do mesmo lado, o lado da Morte!

Ali não morreram apenas policiais e o Varejo das Drogas, ali morreu toda uma sociedade. Uma sociedade que não chega nas favelas e nas quebradas do país, para oferecer outras políticas públicas, outra alternativa de mundo, para este morador da favela, e que inviabilize de uma vez por todas o varejo das drogas. Não é aceitável que o Estado só chegue com a brutalidade e a força letal das polícias em nossos territórios periféricos. Ninguém se sente mais seguro, amanhã já tem novos recrutas do tráfico, e o lucro do tráfico segue intacto.

Minha total e sincera solidariedade ao Raul e a todos os moradores do Alemão e da Penha. Ergam as cabeças, quebrada, nenhum favelado ou sujeito periférico merece essa humilhação que vocês estão passando. Força quebrada!

•        ‘Tráfico está nos grandes poderes do asfalto’: lideranças jovens de favelas condenam operação mais letal no Rio

Muito abalados com a chacina ocorrida nesta terça-feira (28), comunicadores populares moradores de favelas foram às redes sociais manifestar sua indignação com a presença de um estado que apresenta poucas oportunidades para as comunidades. A Operação Contenção foi realizada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro para cumprir mandados de prisão contra o Comando Vermelho (CV), colocou 2.500 agentes policiais nas ruas e levou à morte de 121 pessoas, de acordo com dados oficiais, um número que sobe a todo momento.

A diretora do filme recentemente premiado Cheiro de Diesel e comunicadora popular Gizele Martins condenou as operações nas favelas e questionou o que seria uma operação de sucesso. “No asfalto as pessoas apoiam que suas casas sejam invadidas também? Mas sem mortos?Não queremos operações nas favelas! A favela não é culpada por seu empobrecimento!” e acrescentou que o “O tráfico não está nas favelas, está nos grandes poderes do asfalto”, escreveu.

As denúncias trazidas por Martins estão presentes no primeiro relatório produzido pela ouvidoria da Defensoria Pública do Estado (DPE). A Defensoria recebeu denúncias de uma provável operação a partir do relato de mães que receberam comunicados das escolas locais para que não levassem seus filhos para a escola no dia seguinte.

Entre os depoimentos coletados durante a operação estão o relato de uma tentativa de uso da casa de uma moradora para servir de base para a operação, uma manobra conhecida como troia. “Pelo amor de Deus, estou dentro da casa da minha sobrinha. Eles estão querendo entrar aqui dentro. Estão querendo dar tiro dentro da casa da minha sobrinha. Nossa, eu não sei, eu já fiquei nervosa, eu tomo água com açúcar. Eu não sei o que eu faço”. A ouvidora Fabiana Silva informou ao Brasil de Fato que o órgão segue coletando depoimentos dos moradores sobre a operação para posterior judicialização.

Presente na localização de corpos realizada pelos moradores na zona da mata que liga os Complexos do Alemão e da Penha, Raul Santiago falou da polarização de discursos nesse momento. Ele comentou a declaração de Cláudio Castro em que afirma que todos os mortos eram vinculados ao tráfico por estarem em uma zona de mata e explicou que zona da mata que une o Alemão e a Penha é uma região que funciona uma pedreira e é espaço de lazer que tem muitas moradias no seu entorno, ainda assim, questionou a autorização para as mortes. “Essas mortes precisam ser investigadas porque não há previsão em lei de pena de morte ou execuções no Brasil”.

Já o fundador e diretor do Voz das Comunidades, Rene Silva, lembrou que a Operação é um exemplo da falta de políticas públicas para as favelas ao comentar a entrada de jovens para o tráfico. “[Esse processo] é fruto dessa falta de política pública de estado que só entra na favela para matar, para tirar” e lembrou da Operação ocorrida em novembro de 2010. “Há exatos dez anos estávamos vivendo esse mesmo momento, com repercussão internacional, e o estado continua agindo da mesma forma na favela, entregando bala e tiroteios”,

 

Fonte: Opera Mundi/Outras Palavras/Brasil de Fato

 

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